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Os mecanismos de controle e intensificação do trabalho por meio das tarifas nas plataformas em Portugal

No dia 29 de outubro de 2020 foi implementado o multiplicador pela Uber e que por esse motivo culminou grandes discórdias entre a empresa e os condutores.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Atualizado às 13:49

(Imagem: Arte Migalhas)

Esse é um dos entraves que geram grandes divergências acerca da remuneração dos serviços prestados pelos "parceiros" que laboram para empresas de plataformas digitais, sobretudo, para os motoristas que operam na Área Metropolitana de Lisboa, Portugal. Isso porque no dia 29 de outubro de 2020 foi implementado o multiplicador pela Uber e que por esse motivo culminou grandes discórdias entre a empresa e os condutores. Entretanto, para tentar "contornar" a situação a empresa de transporte lançou a Tarifa Automática no dia 30 de junho do corrente ano, em que os motoristas terão a opção de definir automaticamente ou não o multiplicador mais adequado para si. Ao ativar a opção tarifa automática, o condutor irá receber automaticamente viagens dentro de uma escala entre 0.7x e 2.0x, em intervalos de 0.1x.

E, como se não bastasse, a Uber mais uma vez implementou no dia 9 de junho do corrente ano um outro serviço chamado de UberX Saver, mas dessa vez abrangendo apenas os motoristas que prestam seus serviços no distrito do Porto, Portugal. O intuito da empresa é garantir que os "parceiros" possam realizar viagens a preços mais "acessíveis", ou seja, mais baixos nos horários e locais que se tem menos procura. Não há transparência quanto aos valores por parte da empresa, pois "os horários de funcionamento não são fixos", conforme pronunciamento da Uber.

No discurso empresarial, o objetivo seria ajudar os motoristas a terem rendimentos mesmo nos horários que se tem menos demanda pelos serviços. A concessão das vantagens oferecidas pela empresa pode ser interessante aos clientes e à própria Uber, mas extremamente danosa ao obreiro que, a despeito de todos os seus custos relacionados à atividade, precisa atender à demanda sob risco de ser bloqueado ou penalizado pela plataforma. Sem contar a total falta de transparência quanto à tarifa utilizada. Está claro que por trás de todas essas ofertas, o prejudicado é tão somente o próprio motorista, que terá seu valor de trabalho ainda mais reduzido, sem que reflita no rendimento da plataforma, que tem sua comissão inalterada em 25% (sobre o valor cheio).

Mesmo diante do forte discurso ideológico de "flexibilidade" por parte da empresa, a qual apregoa que os motoristas poderiam alterar o preço das suas viagens, é a Uber que tem o poder de repassar semanalmente a contraprestação pecuniária aos motoristas, abatendo 25% em cada transação realizada. Nessa lógica, impõe um tarifário de acordo com seus interesses, sem qualquer transparência, participação, controle ou poder decisório por parte dos trabalhadores. Em comparação a outras plataformas, a Uber é a empresa que possui a comissão mais alta, enquanto a Bolt 20% e a FreeNow apossa-se de 20% mais IVA(o equivalente ao imposto ICMS).

É notório que esses trabalhadores estão laborando a preços subvalorizados e firmados unilateralmente pela empresa, configurando uma clara violação ao artigo 15º, 2 da lei de TVDE (Regime Jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrônica), o qual dispõe que "Os valores das tarifas são fixados livremente entre as partes, sem prejuízo do disposto nos números seguintes, devendo os preços finais cobrir todos os custos associados ao serviço, em harmonia com as melhores práticas do sector dos transportes". Mesmo que não haja menção a um valor que cubra os custos, percebe-se que as plataformas digitais não estão se importando se o condutor terá condições de arcar com as despesas, bem como o quanto terão de rendimento ao final de um mês de trabalho.

Ora, como pode a empresa ter tantas vantagens às custas da força de trabalho e ainda permanecer com uma comissão tão elevada? Será mesmo, que diante de tantas evidências de exploração da classe trabalhadora, o discurso ideológico otimista do trabalho "empreendedor" ainda prevaleça nesse modelo de negócio chamado gig economy? São esses questionamentos que nos faz perceber quão precária é a condição dos trabalhadores vinculados às plataformas digitais. Mesmo assim, muitos se submetem a esse tipo de emprego por estarem totalmente vinculados a ele, restando como única fonte de renda. Assim, padecem de todos os dissabores do trabalho plataformizado, estando subordinados aos mandos da empresa e submetidos a intenso controle algorítmico. Para além disso, sofrem uma espécie de "subordinação psíquica" 1, que significa, na prática, uma condição de total dependência com relação à empresa, que gera insegurança financeira e alveja suas subjetividades.

Desse modo, no contexto português, especificamente quanto aos preceitos aventados nos artigos 11.º e 12.º do Código de Trabalho 2, depreende-se que nos casos em que os motoristas pretendam discutir sobre a real existência do vínculo laboral com as plataformas digitais, devem pautar-se de diversas formas. O elemento retribuição mencionado na lei em comento, por sua vez, adstrito obrigatoriamente à noção de contrato de trabalho, consiste na demonstração de que a remuneração pode ser paga de maneira uniforme ou periódica. Assim, se o motorista consegue comprovar que a empresa repassa semanalmente a sua remuneração, após o pagamento realizado pelo passageiro, estamos falando de um trabalho resultante de uma contraprestação. Todavia, no que toca à subordinação, podemos dizer que ela se vincula ao poder diretivo do credor da prestação de serviços, ou seja, desperta-se caso seja comprovada a decisão pelo administrador do aplicativo que determina qual o valor será cobrado para cada viagem. Restando o motorista adstrito a essa situação, sem o direito de argumentar qualquer questão.

De qualquer forma, as plataformas controlam todos os passos desses profissionais mesmo nos momentos que não estão conectados nos aplicativos das empresas 3. Fora que as avaliações dos passageiros são cruciais para o desligamento do motorista caso este receba alguma avaliação negativa, ou seja, se o condutor recusar algumas viagens ou descumprir qualquer norma imposta pela empresa pode ser motivo suficiente para o desligamento arbitrário do trabalhador, sem a possibilidade de se defender. Logo, nessas condições, os "prestadores de serviços" ficam com os seus direitos limitados e, assim, configura-se o vínculo laboral.

Para tanto, qualificar um "parceiro" como trabalhador ou apenas um prestador de serviços, como employee ou independent contractor, é uma matéria atual e complexa, mas que ainda gera diversas opiniões nos tribunais 4. É sabido que esses trabalhos estão ganhando visibilidade a cada dia que passa por conseguirem maquear a verdadeira relação laboral desses trabalhadores. Para isso precisam apenas demonstrar o lado bom de um trabalho e qual seria esse lado? Aquele que não há regras transparentes e obrigações por parte das plataformas digitais. Nesse contexto, os trabalhadores não percebem que a informalidade e a insegurança jurídica possam acarretar a exclusão dos direitos sociais que lhe são resguardados 5.

Nesse sentido, observa-se que aqueles que possuem contrato de trabalho estão em uma posição de vantagem por terem mais proteção no emprego e se beneficiarem da proteção social. Em contraposição àqueles que prestam serviços de forma intermitente, precária e sem os seus direitos laborais assegurados. De acordo com Guilheme Dray "Trata-se de um dualismo que não é próprio de um Estado de Direito Social, que procura promover o bem comum, prosseguir a igualdade de oportunidades e não deixar ninguém para trás".

Mesmo diante de tantas evidências quanto à fragilidade desse tipo de relação laboral e total distanciamento dos direitos trabalhistas, a Uber tenta a todo o custo esconder a presunção de laboralidade existente entre os trabalhadores e a empresa, uma vez que os elementos indicadores no que se refere à existência de contrato de trabalho, tais como: local de trabalho, horário de trabalho, propriedade dos instrumentos de trabalho, pela existência de retribuição regular e periódica e pelo eventual desempenho de cargos de direção ou de chefia não estão todos preenchidos. E, por isso, não é possível utilizar o artigo 12.º do CT para configurar a relação de emprego com a plataforma 6.

Contra esse vigoroso processo de precarização da classe trabalhadora a partir das plataformas digitais, restam poucas (mas extremamente relevantes) alternativas. Além da intensificação da consciência de classe e resistência por parte dos trabalhadores, no contexto português, é preciso pensar em uma efetiva atualização do Código de Trabalho. Sobretudo, no que se refere à presunção de laboralidade elencada no artigo 12.º, para que assim possa enquadrar, bem como assegurar uma adequada regulação a essa nova realidade de trabalho nomeada de Gig Economy.

Nesse sentido, após apresentação do Livro Verde para o Futuro Trabalho, o Governo português apresentou, no dia 21 de julho do corrente ano, também, aos parceiros sociais uma proposta de criação de uma presunção de contrato de trabalho direcionado aos trabalhadores que prestam serviços as plataformas digitais. O intuito é assegurar que todos tenham seus direitos trabalhistas resguardados para que assim possa combater a precariedade do trabalho não declarado.

Por fim, o Governo Português cogita em deixar de fora das alterações ao Código do Trabalho as plataformas de transporte por entender que este setor já tem um regime próprio que é a lei 45/2018 (Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados). Entretanto, será avaliada e revista ainda este ano.

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DO Ó, Juliete. UERJLABUTA. Autonomia e liberdade ou violação a direitos sociais mínimos? As estratégias de gestão da Uber em Portugal. Disponível aqui. acesso em 28 de julho de 2021

Para maiores informações acerca da tarifa automática verificar. Disponível aqui. acesso em: 28 de julho de 2021.

Nunes, Flavio. ECOSAPO. Uber arranca com tarifa "low cost" a partir do Porto. Disponível aqui. acesso em: 28 de julho de 2021.

Nunes, Flávio. ECOSAPO. Free Now sobe os preços para aumentar rendimento dos motoristas. Disponível aqui. acesso em: 28 de julho de 2021.

NIT. Uber celebra 7 anos em Portugal - e está a oferecer 700? em viagens. Disponível aqui. acesso em: 28 de junho de 2021.

NUNES, Flavio. ECOSAPO. A Bolt sobe para 20% comissão cobrada aos motoristas. Disponível aqui. acesso em: 28 de jul. de 2021.

CAETANO, Maria. DINHEIROVIVO. Governo quer deixar TVDE fora das alterações  às leis laborais. Disponível aqui. acesso em: 28 de julho de 2021.

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A expressão "subordinação psíquica", foi utilizada pela Magistrada no processo que reconheceu o vínculo de emprego entre a Uber e motorista no Brasil.  Ademais, rejeitou a homologação de acordo por entender que a plataforma praticava a "manipulação de jurisprudência". Disponível aqui. acesso em: 28 de julho de 2021.

QUINTAS, Paula; QUINTAS, Hélder. Código do Trabalho. Anotado e Comentado. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2016.

3 DO Ó, Juliete. UERJLABUTA. Subordinação algorítmica: a dura realidade de quem trabalha para plataformas digitais em Portugal. Disponível aqui. acesso em: 28 de julho de 2021.

CATARINA GRANADEIRO, Na Introduction to Portuguese Employment & Labour Law, 2ª Ed., Almedina, Coimbra, 2020, pp. 51 e ss.

Acerca desse assunto veja-se Guilherme Dray, Equality, Welfare State & Democracy, Almedina, Coimbra, 2018, pp. 75 e ss.

Acerca do artigo 12.º do Código de Trabalho de 2009, verificar a anotação de Pedro Romano Martinez, em Código do Trabalho Anotado, Pedro Romano Martinez, Luís Miguel Monteiro, Joana Vasconcelos, Pedro Madeira de Brito, Guilherme Machado Dray e Luís Gonçalves da Silva, 12ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 77 e ss.

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PORTUGAL. Lei 45/2018. Diário da República 154/2018, Série I de 2018-08-10. Disponível aqui. acesso em: 28 de julho de 2021

PORTUGAL. Código do Trabalho. Diário da República 7/2009, Série I de 2009-02-12. Disponível aqui. acesso em: 28 de julho 2021.

Juliete Lima do Ó

Juliete Lima do Ó

Advogada, mestranda em Direito Social e da Inovação pela Nova School of Law (Lisboa, Portugal) e especialista lato sensu em Direito material e processual do Trabalho pela Escola Superior da Magistratura do Trabalho da Paraíba (ESMAT 13).

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