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Contratos administrados por entidades de autogestão e (in) aplicabilidade do CDC

O novo posicionamento do STJ, representado pela Súmula 608 passou a ser o seguinte: "Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão.".

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Atualizado em 19 de julho de 2021 08:30

(Imagem: Arte Migalhas)

Até o início do ano de 2018, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) era aplicável a todas as relações contratuais que versavam sobre planos de saúde, porquanto ainda vigorava a Súmula 4691 do Superior Tribunal de Justiça, cuja redação determinava a incidência da legislação consumerista: "Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde.". 

Ocorre que em abril do referido ano, o entendimento do Egrégio Tribunal mudou, o que resultou na aprovação da Súmula 608 e no, consequente, cancelamento da Súmula 469, haja vista a dissonância entre os dois enunciados. 

O novo posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, representado pela Súmula 6082, passou a ser o seguinte: "Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão.". 

A modificação partiu da diferenciação existente entre os planos de saúde privados e os administrados por entidades de autogestão, uma vez que estes não visam a obtenção de lucro, em contrapartida daqueles. 

O conceito de Plano Privado de Assistência à Saúde encontra-se previsto no art. 1º, inciso I, da lei 9.656/983. 

Já, a definição de autogestão está elencada no art. 2º da Resolução Normativa - RN n. 137, de 14 de novembro de 2006, onde estabelece que a pessoa jurídica de direito privado que, por intermédio de seu departamento de recursos humanos ou órgão assemelhado, opera plano privado de assistência à saúde exclusivamente aos seguintes beneficiários: a) sócios da pessoa jurídica; b) administradores e ex-administradores da entidade de autogestão; c) empregados e ex-empregados da entidade de autogestão; d) aposentados que tenham sido vinculados anteriormente à entidade de autogestão;  e) pensionistas dos beneficiários descritos nas alíneas anteriores; f) grupo familiar até o quarto grau de parentesco consanguíneo, até o segundo grau de parentesco por afinidade, criança ou adolescente sob guarda ou tutela, curatelado, cônjuge ou companheiro dos beneficiários descritos nas alíneas anteriores. 

A inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos planos de saúde administrados por entidades de autogestão, já vinha sendo discutida há tempos. O assunto foi tratado pelo Superior Tribunal de Justiça na edição n. 74 do Jurisprudência em Teses4 publicado em 8 de fevereiro de 2017, que teve como tema o direito do consumidor. Na ocasião, a Tese 17 delimitou sobre a não incidência da legislação consumerista nesses contratos, em razão de inexistir relação de consumo. 

Posteriormente, conforme ora mencionado, houve a aprovação da Súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça, que consolidou o novo entendimento do colegiado. 

Além disso, em 06 de março de 2020, na edição 143 do Jurisprudência em Teses, que tratou sobre os planos de saúde, foi retomada a discussão acerca da matéria na Tese n. 1, cujo enunciado é idêntico à súmula. A fim de dar respaldo à manutenção do entendimento do Tribunal, foram colecionados diversos julgados abordando que os planos de saúde geridos por entidades de autogestão não são regidos pelo Código de Defesa do Consumidor. 

No intuito de elucidar as razões pelas quais o Superior Tribunal de Justiça reitera seu posicionamento, faz-se a análise de três processos citados no periódico: o REsp 1.827.250/BA, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, da Segunda Câmara de Direito Privado; o REsp 1.766.181/PR, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, da Terceira Câmara de Direito Privado e; o REsp 1.682.692/RO, de relatoria da Ministra Maria Isabel Gallotti, da Quarta Câmara de Direito Privado. 

O REsp 1.827.250/BA adveio de demanda ajuizada por um servidor público em desfavor de plano de saúde administrado pelo Estado da Bahia, em razão de negativa de custeamento de tratamento cirúrgico. 

O requerente possuía doença de Parkinson avançada e necessitava de implante de eletrodo cerebral, entretanto ao solicitar o serviço a seguradora, esta se recusou a prestá-lo, sob o argumento de exclusão contratual. 

No julgamento da lide, o magistrado aplicou o Código de Defesa do Consumidor, sendo que o Tribunal de Justiça manteve a mesma linha interpretativa, situação que foi objeto de Recurso Especial pelo plano de saúde e, no sentido da inaplicabilidade da legislação consumerista, haja vista que o plano de saúde não era ofertado no mercado de consumo. 

Ao apreciar o caso, o Relator Ministro Herman Benjamin observou que  o Tribunal a quo, ao decidir pela aplicabilidade da lei 8.078/90, independentemente de se tratar de "plano de saúde fornecido por pessoa jurídica de direito público a beneficiário com vínculo estatutário"5, agiu em dissonância ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça, consolidado na Súmula n. 608. 

Diante disso, ao Recurso Especial foi dado provimento para afastar a incidência da legislação consumerista, bem como foi determinado o retorno do processo ao Tribunal de origem para novo julgamento da Apelação, à luz do Código Civil. 

O segundo recurso (REsp 1.766.181/PR) teve como origem uma ação de obrigação de fazer c/c danos morais, movida por uma servidora pública em desfavor de autarquia municipal de previdência social, acerca de benefício assistencial de saúde definido em lei municipal. Como respaldo dos seus pedidos, a autora reiteradamente requereu a aplicação do Código de Defesa do Consumidor e da lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde), a fim de obter êxito na demanda. 

A relatora Ministra Nancy Andrighi, conheceu em parte o recurso especial e lhe negou provimento, afirmando que ao caso não se aplicaria a lei 9.656/98, nem a lei 8.078/90, porquanto trata-se de pessoa jurídica de direito público que opera plano de saúde na modalidade de autogestão, de modo que a solução da demanda exigiria a interpretação da legislação do município. 

Quanto a não aplicabilidade da lei consumerista às entidades de autogestão, merece destaque as observações realizadas pela Ministra, de que as seguintes peculiaridades impedem classificar tais entidades como sendo fornecedoras de serviços:

i) não possuir fins lucrativos; ii) não ser exigível que ofereça plano-referência (art. 10, §3º, da LPS); iii) não disponibilizar o produto no mercado de consumo para qualquer pessoa; iv) haver solidariedade na administração da carteira, com interferência direta das coberturas e restrições contratuais.6 

Após o voto da Relatora, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva pediu vista antecipada. No voto-vista, no que tange à aplicação do Código de Defesa do Consumidor, o Ministro reiterou o entendimento firmado na Súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça. Entretanto, quanto a incidência da Lei dos Planos de Saúde às pessoas jurídicas de direito público, houve divergência ao voto da Relatora, de maneira que o Ministro Ricardo não afastou a aplicação da referida legislação ao caso. 

Esta demanda, apesar de ter sido unânime o entendimento de que não era aplicável o Código de Defesa do Consumidor, a abusividade fora analisada sob outra óptica. Porém, ainda assim, ao Recurso Especial foi negado provimento, porquanto os julgadores entenderam que, neste caso específico, a negativa do plano de saúde de prestar o serviço pleiteado na ação não foi abusiva, razão pela qual a parte autora sucumbiu. 

Por fim, analisa-se o AgInt no REsp 1.682.692/RO julgado pela Quarta Turma de Direito Privado. No julgamento do recurso, a Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti seguiu o entendimento cristalizado na Súmula n. 608 do Superior Tribunal de Justiça e afastou a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor para resolução da controvérsia, sob a seguinte argumentação: 

As operadoras de plano de saúde na modalidade de autogestão ou fechadas não oferecem serviços no mercado; não exercem empresa com o intuito de lucro e, portanto, não se lhes aplica o conceito de fornecedor estabelecido no artigo 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor.7

Diante das análises realizadas, é possível notar que as Turmas responsáveis por julgar a matéria aviltada neste tópico mantêm o entendimento cristalizado pela Súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça, de que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica aos contratos de plano de saúde administrados por entidades de autogestão, haja vista não auferirem lucros, nem disponibilizarem o plano para comercialização em geral. 

Destarte, o STJ vem reiteradamente afirmando que o fato da administração por autogestão afastar a aplicação do CDC não atinge o princípio da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda); e a aplicação das regras do Código Civil em matéria contratual, tão rígidas quanto a legislação consumerista.8

___________

1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 469. Brasília, 24 de novembro de 2010. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, DF. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp?livre=(sumula%20adj1%20%27469%27).sub. Acesso em: 16 abr. 2020.

2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 608. Brasília, 11 de abril de 2019. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, DF. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/sumanot/ toc.jsp?livre=(sumula%20adj1%20%27608%27).sub. Acesso em: 16 abr. 2020.

3 Art. 1º. Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade, adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições:

I - Plano Privado de Assistência à Saúde: prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor;

4 TESE 01. Jurisprudência em teses: planos de saúde - III, Brasília, ed. 143, 6 mar. 2020. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp. Acesso em: 16 abr. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp nº 1.827.250. Rel. Ministro Herman Benjamin. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, 18 nov. 2019. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201902098225&dt_publicacao=18/11/2019. Acesso em: 16 abr. 2020.

6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp nº 1.766.181. Rel. Ministra Nancy Andrighi. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, 13 dez. 2019. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201802372239&dt_publicacao=13/12/2019. Acesso em: 16 abr. 2020.

7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp nº 1.682.692. Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, 06 dez. 2019. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201701596985&dt_publicacao=06/12/2019. Acesso em: 16 abr. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.644.829/SP. Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, DJe 23/2/2017. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=PLANO+DE+SA%DADE+PACTA+SUNT+SERVANDA&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=true. Acesso em: 16 abr. 2020.

 

Rodrigo Fernandes

Rodrigo Fernandes

É sócio do escritório Rodrigo Fernandes Advogados Associados. Mestre em Direito. Professor de graduação, pós graduação e cursos preparatórios. Juiz efetivo do TRE/SC 2019/2021.

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