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Ações de família: a necessidade de resguardo da autonomia técnica das equipes periciais

Nas ações de família que versem sobre interesses de crianças ou de adolescente, salta aos olhos a importância dos profissionais integrantes das equipes periciais interprofissionais ou multidisciplinares, incluindo os eventuais assistentes técnicos indicados pelas partes.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Atualizado às 15:36

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O atual Código de Processo Civil, no parágrafo único de seu artigo 693, determina que as ações que versarem sobre interesses de crianças ou de adolescente observarão procedimento previsto em legislação específica, aplicando-se tal Diploma Processual apenas no que couber.

Nas ações contenciosas que versarem sobre guarda, convivência com filhos ou netos de idade inferior a 18 (dezoito) anos e/ou alienação parental, por tais lides terem como pano de fundo a investigação de uma possível inaptidão para o exercício do poder familiar1 2 ou da convivência familiar saudável, devem ser obrigatoriamente observados, conforme o caso concreto, os ritos previstos na lei 8.069/1990, artigos 155 a 163, na lei 12.318/2010, artigo 5º, caput e parágrafos, e no art. 699 do Código de Processo Civil. 

Analisando as legislações processuais aplicáveis em tais casos litigiosos, cujo manejo deve ter como norte os princípios processuais protetivos insertos nos incisos do parágrafo único, do art. 100, da lei 8.069/1990, nota-se que em todos os processos, em respeito ao devido processo legal3, pelo fato de que participar da vida familiar é um dos aspectos do direito e da garantia fundamental à liberdade4, duas modalidades probatórias deverão ser obrigatoriamente realizadas, quais sejam, a perícia, seja ela social, psicológica, psicossocial ou biopsicossocial, realizada por equipe interprofissional ou multidisciplinar, e a oitiva das crianças, adolescentes5, de seus pais6 e avós7.

A oitiva das crianças e adolescentes, nas ações contenciosas que versem sobre guarda, convivência e/ou alienação parental, por cautela, tendo em vista a possível ocorrência de reiterados abusos ou omissões no exercício do poder familiar por um ou ambos os genitores, deverá ser feita com o acompanhamento de profissional especializado8, com capacitação9 comprovada no Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense com Crianças e Adolescentes10.

Desta forma, no âmbito das ações de família que versarem sobre interesses de crianças ou de adolescente, salta aos olhos a importância dos profissionais integrantes das equipes periciais interprofissionais ou multidisciplinares, incluindo os eventuais assistentes técnicos indicados pelas partes, tal qual dos especialistas que deverão acompanhar os magistrados no momento de tomada dos depoimentos de crianças e adolescentes.

Tais profissionais, com exceção dos assistentes técnicos, ostentam a condição de auxiliares da justiça, conforme preceitua o art. 149 do Código de Processo Civil, sendo aqueles, ainda que eventualmente de forma transitória e precária, integrantes do Poder Judiciário, não se aplicando a tais profissionais, no tocante a seus atos, a constitucional regra da responsabilidade objetiva, conforme entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal11.

Na condição de auxiliares da justiça, a conduta de tais profissionais, por expressa previsão legal, deve ser tutelada pelos magistrados e respectivas corregedorias dos Tribunais, cabendo a esses, conforme o caso, apurado dolo, culpa12 ou negligência de tais profissionais, no exercício do múnus público desempenhado, comunicar tal fato ao respectivo órgão de classe para a adoção das medidas cabíveis13.

Ocorre que, corriqueiramente, os profissionais integrantes das equipes periciais interprofissionais ou multidisciplinares, assim como os assistentes técnicos, vêm sofrendo injustas e ilegais represarias por suas atuações profissionais, sendo vítimas de despropositadas representações ou denúncias nos respectivos Conselhos de Classe, perpetradas essas por cidadão que figuram como parte ou representantes legais nos respectivos processos, contribuindo, de forma nefasta, para o inconsciente cerceamento da autonomia técnico-profissional de tais experts, o que causa prejuízos na produção de tal meio de prova, fragilizando o contraditório.

Referidas representações ou denúncias, sejam efetuadas em face de peritos ou de assistentes técnicos, podem configurar, em tese, o crime previsto no art. 344 do Código Penal, coação no curso do processo. 

Coação no curso do processo

Art. 344 - Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Tal assertiva é respaldada pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se afere no trecho do julgado abaixo ementado:

Tendo o paciente, na condição de advogado, dito à vítima, médica responsável por lavrar laudo contrário aos interesses do cliente do paciente em processo de alienação parental, que se ela não 'desdissesse' o que havia consignado no laudo em comento, [...] 'faria o que fosse possível para ajudar a cliente dele e que iria complicar a vida da declarante (vítima) no Conselho Regional de Medicina', tem-se hipotética situação de mal injusto e grave, caracterizador da ameaça. (STF. HC 185.678/MS. Min. Rosa Weber. julgamento 25/5/2020. Publicação 29/5/2020).

Fato grave, que não pode passar desapercebido, é que tais representações são instruídas com peças processuais e outros documentos oriundos de processos que tramitam sob segredo de justiça14, sigilo15 esse que visa a defesa da inviolável16 intimidade e vida privada das partes envolvidas, notadamente das crianças, adolescentes e famílias17, ou seja, há ilicitamente uma quebra de segredo de justiça18.

O correto caminho processual a ser trilhado, caso as partes não se conformarem com o teor da manifestação dos peritos ou dos assistentes técnicos, é solicitar os devidos esclarecimentos, conforme previsto nos §§2º e 3º, do artigo 477 do Código de Processo Civil. Caso ainda assim o inconformismo permaneça, resta à parte interessada a alternativa de, arrimada no fato de supostamente a matéria objeto de análise técnica não estar suficientemente esclarecida, pleitear ao juiz a realização de nova perícia19 ou apontar e arguir, na primeira oportunidade, qualquer espécie de nulidade, sob pena de preclusão20. Em caso de indeferimento de tais pedidos, a legal medida posta à disposição é tão somente o manejo do recurso processual cabível.

Em qualquer cenário, caso as partes tencionem utilizar peças ou documentos processuais extraídos do bojo de ações que tramitam sob segredo de justiça, para instruir representações ou denúncias dirigidas a Conselhos de Classe ou quejandos, cabe ao interessado solicitar ao Juízo, de forma minudentemente fundamentada no que toca à utilidade e à destinação de tal registro, certidão contendo a cópia de tais documentos processuais21.

Indeferida a extração da certidão solicitada, cabe à parte o manejo do recurso processual pertinente.

Deferida a expedição da certidão, ainda assim o interessado tem o dever de preservar o sigilo constitucional e legal que acoberta tais documentos22, tais informações, valendo-se de todos os meios e instrumentos necessários para impedir o acesso a esses dados por terceiros estranhos ao eventual processo disciplinar que tramitará no respectivo Conselho de Classe, processo esse que deverá, obrigatoriamente, ter correlação, pertinência com os fatos ocorridos no processo judicial de origem.

Caso algum Conselho de Classe receba representação ou denúncia instruída com documentos oriundos de ações judiciais protegidas por segredo de justiça, não revestidos das formalidades legais, qual seja, em outro formatado que não seja o de certidão judicial, cabe a tal órgão, de ofício23, uma única medida, determinar o imediato arquivamento de tal denúncia ou representação, sob pena de incorrer em ilegalidade passível de correção via mandado de segurança, determinado o imediato sigilo de todo o procedimento.

Ainda que a denúncia ou representação venha acompanhada dos documentos em formato de certidão judicial, inarredável se mostra a necessidade de ser determinada, de imediato, a tramitação sigilosa, para todos os fins, de tal procedimento administrativo disciplinar.

Por fim, importante deixar consignado que a conduta das partes ou de seus representantes de quebrarem, irregularmente, fora das exceções legais, segredo de justiça determinado constitucional e legalmente, no intuito de ameaçar, amedrontar ou se vingar de pessoa que intervém em processo judicial, além de configurar, em tese, o crime de coação no curso do processo, também afronta o princípio da boa-fé processual24, configura litigância de má-fé25, causa desiquilíbrio no efetivo contraditório (violência processual), cabendo ao magistrado, ao tomar conhecimento de tal fato irregular, em qualquer instância ou Tribunal, aplicar de plano a devida reprimenda, no mínimo advertindo o sujeito processual infrator, em observância das normas fundamentais do processo civil previstas nos artigos 7º e 8º do Código de Processo Civil.

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1 Superior Tribunal de Justiça. REsp 1629994/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 6/12/2016, DJe 15/12/2016.

2 Superior Tribunal de Justiça. REsp 1878041/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceita Turma, julgado em 25/5/2021, DJe 31/05/2021.

3 Constituição Federal/1988. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

4 Lei Federal 8.069/1990. Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: (...). V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;

5 Lei Federal 8.069/1990. Art. 100. (...). parágrafo único: (...). XII - oitiva obrigatória e participação: a criança e o adolescente, em separado ou na companhia dos pais, de responsável ou de pessoa por si indicada, bem como os seus pais ou responsável, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção, sendo sua opinião devidamente considerada pela autoridade judiciária competente, observado o disposto nos §§ 1 o e 2 o do art. 28 desta Lei. 

6 Lei Federal 8.069/1990. Art. 161. (...). § 4º É obrigatória a oitiva dos pais sempre que eles forem identificados e estiverem em local conhecido, ressalvados os casos de não comparecimento perante a Justiça quando devidamente citados. 

7 Código Civil. Art. 1.589. (...). Parágrafo único.  O direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente. 

8 Código de Processo Civil. Art. 699. Quando o processo envolver discussão sobre fato relacionado a abuso ou a alienação parental, o juiz, ao tomar o depoimento do incapaz, deverá estar acompanhado por especialista.

9 Decreto Federal 9.603/2018. Art. 27. Os profissionais do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência participarão de cursos de capacitação para o desempenho adequado das funções previstas neste Decreto, respeitada a disponibilidade orçamentária e financeira dos órgãos envolvidos.

10 Decreto Federal 9.603/2018. Art. 25. O depoimento especial será regido por protocolo de oitiva.

11 Supremo Tribunal Federal. RE 219117/PR, Rel. Ministro Ilmar Galvão, 2ª Turma, julgamento: 3/8/1999, publicação 29/10/1999.

12 Código de Processo Civil. Art. 158. O perito que, por dolo ou culpa, prestar informações inverídicas responderá pelos prejuízos que causar à parte e ficará inabilitado para atuar em outras perícias no prazo de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, independentemente das demais sanções previstas em lei, devendo o juiz comunicar o fato ao respectivo órgão de classe para adoção das medidas que entender cabíveis.

13 Código de Processo Civil. Art. 468. O perito pode ser substituído quando: (...) II - sem motivo legítimo, deixar de cumprir o encargo no prazo que lhe foi assinado. § 1º No caso previsto no inciso II, o juiz comunicará a ocorrência à corporação profissional respectiva, podendo, ainda, impor multa ao perito, fixada tendo em vista o valor da causa e o possível prejuízo decorrente do atraso no processo.

14 Constituição Federal/1988. Art. 5º. (...). LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

15 Constituição Federal/1988. Art. 93. (...). IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;      

16 Constituição Federal/1988. Art. 5º. (...). X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

17 Código de Processo Civil. Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: (...). II - que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes; III - em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade;

18 "Quebrar segredo de Justiça significa infringir, violar ou transgredir o segredo imposto por lei, para a tutela de bens relevantes." (GOMES, Luiz Flávio. Interceptação telefônica: lei 9.296, de 24.7.96. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. P. 244-246).

19 Código de Processo Civil. Art. 480. O juiz determinará, de ofício ou a requerimento da parte, a realização de nova perícia quando a matéria não estiver suficientemente esclarecida.

20 Código de Processo Civil. Art. 278. A nulidade dos atos deve ser alegada na primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão.

21 Código de Processo Civil. Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: (...) § 1º O direito de consultar os autos de processo que tramite em segredo de justiça e de pedir certidões de seus atos é restrito às partes e aos seus procuradores.

22 Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Agravo de Instrumento 2.0000.00.383634-8/001, Relator: Des. Ediwal Jose de Morais, julgamento em 29/04/2003, publicação da súmula em 7/6/2003.

23 Decreto-lei 4.657/1942. Art. 3o Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.

24 Código de Processo Civil. Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.

25 Código de Processo Civil. Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: (...). V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo.

Fernando Salzer e Silva

VIP Fernando Salzer e Silva

Advogado familiarista, procurador do Estado de Minas Gerais e membro do IBDFAM.

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