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O parlamentarismo no Brasil: mudança constitucional necessária?

Diante da sugestão do Professor Bruce Ackerman de o Brasil adotar o Parlamentarismo em uma nova Constituição, é necessária a análise histórica desse sistema no país e do nosso contexto político atual.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Atualizado às 10:41

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

I - A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE DE 1987 E A ESCOLHA DO SISTEMA DE GOVERNO

A Assembleia Nacional Constituinte de 1987, instaurada no Congresso Nacional no dia 1º de fevereiro de 1987 por meio da Emenda Constitucional 26/85, tinha a finalidade de elaborar uma Constituição democrática para o Brasil após os 21 anos de regime militar que vigorou no país.

O sistema de governo a ser adotado pela nova Constituição ocupava o centro do debate, marcado por conclusões pessimistas sobre as instituições brasileiras e sua incapacidade de gerar uma democracia. Para alguns, o presidencialismo, sistema vigente no país durante a ditadura militar, possuía diversas ineficiências que, somadas às mazelas do multipartidarismo, federalismo decentralizado e do bicameralismo poderiam levar a um sistema político paralisado que abriria o caminho para a volta dos militares ao poder1. 

Nesse contexto, surgiram grupos que defendiam arduamente a adoção do sistema parlamentarista, sob a justificativa de que a redemocratização faria surgir um Poder Legislativo fortalecido, o qual, inserido numa ordem de alta fragmentação partidária, faria com que os presidentes brasileiros tivessem de enfrentar obstáculos à criação de "maiorias de apoio", acarretando em crises de governabilidade e paralisia decisóriar2.

Apesar de os grupos parlamentaristas terem ganhado força nas primeiras discussões nas comissões, a decisão final quanto à forma de governo seria tomada apenas no plenário. E a Assembleia estava dividida: ao contrário de todos os demais temas essenciais de ordem pública, o sistema de governo não seria decidida por uma maioria consensual3, sendo tema que dividia bancadas de um mesmo partido.

Havia divisão até mesmo entre os apoiadores do sistema parlamentarista. Os membros do Partido do Movimento Democrático consideravam as intenções parlamentaristas dos partidos de esquerda como sendo extremas demais para as visões centristas4.

Com essa divisão dentro do movimento, abriu-se espaço para que José Sarney exercesse pressão e valesse de sua própria influência para a aprovação do presidencialismo pelos próximos cinco anos5. Tratou-se, na realidade, de acordo entre os grupos políticos que previa a realização de um plebiscito, no ano de 1993, para que a população brasileira escolhesse qual sistema de governo iria prevalecer.

Os parlamentaristas estavam confiantes que a população escolheria o parlamentarismo. No entanto, o primeiro presidente eleito diretamente após o regime militar, Fernando Collor, sofreu um processo de impeachment devido à escândalos de corrupção. Para o Professor Bruce Ackerman6, a população considerou o incidente um triunfo do presidencialismo, no sentido de que o sistema foi capaz de remover um presidente envolvido em escândalos de corrupção e, dessa forma, "reestabelecer a integridade". Assim, o plebiscito de 1993 demonstrou uma vitória massiva do presidencialismo, que passou a ser, de forma definitiva, o sistema de governo adotado pelo Brasil.

II - A PROPOSTA DE BRUCE ACKERMAN

O Professo Bruce Ackerman, um dos mais renomados constitucionalistas do mundo, recentemente sugeriu que o Brasil precisaria de uma nova Constituição. O Professor acredita que a maior parte da população brasileira "perdeu a fé" no sistema estabelecido em 1988, e que a melhor maneira de responder à alienação política seria a convocação de uma nova Assembleia Constituinte em 2023 para que, então, o país adotasse o presidencialismo.

Ackerman acredita que a Assembleia Nacional Constituinte de 1987 cometeu um erro em não estabelecer, de forma definitiva, o parlamentarismo. Para ilustrar sua posição, o Professor argumenta que, em um sistema presidencialista, é muito fácil para um candidato de direita radical conquistar a presidência, a despeito de possuir apenas de 20 a 25% do eleitorado7. Prova disso foram as eleições de 2018, que culminaram na eleição do extremista Jair Bolsonaro.

A proposta, então, seria a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte um ano após as eleições presidenciais de 2022, a qual não poderia ter nenhum membro do governo eleito figurando como constituinte, com vistas a garantir a adoção do parlamentarismo e não o fortalecimento do poder do presidente recém-eleito.

III - O PARLAMENTARISMO É A SOLUÇÃO?

Conforme visto, Ackerman acredita que a mudança constitucional brasileira é necessária diante da necessidade da adoção de um sistema capaz de evitar a ascensão de líderes extremistas e autoritários ao poder.

Com efeito, até por suas próprias características, o sistema parlamentarista dificulta que extremistas cheguem ao poder. O exemplo trazido por Ackerman ilustra tal situação: imaginemos cinco grupos políticos aproximadamente de mesmo tamanho: esquerda radical, esquerda central, centristas, direta central e direita radical. No sistema parlamentarista, os líderes dos grupos com tendências centrais (os centristas, a esquerda central e a direita central) se unem, impedindo que os extremistas se elejam8.

No sistema parlamentarista, ademais, ainda que um líder com características extremistas chegue ao poder, este poderá ser retirado caso o parlamento - que, via de regra, terá sua maioria composta por políticos com visões mais alinhadas ao centro - considere que sua forma de governar é um risco à democracia.

Também há de se mencionar que, exatamente como previram os parlamentaristas da Assembleia Constituinte de 1987, o sistema presidencialista brasileiro não possui mecanismos para impedir a fragmentação política, que dá ensejo a situação de grande dificuldade a manter maiorias para governar9. Torna-se necessária a realização de inúmeras barganhas entre os membros do Legislativo e Executivo, diminuindo a eficiência da atuação Estatal.

A solução, entretanto, não é tão simples como acredita Bruce Ackerman. A começar pelo fato de que há exemplos da história mundial de líderes extremistas em sistemas parlamentaristas. Atualmente, o Primeiro-Ministro do Reino Unido, Boris Johnson, é um líder populista com características de extremistas. Em um exemplo histórico, pode-se citar o caso de Adolf Hitler, que ascendeu ao poder dentro do contexto de um sistema parlamentarista10. Dessa forma, ainda que as dificulte, o parlamentarismo não é capaz de eliminar ameaças democráticas.

Deve-se lembrar, ainda, que o Brasil teve uma experiência relativamente recente com o parlamentarismo que não agradou a população. Em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, o parlamentarismo foi instituído como solução necessária ao impasse entre o então vice-presidente, João Goulart, e os militares, que faziam objeções à posse do vice em virtude de suas relações com movimentos de esquerda. A oposição, então, concordou com a posse do Jango apenas se fosse realizada em um sistema parlamentarista. O resultado foi uma experiência marcada pela ineficiência e mal funcionamento do governo, na qual os líderes não possuíam poder efetivo para atuarem de maneira ideal11. A rejeição popular ao parlamentarismo ficou expressa em um plebiscito de 1963, no qual os brasileiros escolheram, por muito, a volta do sistema presidencialista.

O resultado do plebiscito de 1993, aliás, pode também ter sido um reflexo de tal experiência parlamentarista à época de Jango, que, nas palavras de Rodrigo Mudrovitsch, "imprimiu no povo brasileiro a impressão de que o parlamentarismo seria nada mais que engodo"12.

A adoção do sistema parlamentarista, portanto, não solucionaria, por si só, os problemas de "falta de fé" da população brasileira e nem a crise democrática brasileira. Deve-se considerar, ainda, que uma mudança constitucional poderia colocar em risco valores e proteções garantidos pela Constituição de 1988.

IV - OS RISCOS E PROBLEMAS DE UMA ALTERAÇÃO CONSTITUCIONAL NO CONTEXTO ATUAL

Talvez o maior impeditivo à proposta de Ackerman seja o imenso risco de se estabelecer uma Assembleia Constituinte enquanto o país vive um momento de polarização e o Presidente da República é um representante da extrema direita que já demonstrou, em diversas oportunidades, seu desprezo por causas sociais, por minorias e pelos valores democráticos de maneira geral.

A nossa democracia atravessa momento extremamente delicado, de tal sorte que uma nova constituição poderia ser um artifício para a perpetuação do enfraquecimento de instituições, levando a uma forma de constitucionalismo abusivo, o que facilitaria o autoritarismo e o extremismo - exatamente o que se pretenderia evitar com a adoção do sistema parlamentarista.

Dessa forma, a Constituição de 1988 é nossa barreira contra o autoritarismo, garantindo instrumentos a travá-lo e permitindo a expressão de diversos valores sociais. Importante lembrar que, até o momento, as lideranças democráticas brasileiras não se posicionaram em favor de uma nova Constituição, talvez até levando em consideração esses fatores e o perigo que uma nova Constituinte representaria em um momento tão instável como o que vivemos.

Substituir uma Constituição democrática sempre é um esforço que carrega consigo alto risco, sobretudo em momentos nos quais se vive forte crise e polarização política. Conforme ensina o professor Claudio Pereira de Souza Neto, "as constituições só têm razão de ser quando estabelecem um pacto social que não apenas reflete a vontade majoritária, mas inclui minorias (como membros plenos da comunidade política)"13.

A "Constituição Cidadã" de 1988, marcante por seu caráter inclusivo e democrático, é a nossa protetora contra agressões às minorias. Não seria prudente tentar substituí-la agora, em momento de crise democrática, sob o risco de a nova Constituição perpetuar o enfraquecimento de instituições, o que abriria o caminho para o autoritarismo.

Como visto, o parlamentarismo possui características que poderiam ser interessantes na luta contra a ascensão de líderes antidemocráticos, mas não é capaz de evita-los a todo custo. A proposta de uma nova Constituição para instaurar esse sistema de governo, especialmente no contexto atual, não vale o risco.

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1- MARTINS, Rodrigo. O processo decisório na Assembleia Nacional Constituinte de 1987- 88: a escolha do sistema de governo. 2013. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. doi:10.11606/D.8.2013.tde-11042014-101746. Acesso em: 2020-12-12. p. 46

2- SOUZA, Márcia T. O processo decisório na Constituição de 1988: práticas institucionais. Lua Nova: revista de cultura e política (58):37-59, 2003

3- MARTINS, Rodrigo. O processo decisório na Assembleia Nacional Constituinte de 1987- 88: a escolha do sistema de governo. 2013. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. doi:10.11606/D.8.2013.tde-11042014-101746. Acesso em: 2020-12-12. p. 48

4- ACKERMAN, Bruce. O Brasil precisa de nova Constituição. Brasília: Correio Braziliense, 2020. Disponível aqui. Acesso em 09 dez 2020.

5- MARTINS, Rodrigo. O processo decisório na Assembleia Nacional Constituinte de 1987- 88: a escolha do sistema de governo. 2013. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. doi:10.11606/D.8.2013.tde-11042014-101746. Acesso em: 2020-12-12. p. 55

6- ACKERMAN, Bruce. O Brasil precisa de nova Constituição. Brasília: Correio Braziliense, 2020. Disponível aqui. Acesso em 09 dez 2020.

7- ACKERMAN, Bruce. O Brasil precisa de nova Constituição. Brasília: Correio Braziliense, 2020. Disponível aqui. Acesso em 09 dez 2020.

8- ACKERMAN, Bruce. O Brasil precisa de nova Constituição. Brasília: Correio Braziliense, 2020. Disponível aqui. Acesso em 09 dez 2020.

9- VICTOR, Sérgio Antônio Ferreira. Presidencialismo de coalizão: exame do atual sistema de governo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 83 - 124

10- ZAIDEN, Juliano; PAIXÃO, Cristiano, et al. Why Replacing the Brazilian Constitution Is Not a Good Idea: A Response to Professor Bruce Ackerman, 2020.

11- MARTINS, Rodrigo. O processo decisório na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88: a escolha do sistema de governo. 2013. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. doi:10.11606/D.8.2013.tde-11042014-101746. Acesso em: 2020-12-12. p. 55

12- MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt. A democracia brasileira não precisa de uma nova constituinte. CONJUR, 12 set 2020. Disponível em: < https://bit.ly/3a1nm45>. Acesso em 10 dez 2020

13- DE SOUZA NETO, Claudio Pereira. Democracia em crise no Brasil. Valores constitucionais, antagonismo político e dinâmica institucional, 2020. P. 31

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ACKERMAN, Bruce. Brazil's Constitutional Dilemma in Comparative Perspective: Do Chile and Spain Cast Light on the Bolsonaro Crises, 2020.

ACKERMAN, Bruce. O Brasil precisa de nova Constituição. Brasília: Correio Braziliense, 2020. Acesso em 09 dez 2020.

DE SOUZA NETO, Claudio Pereira. Democracia em crise no Brasil. Valores constitucionais, antagonismo político e dinâmica institucional, 2020 ABRANCHES, Sérgio. O Presidencialismo de Coalizão, o Dilema Institucional Brasileiro, 1998

LIMONGI, Fernando. O Poder Executivo na Constituição de 1988. In GEORGE, Ruben; RIDENTI, Marcelo e BRANDÃO, Gildo MARÇAL. A Constituição de 1988 na vida brasileira. Pp. 23 - 56

MARTINS, Rodrigo. O processo decisório na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88: a escolha do sistema de governo. 2013. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. doi:10.11606/D.8.2013.tde-11042014-101746. Acesso em: 2020-12-12.

MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt. A democracia brasileira não precisa de uma nova constituinte. CONJUR, 12 set 2020. Disponível aqui. Acesso em 10 dez 2020

SOUZA, Márcia T. O processo decisório na Constituição de 1988: práticas institucionais. Lua Nova: revista de cultura e política (58):37-59, 2003

VICTOR, Sérgio Antônio Ferreira. Presidencialismo de coalizão: exame do atual sistema de governo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 83 - 124

ZAIDEN, Juliano; PAIXÃO, Cristiano, et al. Why Replacing the Brazilian Constitution Is Not a Good Idea: A Response to Professor Bruce Ackerman, 2020 

Vitor Ribeiro de Oliveira

Vitor Ribeiro de Oliveira

Assistente jurídico no escritório Ayres Britto Advocacia Jurídica e Consultoria. Graduando na Universidade de Brasília.

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