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Os contornos do negócio jurídico processual

O instituto do Negócio Jurídico Processual ("NJP") teve sua adoção formalizada e sistematizada apenas com o advento do novo Código de Processo Civil.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Atualizado às 08:12

(Imagem: Arte Migalhas)

Conquanto de reconhecida aplicação no ordenamento jurídico pátrio já há muitos anos, o instituto do Negócio Jurídico Processual ("NJP") teve sua adoção formalizada e sistematizada apenas com o advento do novo Código de Processo Civil (lei Federal 13.105/2015 - "CPC").

O caput do artigo 190 do CPC, dispõe, expressamente, ser lícito às partes capazes estipularem, sob o prisma da autonomia da vontade, nas causas que versam sobre direitos que admitam autocomposição, alterações no procedimento para o fim de ajustá-lo às especificidades do conflito e, bem assim, convencionarem a respeito de ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, de forma preparatória ou incidental.

De acordo com Fredie Didier Junior, 1 NJP é "o fato jurídico voluntário, em cujo suporte fático se reconhece ao sujeito o poder de regular, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais ou alterar o procedimento". Adriana Buchmann define o NJP como sendo o "instrumento do instrumento", na medida em que se trata de uma espécie de "acordo celebrado em meio a discórdia, mas não enquanto equacionamento desse, e sim com o fito exclusivo de organizar os termos em que a lide se processará".

A partir do momento em que for celebrado, desde que lícito, preciso e determinado, independentemente de qualquer homologação judicial, o NJP já passa a operar seus regulares efeitos. Na realidade, no NJP, "a avaliação judicial se dá depois de consumado o negócio processual, não se apresentado como requisito de seu aperfeiçoamento, mas tão somente de verificação de sua legalidade" 3.

É dizer, por ser instrumento decorrente da autonomia da vontade das partes, o NJP não é sujeito a juízo de conveniência do Estado-Juiz. Tanto assim o é que o parágrafo único do artigo 190 do CPC dispõe que os termos do NJP somente terão sua aplicação obstada "nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade". A interferência do Poder Judiciário, à luz do CPC, somente seria possível nessas hipóteses.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), quando do julgamento do REsp 1.810.444/SP, em trâmite perante a 4ª Turma, sob a relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, reforçou esse entendimento. Restou ali fundamentado que, "quando estiverem em jogo faculdades e interesses exclusivos das partes, caberá ao juiz interferir apenas para controle de sua legalidade". E concluiu: "se, porém, de alguma forma, a convenção importar restrição ou condicionamento à situação jurídica do juiz, é intuitivo que o negócio só se aperfeiçoará validamente se a ele aquiescer o próprio juiz".

No referido recurso, o STJ entendeu por negar provimento ao recurso especial ali interposto sob o fundamento de que o objeto do NJP transcenderia os limites para os quais o instituto foi concebido. Naquele caso, as partes convencionaram que, em caso de inadimplemento de uma dívida certa, "a credora estaria autorizada a obter liminarmente o bloqueio dos ativos financeiros da parte devedora, "em caráter inaudita altera parte e sem a necessidade de se prestar garantia".

A 4ª Turma do STJ, mantendo entendimento consignado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - "TJ/SP", desproveu o recurso especial por entender que a matéria objeto do NJP versava sobre o diferimento do contraditório para um momento posterior à análise e enfrentamento da cautelar de indisponibilidade de bens, o que, ao menos em tese, soaria como uma afronta direta aos poderes e atos inerentes ao magistrado, entre eles o poder geral de cautela.

Adiante, ressalvando a hipótese de a transação que envolva contraditório não tornar uma das partes vulnerável, o que demandará necessariamente uma avaliação casuística da situação posta em debate, o acórdão respectivo consignou que "todas as vezes que a supressão do contraditório conduzir à desigualdade de armas no processo, o negócio processual, ou a cláusula que previr tal situação, deverá ser considerado inválido".

Como se vê, o STJ não afastou por completo a possibilidade de as partes firmarem determinado NJP que tenha por finalidade discutir aspectos relacionados ao contraditório. A Corte Superior pondera que, desde que "a transação acerca do contraditório não torna[e] uma das partes vulnerável, dada as peculiaridades do caso, é possível reconhecer-lhe validade". À luz ainda do que restou decidido no REsp 1.810.444/SP, a vulnerabilidade ou não de uma das partes, repita-se, deverá demandar prévia e singular análise.

Há decisões outras que vêm discutindo os limites e balizadores dos NJPs. O TJ/SP, por exemplo, em algumas oportunidades, já rechaçou a possibilidade de as partes firmarem NJP que tenham por finalidade pactuar sobre:

(i) cláusula de eleição de foro estrangeiro (AI 2094625-02.2017.8.26.0000[4] e 2127099-89.2018.8.26.0000 5); (ii) citação mediante entrega de carta com aviso de recebimento no endereço do réu, sem, para tanto, a necessidade de assinatura pessoal deste (AI 2281669-96.2019.8.26.0000 6); (iii) segredo de justiça (AI 2030704-64.2020.8.26.0000 7); e (iv) percentual de honorários advocatícios em litígio (AI 2096891-20.2021.8.26.0000 8).

Estar-se-iam os casos acima destacados como exemplos inseridos nas hipóteses em que deveria o Poder Judiciário interferir nos NJPs? Ou melhor, os objetos destas transações teriam, de fato, com base na premissa consignada no parágrafo único do artigo 190 CPC e corroborada pelo STJ no REsp 1.810.444/SP, interferido de alguma forma nos poderes inerentes ao Estado-Juiz ou, ainda, contribuído para uma eventual e despropositada vulnerabilidade de uma das partes? A resposta a estes questionamentos ainda é desconhecida, na medida em que a jurisprudência ainda não detém um posicionamento consolidado sobre os balizadores do NJP.

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1 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: parte geral e processo de conhecimento. 20 ed. Salvador: JusPodivm, 2018, pág. 439.

2 (Limites objetivos ao negócio processual atípico. Orientador Dissertação (mestrado). Eduardo de Avelar LAmy. Florianópolis, 2017. 395 p. Disponível aqui.

3 THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. v. 1. 59. ed. (2. Reimp.) rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 502.

4 TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2094625-02.2017.8.26.0000, Rel. Des. Hélio Nogueira, 22ª Câmara de Direito Privado, j. 21.09.2017, DJe 06.10.2017.

5 TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2127099-89.2018.8.26.0000, Rel. Des. Jairo Brazil Fontes Oliveira, 15ª Câmara de Direito Privado, j. 06.10.2020, DJe 07.10.2020.

6 TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2281669-96.2019.8.26.0000, Rel. Des. Almeida Sampaio, 25ª Câmara de Direito Privado, j. 28.01.2021, DJe 02.02.2021.

7 TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2030704-64.2020.8.26.0000, Rel. Des. Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 20.08.2020, DJe 20.08.2020.

8 TJ/SP,  Agravo de Instrumento nº 2096891-20.2021.8.26.0000, Rel. Des. Ana Lucia Romanhole Martucci, 33ª Câmara de Direito Privado, j. 18.05.2021, DJe 18.05.2021.

Renata Oliveira

Renata Oliveira

Sócia de Machado Meyer Advogados e especialista em reestruturação e recuperação de créditos e empresas, na prevenção e resolução de conflitos perante o Poder Judiciário, órgãos públicos e Centros de Arbitragem nacionais e internacionais.

Diego Rodrigues Mendonça Galvão

Diego Rodrigues Mendonça Galvão

Universidade Federal Fluminense - UFF, Brasil (Bacharelado em Direito, 2009). Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Brasil (Pós-graduação em Direito Civil Constitucional, 2012).

Maurício Sada Neto

Maurício Sada Neto

Advogado. Atua na área de contencioso cível com experiência específica em processo civil, direito administrativo e do consumidor, responsabilidade civil, improbidade administrativa, disputas contratuais, regulatórias e product liability. Universidade Cândido Mendes (Ucam) - Bacharelado em Direito, 2012. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) - Pós-Graduação em Direito de Empresas, 2017.

Mateus da Silva Pessanha Moreira

Mateus da Silva Pessanha Moreira

Atua na área de contencioso cível com experiência específica em processo civil, direito do consumidor, responsabilidade civil, disputas contratuais e product liability. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) - Bacharelado em Direito, 2018.

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