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Análise do artigo 982, inciso I, do CPC: a suspensão de processos "pendentes"

A admissão do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas não pode gerar a automática suspensão de todos os processos em trâmite, mas apenas daqueles que não tiveram seu mérito julgado.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Atualizado às 08:21

(Imagem: Arte Migalhas)

O inciso I, do artigo 982, do Código de Processo Civil de 2015, prevê que, uma vez admitido o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, o relator "suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso".

No mesmo sentido, o artigo 313, inciso IV, do Código de Processo Civil, prevê como uma das situações em que ocorrerá a suspensão do processo a "admissão de incidente de resolução de demandas repetitivas".

A presente análise pretende demonstrar a impossibilidade de a suspensão mencionada no artigo 982, inciso I, e 313, inciso IV, ambos do CPC, alcançar os processos com decisão judicial transitada em julgado. Pois bem.

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, previsto nos artigos 976 ao 987, do Código de Processo Civil, é um instrumento de otimização da prestação jurisdicional, que busca alcançar um número significativo de demandas semelhantes, a elas aplicando solução jurídica também semelhante.

Em sua dissertação de Mestrado, Lucas Cavina Mussi Mortati afirma que:

"Disso, extraem-se dois objetivos que o incidente persegue: a) uniformizar a jurisprudência, deixando previsível a postura judicial diante da interpretação e aplicação da norma questionada, em observância à isonomia e à segurança jurídica; b) abreviar e simplificar a prestação jurisdicional, uma vez que, resolvida pelo tribunal a questão de direito presente em todos os múltiplos processos individuais ou coletivos, a solução destes se simplifica, podendo ser rapidamente definida, em prestígio à duração razoável do processo constitucionalmente assegurada e aos princípios de economia e efetividade da prestação jurisdicional." 1

Com objetivo de garantir a segurança jurídica, os juízes e os tribunais devem adotar as teses jurídicas contidas nos julgamentos resultantes dos procedimentos de resolução de demandas repetitivas, conforme disposto no art. 927, III do CPC.

A fixação da tese jurídica firmada no IRDR deve ser adotada pelos demais órgãos e juízes vinculados àquele tribunal em demandas que tratam do mesmo assunto.

No entanto, o Código de Processo Civil, para permitir a aplicação da aludida tese jurídica, dispõe que os processos em trâmite que versem sobre a mesma matéria objeto do IRDR devem ser suspensos por um ano (CPC, art. 980).

Diante disso, pergunta-se: 1) Qual o alcance do termo "processos pendentes", previsto no inciso I, do artigo 982, do CPC?; e mais, 2) Processos transitados em julgado, já em fase de cumprimento de sentença definitivo, podem ser suspensos em razão da admissão de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas?

A resposta, nos parece, ser simples e até óbvia de certo modo:

1) Por processos pendentes deve ser entendido aqueles que não tiveram seu mérito apreciado pelo Poder Judiciário. 2) Como consequência, processos com decisão transitada em julgado não podem ficar suspensos em razão da admissão de IRDR, admissão esta ocorrida após o trânsito em julgado.

Ora, não pode ser aplicada automaticamente a tese fixada em tema de IRDR em processos definitivamente julgados, sob pena de afronta à coisa julgada. Também não haverá qualquer fundamento para a suspensão de tais processos com trânsito em julgado até o julgamento do IRDR, pois a tese que será fixada não será automaticamente aplicada.

Considerando que a finalidade do IRDR é garantir a aplicação de solução jurídica igual a demandas idênticas, o sobrestamento deve ser aplicado apenas para as causas que ainda aguardam solução jurídica e não àquelas demandas onde a fase cognitiva já se encerrou.

Se a fase cognitiva já se encerrou, nenhum outro julgamento será cabível, sob pena de ofensa aos artigos 503, 505, 507 e 508, todos do Código de Processo Civil.

Destaca-se que a coisa julgada deve ser entendida como a qualidade que torna a decisão de mérito imutável e indiscutível. Como tal, pode e deve ser revista apenas em raras situações, que estão expressamente arroladas no Código de Processo Civil, normalmente, por meio da chamada Ação Rescisória.

Oportuno destacar que, mesmo em situações ainda mais relevantes, em que se julga a constitucionalidade/inconstitucionalidade de preceito normativo, prevalece o entendimento de ser necessário o ajuizamento de ação rescisória.

Nesse sentido, o Colendo Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 733 de repercussão geral, firmou o entendimento de que "a decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento diferente; para que tal ocorra, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria".

Ora, se mesmo nesses casos se faz necessário o ajuizamento de Ação Rescisória para desconstituição da coisa julgada, imagine-se, então, em caso de fixação de tese de IRDR. Por óbvio, prevalece a coisa julgada até sua devida desconstituição, se o caso.

Neste sentido lecionam Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha:

"Já se viu que o acórdão do incidente de julgamento de casos repetitivos produz efeitos em relação a processos atuais e futuros. E em relação às decisões passadas, já transitadas em julgado? Pode a tese firmada ser utilizada como fundamento para eventual ação rescisória baseada no inciso V do art. 966 do CPC?

A resposta passa pelo enunciado 343 da súmula do STF, analisado no capítulo sobre ação rescisória. (...)

O 343 da súmula do STF prescreve que "não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais". Esse enunciado deve ser aplicado, mas com algumas ponderações." 2

Desta forma, suspender um processo em execução definitiva para que se aguarde o que será fixado em tema de IRDR é inadmissível!

Defender a suspensão, além de implicar em afronta à efetividade do processo, é o mesmo que permitir, sem a devida ação rescisória, que a tese nova que será fixada em IRDR desconstitua a coisa julgada.

Não entender dessa forma é o mesmo que admitir a existência de força extraordinária do IRDR que retira a eficácia da coisa julgada, rejeitando, assim, a executividade do título de obrigação definitiva e, por conseguinte, negar vigência a todos os dispositivos que regem a coisa julgada.

A legislação processual civil é bastante clara ao prever que o precedente vinculante fixado em IRDR terá aplicação apenas para os processos futuros e para os processos pendentes sem trânsito em julgado. As demandas anteriores à formação da decisão paradigma proferida em IRDR acobertadas pelo manto da coisa julgada não serão revistos automaticamente.

Nesse sentido, Araken de Assis aponta que a suspensão não atingirá o cumprimento definitivo de decisão, em razão da autoridade da coisa julgada que impede a retroatividade da tese jurídica eventualmente firmada no precedente:

"Essa suspensão não abrangera, todavia, o cumprimento definitivo de decisão que, no todo ou em parte, haja julgado a questão submetida ao incidente. E a razão é simples: a autoridade da coisa julgada impede a retroatividade da tese jurídica eventualmente firmada no precedente." 3

A suspensão determinada quando da admissão do IRDR tem a finalidade de evitar decisões diferentes em casos análogos. E, ainda que o processo trate da mesma matéria abordada no IRDR em questão, se não houver pendência de julgamento de mérito, ou seja, se já houve análise cognitiva e decisão final transitada em julgado, não há que se falar em aplicabilidade do que vier a ser decidido em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. 

Portanto, claramente incabível a suspensão de processos com decisão definitiva, em fase de execução, em razão da admissão de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. O art. 982, I do CPC é claro ao dispor a suspensão dos processos pendentes! Processos pendentes entende-se por: pendente de julgamento. Se já houve o julgamento definitivo, não cabe novo julgamento, resta apenas a realização dos atos próprios da fase executiva.

_________

1 MORTATI, Lucas Cavina Mussi. O incidente de resolução de demandas repetitivas no ordenamento jurídico brasileiro. Tese (Mestrado em Direito Processual Civil) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2021. p. 31/32.

2 DIDIER JR., Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil, 3º Volume, 14ª Ed.[S.I]: Editora JusPodivm, 2020, p. 710.

3 Assis, Araken de. Manual dos Recursos -9. Ed. Ver. Ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 473

Carina Kobashigawa

Carina Kobashigawa

Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2016. Pós-graduada em Direito Processual Civil na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 2019. Pós-graduanda em Gestão de Pessoas na USP/ESALQ. Membro: Ordem dos Advogados do Brasil e Associação dos Advogados de São Paulo.

Luis Renato Avezum

Luis Renato Avezum

Sócio do escritório Advocacia Sandoval Filho.

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