A lei do clube empresa e a recuperação judicial de times de futebol
A lei 14.193/21 (Lei Das Sociedades Anônimas Do Futebol) foi recentemente aprovado na Câmara dos Deputados e aguarda a sanção presidencial.
terça-feira, 10 de agosto de 2021
Atualizado às 10:48
Foi recentemente aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5.516/19, que é considerado o marco legal do "Clube Empresa" no Brasil, que após a sanção presidencial em 6/10/21 recebeu o status de lei ordinária 14.193. A nova lei institui a Sociedade Anônima do Futebol (S.A.F.), novo modelo societário do direito brasileiro, e visa a quebra do paradigma centenário do modelo associativo que hoje impera no futebol nacional. O assunto há anos vem sendo debatido na academia e na mídia esportiva como o remédio que trará a profissionalização do esporte nacional.
O modelo "Clube Empresa" já é amplamente difundido no futebol europeu, onde 92% dos times que disputam as cinco principais ligas adotam o modelo empresarial. O contraste é grande com o cenário brasileiro, no qual três dos quarenta times que disputam a primeira e segunda divisões são constituídos como sociedades empresárias (Red Bull Bragantino, Botafogo SP e Cuiabá), enquanto os outros trinta e sete são associações civis.
A inserção dos Clubes Empresa no ordenamento jurídico brasileiro se deu com a lei 8.672/93 (Lei Zico)1, que facultava aos clubes e às confederações se transformarem em sociedades comerciais com finalidade desportiva. Adveio, então, a lei 9.615/98 (Lei Pelé), que revogou a antiga lei e a facultatividade passou a ser obrigatoriedade. Posteriormente, a lei 9.981/00 alterou a Lei Pelé para novamente tornar a transformação facultativa. Todavia, pela falta de instrumentos legais essa faculdade raramente foi exercida pelos clubes.
Também tramitou não Câmara dos Deputados o PL 5.082/16, que dispunha sobra a criação das SAF, num enfoque societário até mais aprofundado do que a lei recentemente aprovada. Porém, pouco acrescia sobre restruturação do passivo dos clubes, o que é uma característica marcante da lei 14.193/21.
Sendo assim, até então, a única maneira que os clubes de futebol tinham disponível para serem considerados entidades empresárias era a criação de uma sociedade subsidiária à associação civil, com a posterior transferência contratual dos ativos ligados à atividade desportiva. Como o futebol é um ambiente regulado, esta manobra empresarial dependia da anuência da Confederação Brasileira de Futebol para que a nova pessoa jurídica pudesse participar das competições de atletas profissionais.
Para simplificar a questão, a lei 14.193/21 traz no art. 2º, I e II, a possibilidade de que os clubes que são associações civis constituam Sociedades Anônimas do Futebol por meio das operações já conhecidas do direito societário da transformação2 e da cisão3 e prevê como se dará a transferência de ativos, obrigações e direitos à S.A.F, para que esta possa continuar disputando profissionalmente as competições que o clube originalmente disputava.
Na forma do art. 2º, §1º, a nova sociedade obrigatoriamente sucederá o clube nas relações com as entidades de administração (CBF, federações e ligas desportivas), bem como nas relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol. O mesmo dispositivo garante o direito da sociedade de participar de campeonatos, copas ou torneios em substituição ao clube, nas mesmas condições em que se encontravam no momento da sucessão, competindo, às entidades de administração, a devida substituição sem quaisquer prejuízos de ordem desportiva.
No caso específico da cisão, como o clube ou pessoa jurídica originária permanecerá existindo, a lei obriga que os direitos e deveres, decorrentes de quaisquer relações estabelecidas com o clube, vinculados à atividade do futebol, sejam transferidos à nova sociedade através de contrato firmado na data da constituição. Esta transferência independe da participação, autorização ou consentimento de credores ou partes interessadas para ter validade.
O artigo 9º da lei determina que a S.A.F. não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, respondendo pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no § 2º do art. 2º da citada lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no art. 10.
A partir deste dispositivo a lei avança do direito societário e passa a prever mecanismos voltados especificamente à quitação das obrigações dos clubes. Não é segredo que a "indústria do futebol" no Brasil passa por uma grave crise financeira, que há anos vem se agravando e foi sobremaneira acelerada pela pandemia da Covid-19. Em estudo divulgado pela EY Sports4, o endividamento líquido dos 23 principais clubes do Brasil somado subiu 30% de 2016 a 2020, passando de 6.5 bilhões para 10.3 bilhões de reais. Alguns clubes demonstraram em 2020 uma capacidade de gerar receitas muito inferior que endividamento do clube, como é o caso do Cruzeiro, com um endividamento 7,8 vezes maior do que o faturamento em 2020, e o Botafogo, que apresentou um endividamento 5,8 vezes maior.
Nesse cenário de endividamento, o acesso dos clubes a mecanismos eficientes de reestruturação de passivo era árduo. Predominava no judiciário o entendimento que os institutos previstos na lei 11.101/05 (LREF) - Recuperação Judicial ou Extrajudicial - aplicam-se às sociedades empresárias e não às associações civis. Há, contudo, exceções na jurisprudência, nas quais associações tiveram reconhecida a legitimidade ativa para pleitear recuperação judicial ou extrajudicial em razão de apesar de formalmente adotarem o modelo associativo, exercem atividade empresarial organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, na forma do artigo 966 do Código Civil5.
Este é o caso do Figueirense Futebol Clube, primeiro e único caso até então no qual foi aplicada a LREF a um time de futebol. Mesmo tendo uma sociedade limitada como subsidiária, o pedido de tutela antecipada em caráter antecedente formulado pelo clube para antecipar efeitos do stay period foi negado no primeiro grau, pois prevaleceu o entendimento que as associações civis sem fins lucrativos não poderiam se utilizar da lei 11.101/05 por não constituírem sociedade empresarial. Apenas em grau de recurso, em decisão proferida pelo desembargador Torres Marques, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, foi reconhecida a legitimidade ativa para o pedido, sob o fundamento de que "o fato de o primeiro apelante enquadrar-se como associação civil não o torna ilegítimo para pleitear a aplicação dos institutos previstos na Lei n. 11.101/2005, porquanto não excluído expressamente do âmbito de incidência da norma (art. 2º), equiparado às sociedades empresárias textualmente pela Lei Pelé e, notadamente, diante da sua reconhecida atividade desenvolvida em âmbito estadual e nacional desde 12/6/1921, passível de consubstanciar típico elemento de empresa (atividade econômica organizada)"6.
Além deste importante precedente, nota-se na jurisprudência a tendência de aceitar pedidos de recuperação de associações civis quando se reconhece que a atividade exercida é tipicamente empresarial. Este é o caso, por exemplo, da Universidade Cândido Mendes7, no qual a 6ª Câmara Cível do Rio de Janeiro, reconheceu que referida entidade civil exerce atividade econômica, organizada para a produção e circulação de bens e serviços. Também se cita o exemplo da Recuperação Judicial da ULBRA8, na qual foi proferida decisão pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul9 que reconheceu que a devedora exerceu atividade empresária por mais de quarenta anos, independentemente de ser formalmente constituída como associação civil.
Há diversos outros precedentes que robustecem esta linha como a Universidade de Cruz Alta (2005), a Associação Luterana do Brasil (2019) ambas do Rio Grande do Sul, e no Rio de Janeiro, o Hospital Casa de Portugal (2006). Esse contexto jurisprudencial permite a compreensão de que certas associações civis, apesar de não possuírem a finalidade de lucro, exercem atividade econômica, sendo possível sua equiparação à pessoa (natural ou jurídica) empresária, e por conseguinte a aplicação das normas da lei 11.101/05, numa prevalência da realidade sobre a forma, entendimento que se aproveita aos times de futebol que adotam o modelo associativo.
A artigo 25 da lei evita a discussão sobre a aplicação da lei 11.101/05 aos clubes de futebol, pois é categórico ao positivar: "O clube, ao optar pela alternativa do inciso II do art. 13 desta Lei, e por exercer atividade econômica, é admitido como parte legítima para requerer a recuperação judicial ou extrajudicial, submetendo-se à Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.".
O disposto no artigo 25 inova o direito concursal, pois é a primeira vez que há previsão legal expressa autorizando que uma associação civil se socorra da lei 11.101/05. Veja-se que o dispositivo utiliza a expressão "o clube", que na forma do artigo, 1º, §1º, inciso I da lei deve ser interpretado como "associação civil, regida pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), dedicada ao fomento e à prática do futebol".
Em continuidade, para que não restem dúvidas acerca da qualidade empresarial da atividade futebolística, e por consequência da legitimidade ativa para requerer recuperação judicial ou extrajudicial, a lei em seu artigo 35 promove a inclusão do parágrafo único ao art. 971 do Código Civil10 com a seguinte redação: "Aplica-se o disposto no caput deste artigo à associação que desenvolva atividade futebolística em caráter habitual e profissional, caso em que, com a inscrição, será considerada empresária, para todos os efeitos.".
Assim, a alteração legislativa abre o caminho para novos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial dos times de futebol, seja qual for a modalidade de sua constituição, pois há quatro cenários possíveis:
1.º O clube (associação civil) opta por permanecer no modelo associativo: O clube é parte legítima para pedir Recuperação Judicial ou Extrajudicial, por força do artigo 25 da lei n.º 5.516/2019 e parágrafo único do artigo 971 do Código Civil, que reconhece a natureza empresária a atividade futebolística;
2.º O clube (associação civil) opta pela transformação em Sociedade Anônima do Futebol - art. 2º, I da lei: A nova sociedade (S.A.F) é legitima para requerer Recuperação Judicial ou Extrajudicial, pois é sociedade empresária, regida subsidiariamente pela Lei das S.A., e satisfaz o requisito do art. 1º da Lei n.º 11.101/200511;
3.º O clube (associação civil) opta cisão com a constituição de Sociedade Anônima do Futebol - art. 2º, II da lei: tanto o cindido (associação) quanto à sociedade nova (S.A.F) são partes legítimas para requerer Recuperação Judicial ou Extrajudicial em litisconsórcio ativo, pelos motivos dos dois cenários anteriores, e o pedido poderá ser processado em consolidação processual (art. 69-G da LREF) ou substancial (art. 69-J da LREF), a depender da interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores e satisfação das hipóteses legais para tanto;
4.ºA constituição de Sociedade Anônima do Futebol pela iniciativa de pessoa natural, jurídica ou de fundo de investimento - art. 2º, III da lei: aplica-se à constituição originária a mesma sorte da transformação em S.A.F (art. 2º, I da lei).
Ao tempo que os times de futebol, se tornaram partes legítimas para requerer recuperação judicial ou pedir homologação de plano de recuperação extrajudicial, também se tornaram, pela mesma lógica, sujeitos aos ônus da falência. A partir do momento em que a LREF se aplica aos clubes, eles podem também ter suas falências decretadas, seja ela fruto de uma convolação de recuperação judicial em falência, do requerimento de um credor ou, até mesmo, de um pedido de autofalência.
Vale destacar que o texto da lei 14.193/21 foi objeto de sanção parcial, com vetos especialmente voltados aos dispositivos que tratavam de renúncias de receita, pois não teriam o cancelamento equivalente de outra despesa obrigatória e por não terem estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro nas receitas da União. O veto presidencial atingiu, inclusive, os artigos 31 e 32 do projeto de lei, que instituíam o Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF), um dos principais atrativos para que os clubes optassem pela transformação em SAF.
Frente a essas questões apresentadas, certamente a nova lei ensejará um caloroso debate acadêmico sobre suas diversas inovações e a respeito de como se dará sua aplicação. Entretanto, parece evidente que as Recuperações Judicial ou Extrajudicial se tornaram uma alternativa viável para a reestruturação das dívidas de clubes de futebol.
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1 Lei 8.672/1993, Art. 11. É facultado às entidades de prática e às entidades federais de administração de modalidade profissional, manter a gestão de suas atividades sob a responsabilidade de sociedade com fins lucrativos, desde que adotada uma das seguintes formas: [...]
2 Lei 6.404/1976, Art. 220. A transformação é a operação pela qual a sociedade passa, independentemente de dissolução e liquidação, de um tipo para outro.
3 Lei 6.404/1976, Art. 229. A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão.
4 https://www.ey.com/pt_br/media-entertainment/levantamento-financeiro-dos-clubes-brasileiros-2020
5 Código Civil, Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
6 https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/tj-reconhece-legitimidade-do-figueirense-futebol-clube-para-pedir-recuperacao-judicial
7 Recuperação Judicial número 0093754-90.2020.8.19.0001, em trâmite perante a 5ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Rio de Janeiro
8 Recuperação judicial em trâmite perante o 1º Juízo da 4ª Vara Cível da Comarca de Canoas-RS, processo distribuído sob o nº 5000461-37.2019.8.21.0008
9 Apelação Cível nº 5000461-37.2019.8.21.0008/TJRS, 6ª Câmara Cível
10 Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.