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Inteligência artificial e o Direito

O presente estudo tem a pretensão de abordar a temática relacionada à Inteligência Artificial e o Direito, por meio de uma análise prognóstica de como pode vir a ser a adequação das novas tecnologias ao Direito.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Atualizado às 17:42

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A Inteligência Artificial (I.A) vem propiciando mudanças abruptas na nossa realidade contemporânea, diante deste cenário a realidade jurisdicional também acabará sendo afetada por este levante.

Um fator inegável são os benefícios de produtividade que a introdução da Inteligência Artificial propicia ao Poder Judiciário.

Ao abordar tal temática é importante partir de uma conceituação inicial do que seria esse novo instituto. Em termos gerais a Inteligência Artificial é um sistema pré-ordenado onde se introduz informações, o chamado in-puts, no alcance de se obter respostas pré-ordenadas, os out-puts, uma automação. Importante frisar que essa é uma definição superficial, com o caráter meramente introdutório.

A práxis judicante é permeada por procedimentos ordenados, tanto na esfera pública, quanto na privada, uma concatenação de atos e fatos, informações, desde a qualificação das partes, as provas a serem produzidas, a resposta do réu, até os pedidos finais. Todas essas informações são de relevante importância no deslinde do caso concreto.

É inegável que a utilização de um programa computacional de Inteligência Artificial no processamento de todas essas informações traria um ganho de produção substancial. A título de ilustração, no ano de 2019 em Tribunal de Justiça do Paraná (TJ/PR), utilizou-se de um Projeto de Inteligência Artificial e Automação (PIAA), em que mais de 16 (dezesseis) mil buscas de endereço no Bacenjud foram realizadas  em 240 (duzentos e quarenta) varas, com uma economia de tempo de 5 (cinco) minutos em cada busca, em média1. Diante do exemplo citado torna-se claro o benefício em termos de produtividade.

Na esfera privada a utilização da Inteligência Artificial se torna ainda mais patente, já é comum os escritórios de advocacia incorporarem a Inteligência Artificial no seu cotidiano laboral, seja na elaboração de uma simples petição, na busca de jurisprudências de forma aprofundada e até mesmo na coleta de informações. Na realidade brasileira, por exemplo, pode-se citar as empresas Alkasoft2, Benner3, e Corejurídico4, empresas nacionais especializadas em automação e serviços que trabalham com a Inteligência Artificial voltadas para o âmbito jurídico.

Depreende-se, portanto, que os sistemas de I.A já estão incorporados à realidade brasileira, todavia, por tratar-se de uma inovação falta ainda manejo sobre a temática.

A utilização da tecnologia propicia um estranhamento inicial, todavia, conforme o emprego desta tecnologia inovadora na realidade laboral alcança-se a virtualização.

Essa virtualização em termos gerais significa propiciar o acesso à justiça, a prestação jurisdicional por meio eletrônico, a chamada Justiça Digital. Por meio do processo judicial eletrônico a realidade jurisdicional brasileira já fez esse salto evolucional, deixando de lado os autos físicos para adentrarmos na era tecnológica, diante desta realidade a utilização de novos aparatos tecnológicos, tal qual a I.A já é uma realidade.

O inteligir algo é compreender, entender a razão de ser de alguma coisa, o processo cognitivo.

Por sua vez, o artificial é o oposto do natural, aquilo em que é necessário artifícios para se constituir, algo moldado, construído, constituído a partir de outras coisas, ou por influência de outras coisas.

Logo, infere-se que Inteligência Artificial é o processo cognitivo, leia-se aprendizado, de algo que não é natural.

Pelo bem do debate, há de se refletir. O próprio processo de cognição do cérebro humano também pode ser considerado artificial, algo que foi sendo modificado com o passar do tempo. Diferente de algo que surgiu de forma instantânea e natural. Ao longo da evolução humana o cérebro humano foi sendo desenvolvido, moldando o seu processo de cognição, portanto, podendo ser também considerado como artificial.

Independente disso, fato é que a maior parte das pessoas alcançou um processo de cognição semelhante, a partir daí sugerimos ser algo "natural". Reitere-se, de forma sugestiva, longe de ser uma afirmação taxativa.

Dado o nível de evolução do ser humano, fomos capazes de estabelecer um procedimento de automação, denominado Inteligência Artificial.

A automação nada mais é do que o traçado de dois pontos, o ponto "a" alcança o ponto "b" de forma pré-estabelecida.

Dito de outro modo, é o procedimento de automatizar uma ação.

Portanto, no atual estágio de I.A que alcançamos, o que conseguimos estabelecer por hora é um simples ato de automação. Através de informações que são inseridas em um sistema de I.A, será automatizada uma resposta pré-estabelecida.

No ambiente judiciário, em que se denota um longo trabalho cotidiano repetitivo, um sistema de I.A que seja capaz de entregar de forma instantânea e eficaz uma informação em que seria necessário um determinado tempo para se alcançar já é de bom proveito.

A partir deste ponto de I.A que alcançamos por hora, adentramos em outra seara.

Atualmente, estamos no ponto de um sistema de Inteligência Artificial fraco.

Retomando o argumento anterior, o cérebro humano foi estabelecendo um processo de cognição ao longo dos anos, ao passo da evolução humana.

Todavia, o que presenciamos no atual estado da arte é um processo evolutivo tecnológico muito rápido. Poderia se argumentar, de forma superficial e informal, que nos últimos 30 (trinta) anos evoluímos muito rápido em comparação ao processo evolucional do ser humano.

Da década de 1990 até a presente data, o ano de 2021, muitas inovações tecnológicas foram introduzidas na vida dos seres humanos. Se torna até uma árdua tarefa acompanhar toda a evolução tecnológica que presenciamos.

Logo, poderia se argumentar que o atual estágio de uma Inteligência Artificial fraca venha a ser ultrapassado em um curto espaço de tempo.

Daí surge o questionamento, alcançado-se a chamada Inteligência Artificial forte, do quê estaríamos realmente conjecturando?

Ora, se no atual estágio estamos falando de um processo de automação, pode-se inferir que com o passar dos anos, conforme forem acrescentando mais e mais informações esse procedimento se tornará extremamente eficaz.

Atrelando esse processo de automação extremamente eficaz a um contingente de informações, o chamado Big Data, bem como ao processo de aprendizado das máquinas, denominado Machine Learning, muito avançado, estar-se-ia falando do ponto de Singularidade.

Singular é algo único, portanto, um momento em que o sistema de Inteligência Artificial não necessitaria mais do ser humano para funcionar.

Trazendo tudo isso para o contexto do Direito, proponho um exercício de reflexão.

Imaginemos um sistema de I.A que seria totalmente produtivo e eficaz, com a taxa de erros ínfima, em que se tornaria plenamente efetivo o acesso à justiça a qualquer jurisdicionado, sem qualquer probabilidade de preconceito, seja de qual ordem for, de certa forma até menos oneroso do que atualmente.

O Direito regula as relações humanas, o Direito sobrevive por causa das relações sociais, daí se classifica como uma ciência social aplicada. 

O fim último de Direito é a preservação da ordem e do bem estar dos seres humanos, e quão maior for o grau de satisfação, zelo, proteção e organização das relações humanas mais eficaz será. E melhor será o bem estar da espécie humana.

Lhe proponho outro exercício reflexivo, em uma situação hipotética, você necessita da prestação de serviços de um advogado, então decide contratar o melhor advogado que existe, o mais preparado em todos os sentidos, os melhores argumentos, as melhores performances, o mais experiente, com o dom da oratória, todavia, pode ser que no dia da audiência do seu caso em específico esse advogado esteja em um dia ruim, e pode cometer um erro crasso, e prejudicar os seus interesses. Vejamos, para contratar o melhor advogado necessário despender uma boa quantia monetária.

Lado outro, você teria a possibilidade de contratar um advogado que é um sistema de Inteligência Artificial, ele não lhe proporcionará o melhor argumento de todos, nem sequer a melhor oratória, e não haverá sequer uma performance, mas o ponto é que nesse exemplo hipotético, o advogado de I.A não irá cometer um erro crasso.

Ademais, pode ser que esse sistema de Inteligência Artificial que atua como advogado nem seja dos mais caros. Além disso, esse advogado irá entregar a prestação jurisdicional de forma eficaz.

Na esfera pública, sequer é necessário uma reflexão exaustiva, um dos maiores reclamos da entrega da prestação jurisdicional no Brasil é justamente a morosidade, existe um verdadeiro acúmulo de demandas judiciais. E não estamos falando de uma prestação de serviço público de forma atabalhoada, a verdade é que existe um enorme contingenciamento de demandas, falta de estruturação, dentre tantos outros infortúnios.

O ponto é que um sistema de Inteligência Artificial seria uma válvula de escape para a maior parte desses infortúnios que assolam o poder judiciário.

Contudo, nem tudo são flores, traçar um exercício prognóstico como esse é tarefa das mais fáceis, o difícil é alcançar tudo isso.

Na realidade, presenciamos uma evolução tecnológica muito veloz. Todavia, o ser humano ainda permanece no seu âmago de insensatez.

No atual estágio, de uma Inteligência Artificial fraca, o ser humano elabora tal sistema de I.A.

Ou seja, o ser humano que introduz os in-puts, e basta que um viés conturbado seja incorporado neste in-puts, que o resultado a ser alcançado, o out-puts, não será o esperado, pelo contrário. Será externado de forma errônea, vindo a prejudicar o jurisdicionado, deixando de lado o cerne do Direito, prejudicando a sociedade como um todo.

Diante deste problema, qual seria a solução? Esse é o ponto em questão, talvez não haja uma resposta simples, afinal de contas nada é tão simplório na contemporaneidade.

Teríamos de alcançar uma forma de constituir os sistemas de Inteligência Artificial atualmente, sem qualquer viés, com uma visão do todo informal e impessoal. E tal tarefa teria de ser estabelecida desde agora, para que não ocorra um contingenciamento de informações totalmente enviesadas. Tarefa árdua.

Um trabalho conjunto, com os programadores, os estudiosos do Direito, das Ciências Sociais, das Ciências Políticas, da Filosofia, da Antropologia, uma formação humanística robusta. Que coloque o ser humano como o centro de tudo. Quiçá um antropocentrismo, um Antropocentrismo Digital.

Retomando, o Poder Judiciário nacional já tem iniciativas que adotam a inteligência artificial, e no cenário global também já existem iniciativas promissoras.

Sem sombra de dúvidas o caso mais avançado é o da Estônia, um país baltíco, considerado o lugar mais digital do mundo, que em 2019 manifestou o início dos trabalhos na formulação de um sistema de I.A encarregado de atuar na função julgadora nas causas de menor complexidade. Tal iniciativa seria um marco para a contemporaneidade, afinal de contas umas das tarefas mais importantes em qualquer conjunto social é justamente essa função julgadora, a própria representação da manifestação do Estado ao caso concreto.

Independente de tal desiderato se concretizar, o ponto de relevo é a sua própria iniciativa, um demonstrativo que estaríamos a passos largos para o alcance do malfadado ponto de Singularidade.

Outro ponto de debate no que pertine à temática, é a troca do profissional do Direito por um sistema de Inteligência Artificial.

É inegável que sempre que ocorre a introdução de alguma novidade tecnológica ocorre uma mudança na realidade laboral.

Todavia, essa linha de argumentação é empregada desde a Revolução Industrial no século XVIII, acontece que as mudanças fazem parte do caminhar da espécie humana, sempre houveram e haverão de acontecer rupturas, nas camadas sociais, nas formas de trabalho, na organização estatal etc.

E em todos esses cenários o ser humano acaba se incorporando a essa nova realidade. Essa toada vem desde a pré-história.

Novas formas de trabalho irão surgir, novas ocupações laborais, novas organizações estatais, novas estratificações sociais, tudo isso há de permanecer. 

Existem tantos outros problemas que estão na ordem do dia, como a questão do desmatamento ambiental, à título de ilustração. Um problema contundente, de real importância e que pode modificar diretamente a sobrevivência da espécie de vida humana.

Ademais, mesmo que alcancemos o ponto de ruptura da Singularidade, não se pode olvidar que o bem protegido em última análise é a vida humana, o bem estar social, a organização da vida em sociedade. E em todos esses aspectos um ponto relevante é o trato humano.

Deixando de lado o aspecto etéreo, ideológico e religioso, enquanto espécie, os seres humanos foram moldados com o passar do tempo. A espécie humana nunca foi a mais forte, nem a mais ágil, e mesmo assim alcançamos o topo da cadeia de espécies de vida deste planeta.

Na realidade, o corpo biológico humano pode ser considerado a tecnologia mais evoluída deste planeta. Algumas pessoas têm dificuldades de enxergar, mas a realidade é que a espécie humana foi se adequando ao ambiente para sobreviver. Não algo estanque, constituído de um jeito X e que perdura desse mesmo jeito pela eternidade, pelo contrário.

Evidentemente, que mudanças abruptas venham a ocorrer, não somente no Direito, mas na sociedade como um todo.

Contudo, não podemos perder de vista que conforme essas mudanças acontecem o ser humano tem a plena capacidade de se transformar com essas mudanças.

Retomando ao Direito, o aspecto preponderante para qualquer profissional da área são as relações interpessoais, o aspecto subjetivo do ser humano, o seu lado humanístico, a alteridade, a capacidade de ter empatia pelo próximo. Estes são traços da espécie humana que não surgiram espontaneamente, pelo contrário.

Denota-se um tempo incalculável para que chegássemos a esse patamar.

Conceitos basilares para o Direito, tais quais: a dignidade da pessoa humana, a autodeterminação dos povos, a boa-fé presumida, a presunção de inocência, o estado democrático de direito, a separação de poderes etc.; todos estes são princípios e garantias que foram alcançados com o tempo, por meio de debates, reivindicações, batalhas. Tudo isso compõe a trajetória da espécie humana.

Tais aspectos, nenhuma máquina do mundo será capaz de substituir.

Outro ponto a se refletir, partindo do pressuposto de que não haveríamos de utilizar as inovações tecnológicas no âmbito judicial, como frear essa progressão? As inovações tecnológicas invadiram a nossa rotina de forma abrupta, este breve estudo só pode ser realizado por meio da tecnologia, tantas outras facilidades da vida moderna somente se mostram possíveis por causa da tecnologia, é uma batalha impossível de se travar. Vale àquela velha máxima, se não podes para com o inimigo, alie-se à ele.

O profissional do Direito deverá conquistar novas habilidades, novos conhecimentos, deverá atualizar-se com uma maior frequência, inteirar-se de todos os novos aparatos que surgirem, e tudo isso no alcance de se tornar um profissional melhor, mais completo, mais preparado para os novos desafios. No alcance de se obter uma melhor prestação jurisdicional, a fim de efetivar-se o acesso à justiça, em prol do bem comum.

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Paulo Cosmo Jr.

Paulo Cosmo Jr.

Possui graduação em bacharelado em Direito - LAEL VARELLA EDUCACAO E CULTURA LTDA (2020).

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