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Retroatividade do Código Florestal de 2012 e tema 1.062 do STJ

Quando do julgamento do referido processo afetado ao rito dos recursos repetitivos, se estabeleça efetivamente, por definição pretoriana superior e vinculativa, a possibilidade de retroação das normas do Código Florestal.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Atualizado às 08:34

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

José Maria da Costa1

1. Tribunais infraconstitucionais vêm negando vigência ao Código Florestal

Com o advento da lei 12.651, de 25/5/12 (Código Florestal), alguns tribunais regionais do país e o próprio Superior Tribunal de Justiça, ora esquecidos de uma interpretação sistêmica da lei específica e do ordenamento como um todo, ora movidos por um sentimento ou por um zelo mais ideológico do que jurídico, vêm negando aplicação prática a diversos de seus dispositivos, esvaziando-os, assim, de eficácia nos casos concretos.

Sem pretensão alguma de exaurir a lista desses desmandos jurídicos por parte exatamente de quem deveria zelar pelo fiel cumprimento da lei, apontam-se três exemplos emblemáticos.

2. Negam vigência ao art. 15

Num primeiro caso, o art. 15 do CF-2012 admite textualmente "o cômputo das Áreas de Preservação Permanente no cálculo do percentual da Reserva Legal do imóvel", uma vez preenchidos os requisitos ali discriminados.

O Superior Tribunal de Justiça, entretanto, para não aplicar tal preceito legal, tem lançado mão de argumentos como os seguintes: (i) "em matéria ambiental, deve prevalecer o princípio tempus regit actum"; (ii) assim, não se deve "admitir a aplicação das disposições do novo Código Florestal a fatos pretéritos, sob pena de retrocesso ambiental"; (iii) de modo mais específico, deve ser "afastada [a] imediata aplicação do novo Código Florestal, no que importa ao cálculo da reserva legal" em casos dessa natureza.2

3. Negam vigência ao art. 61-A

Num segundo caso, o art. 61-A, § 12, para áreas de preservação permanente situadas em "áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008", admite "a manutenção de residências", apenas exigindo, em complementação, que "não estejam em área que ofereça risco à vida ou à integridade física das pessoas".

O mesmo Superior Tribunal de Justiça, contudo, partindo do princípio de que, na origem, a conduta do particular, em hipóteses desse jaez, contrariou o ordenamento jurídico em vigor à época de sua ocorrência, finca, como fundamentos para negar vigência a tal dispositivo, argumentos como os seguintes: (i) "a Área de Preservação Permanente [...] qualifica-se como território non edificandi"3; (ii) nesse quadro, "o art. 4º da lei 4.771/65, norma vigente à época dos fatos, é explícita ao prever que somente é possível a supressão da vegetação de Área de Preservação Permanente nos casos de utilidade pública ou de interesse social"4; (iii) e "o atual Código Florestal (lei 12.651/2012), no tocante à supressão de vegetação situada em Área de Preservação Permanente - APP, exige, em seu art. 8º, alguns requisitos que não foram preenchidos no caso concreto", devendo-se ressaltar, ademais, que é "descabida a supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente - APP que não se enquadra nas hipóteses previstas no art. 8º do Código Florestal (utilidade pública, interesse social e baixo impacto ambiental)"5; (iv) as ressalvas legais para intervenção dessa natureza em áreas de preservação permanente "dão-se a título excepcional e em numerus clausus, com base na utilidade pública, interesse social e intervenção de baixo impacto"6; (v) com esse panorama e esse conjunto de argumentos, negando aplicação ao indigitado dispositivo, fundamentam as decisões da mencionada Corte de Justiça que "os comandos legais que autorizam a exploração antrópica das Áreas de Preservação Permanente devem ser interpretados restritivamente, sob pena de colocar em risco o equilíbrio ambiental, comprometendo a sobrevivência das presentes e futuras gerações".7

4. Negam vigência ao art. 68

Num terceiro caso, o caput do art. 68 determina, no campo da reserva florestal legal, que aquele que removeu vegetação nativa na consonância com as determinações legais vigentes à época de sua ocorrência não estará obrigado a sua recomposição, compensação ou regeneração para os percentuais exigidos pela codificação atual.

O Superior Tribunal de Justiça, todavia, mais uma vez, invocando diversos outros arestos com decisões similares, assim assentou: (i) "em matéria ambiental, a adoção do princípio 'tempus regit actum' impõe obediência à lei em vigor quando da ocorrência do fato"; (ii) essa postura visa a "proteger o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, [...] para evitar a redução do patamar de proteção de ecossistemas frágeis sem as necessárias compensações ambientais"; (iii) por isso, quando se trata de reserva legal, não importando que se esteja decidindo a questão referente à legislação revogada, mas já na vigência do CF-2012, "constitui obrigação do proprietário ou adquirente tomar as providências necessárias à restauração ou à recuperação das formas de vegetação nativa para se adequar aos limites percentuais previstos nos incisos do art. 16 do Código Florestal [de 1965]".8

5. Razões para aplicar o art. 15

Ora, a ADIn 4901/13, ajuizada pelo Procurador-Geral da República, arguiu de inconstitucionalidade tal dispositivo do CF-2012, utilizando os seguintes argumentos: (i) "o mecanismo previsto no art. 15 acaba por descaracterizar o regime de proteção das reservas legais e, assim, viola o dever geral de proteção ambiental previsto no art. 225 da Constituição da República, as exigências constitucionais de reparação dos danos ambientais causados (art. 225, § 3º) e de restauração de processos ecológicos essenciais (art. 225, § 1º, I)"; (ii) além disso, afronta a "vedação de utilização de espaço especialmente protegido, de modo a comprometer os atributos que justificam sua proteção (art. 225, § 1º, III) e o comando constitucional de que a propriedade atenda sua função social (art. 186)"; (iii) por essas razões, deve ser declarada sua inconstitucionalidade.

O Supremo Tribunal Federal, contudo, reconheceu a integral constitucionalidade do dispositivo questionado, e o fez com base nos seguintes argumentos: (i) "impedir o cômputo das áreas de preservação permanente no cálculo da extensão da Reserva Legal equivale a tolher a prerrogativa da lei de fixar os percentuais de proteção que atendem da melhor forma os valores constitucionais atingidos, inclusive o desenvolvimento nacional (art. 3º, II, da CRFB) e o direito de propriedade (art. 5º, XXII, da CRFB)"; (ii) além disso, "o pedido de inconstitucionalidade desconsidera que, na dosagem dos percentuais gerais de Reserva Legal - os quais [...] podem atingir elevados 80% (oitenta por cento) do imóvel -, o legislador já levou em consideração o impacto ambiental causado pelo cômputo das áreas de preservação ambiental"; (iii) "em outras palavras, não fosse possível o 'desconto' das APPs, poderia o regulador, legitimamente, ter fixado os percentuais de Reserva Legal em patamar bem mais brando"; (iv) por fim, para concluir o raciocínio, anotou que, "em um mundo ideal, seria possível manter incólume a totalidade da vegetação existente no país", mas o mundo da realidade dos fatos "impõe sacrifícios e escolhas trágicas que não devem ser resolvidas pelos Tribunais".9

A esse respeito, não se deve olvidar, ademais, que o cômputo de que aqui se trata não constitui novidade trazida pela codificação florestal em vigor, uma vez que o CF-1965, já com as disposições incluídas pela MP 2.166-67/2001, trazendo previsão similar, já o admitia textualmente, em seu art. 16, § 6º, uma vez preenchidos determinados requisitos: "Será admitido, pelo órgão ambiental competente, o cômputo das áreas relativas à vegetação nativa existente em área de preservação permanente no cálculo do percentual de reserva legal".

Avulta acrescentar outros argumentos a esse raciocínio: (i) o art. 15 do CF-2012, ao permitir a inclusão das áreas de preservação permanente no cálculo da reserva legal, sem dúvida, trata do acertamento do passivo ambiental de situações encontradas pela codificação atual em desacordo com a legislação então em vigor; (ii) na condição de norma de acertamento do anterior passivo ambiental, é óbvio que constitui regra do novo diploma a reger situação de fato anterior a sua vigência, e quanto a isso não há o que discutir; (iii) nesse quadro, a possibilidade de solução jurídica que se apresenta ao intérprete e ao julgador é, em tese, ou aplicar a nova regra trazida pelo art. 15 do CF-2012, ou barrar-lhe a incidência, por suposta inconstitucionalidade, com supedâneo em diversos motivos alegáveis (o que abarca a possibilidade de fundamentar com o princípio tempus regit actum); (iv) na hipótese versada, ao optar pela solução por último alvitrada, fundou-se o julgador no argumento de não admitir "a aplicação das disposições do novo Código Florestal a fatos pretéritos", o que, com a devida vênia, configura rematado contrassenso, certo como é que as normas de regularização e de acertamento do passivo ambiental encontrado pelo advento do CF-2012 incidem, a toda evidência e necessariamente, sobre situações de fato que se cristalizaram antes de sua vigência; (v) com o quadro formado por esse raciocínio, não se pode esquecer que a ADI 4901/2013 arguiu de inconstitucionalidade o art. 15, caput, do CF-2012, aduzindo exatamente os mesmos argumentos utilizados pela v. decisão aqui considerada; (vi) deu-se, contudo, que o STF reconheceu a integral constitucionalidade do referido artigo; (vii) uma vez declarado constitucional pelo STF o mencionado dispositivo, nada mais pode impedir sua incidência a casos práticos, nos exatos termos de sua redação aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela Presidência da República; (viii) e isso equivale a afirmar que, uma vez que o próprio STF já declarou a constitucionalidade do dispositivo, afastando, assim, as imputações que a ele se faziam nesse campo, é obrigatória, por decorrência lógica, sua aplicação e sua incidência aos casos concretos nos termos de sua dicção, de modo que não podem os tribunais infraconstitucionais do País vir, agora, novamente pretender reputá-lo inconstitucional e, desse modo, negar-lhe aplicação.

6. Razões para aplicar o art. 61-A

Quanto ao art. 61-A do CF-2012, importa anotar que a ADI 4937/2013, ajuizada pelo PSOL, impugnou-lhe a constitucionalidade com esteio nas seguintes razões: (i) "ao permitir a continuidade das condutas lesivas ao meio ambiente em áreas consolidadas dentro das áreas de preservação permanente", o mencionado dispositivo afronta "o dever de preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais, previsto no art. 225, § 1º, I e III, da Constituição Federal"; (ii) no caso, ademais, "a lei confere tratamento desigual aos proprietários de imóveis rurais que cometeram condutas lesivas ao meio ambiente"; (iii) isso assim acontece, porque, pela redação do mencionado artigo, "os proprietários rurais que tenham invadido as áreas de preservação permanente poderão continuar a explorar economicamente as referidas áreas, desde que o tenham feito antes de 22/7/2008"; (iv) isso equivale a dizer que "haverá uma dualidade de proprietários rurais", a saber, "os que podem explorar as áreas de preservação permanente e os que não podem"; (v) além disso, "necessário frisar que aqueles proprietários que não poderão explorar as áreas de preservação permanente (ou seja, os que serão economicamente 'prejudicados') foram os que sempre respeitaram a legislação ambiental"; (vi) nesse quadro, assim, "está-se diante de uma verdadeira premiação aos infratores/desmatadores, o que não se coaduna, de forma alguma, com os princípios constantes da Constituição Federal".

O Supremo Tribunal Federal, entretanto, por maioria de votos, vencidos os ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, e, em parte, o ministro Edson Fachin, reconheceu a integral constitucionalidade do art. 61-A do CF-2012, e isso na totalidade de suas disposições.

Acrescer observar, quando se consideram os fatos que se podem subsumir ao dispositivo aqui considerado, que necessariamente se está diante de uma situação originariamente desconforme com a lei em vigor à época de sua ocorrência. Assim, quanto a isso, não paira dúvida alguma de que o artigo e os respectivos parágrafos sob análise vêm para "regulamentar as atividades que já estão sendo praticadas nas Áreas de Preservação Permanente, ou seja, busca legitimar e legalizar aquilo que vinha sendo realizado em contravenção às normas existentes".10 Nesse panorama, aliás, não faria sentido falar em correção de uma situação que estivesse escorreita e em perfeito acordo com as leis em vigor à época.

É exatamente por essa razão que o art. 59, caput, ao iniciar as regras das disposições transitórias, determina de modo taxativo: "A União, os Estados e o Distrito Federal deverão [...] implantar Programas de Regularização Ambiental - PRAs de posses e propriedades rurais, com o objetivo de adequá-las aos termos deste Capítulo".

Ou seja: se a situação de fato encontrada pelo CF-2012 não fosse contrária ao ordenamento jurídico até então em vigor, não haveria necessidade de que a nova codificação viesse a adequar coisa alguma, nem mesmo de que a União, os Estados e o Distrito Federal implantassem programa algum de regularização ambiental. Afinal, não se vai regularizar nem adequar o que sempre esteve em plena e absoluta conformidade com o sistema jurídico.

Adicionalmente, vale anotar que, também por não considerar essa dualidade de blocos de regras jurídicas erigidas pelo CF-2012 é que a jurisprudência da nova codificação florestal se equivoca, quando busca na parte geral do CF-2012 (arts. 1º-A/58), vale dizer, nas disposições permanentes, as regras com que decide casos de regularização ambiental, casos esses que - repita-se e insista-se - devem sujeitar-se, por determinação específica do art. 59, a disposições transitórias (arts. 59/68), ou seja, a determinações próprias e a previsões peculiares.

7. Razões para aplicar o art. 68

Além dos motivos já elencados para os dispositivos anteriormente referidos, aditam-se especificamente alguns fundamentos que obrigam a aplicação integral do art. 68: (i) uma vez em vigência o CF-2012, foram ajuizadas contra ele quatro ações diretas de inconstitucionalidade, mas raros foram os dispositivos tidos por inconstitucionais, bem como mais raros os que receberam interpretação conforme a CF-1988; (ii) com ênfase especial para os artigos que integram as disposições transitórias (arts. 59/68) e com destaque específico para o art. 68, o certo é que se encontram entre eles dispositivos que foram questionados pelas ADIs referidas e, em sua quase totalidade, reconhecidos como constitucionais; (iii) de modo mais específico para o art. 68, se foi ele tido por constitucional pela mais alta corte de controle de constitucionalidade do País, deve, por consequência, ser regularmente aplicado, sem que assista ao intérprete ou ao aplicador da lei voltar a negar-lhe vigência ou viabilidade prática, quer por nova atribuição da pecha de inconstitucionalidade, quer pelo esvaziamento de sua aplicabilidade aos casos concretos por algum outro fundamento, pretexto ou artifício hermenêutico; (iv) com isso, não se permite, em tal situação, que se aleguem, em nova investida, princípios tão caros ao Direito Ambiental - como o da precaução, o da prevenção e aquele que veda o retrocesso - para, com isso, pretender inviabilizar a aplicação prática de tal dispositivo da codificação florestal.

E não é só: não se olvide que, cortando pela raiz a possibilidade de continuação das interpretações contra legem até então vigentes nos tribunais infraconstitucionais do país, o Min. Luiz Fux, ao dar pela constitucionalidade do art. 68, no julgamento da respectiva ADI que o impugnou, decidiu expressamente que "eventuais atos regulares de supressão praticados no passado, em consonância com a legislação vigente à época, recobrem-se da estabilidade própria do ato jurídico perfeito, cujo fundamento constitucional é o princípio da segurança jurídica".11

E o min. Marco Aurélio, didaticamente explanando a interpretação devida ao referido dispositivo, acrescentou explicitação, em que especifica, justifica e defende a gradação e a crescente restrição de remoção da vegetação nativa por parte das leis editadas ao longo dos tempos: (i) assim, pelo CF-1934, proibiu-se "o desbaste das matas privadas"; (ii) mais tarde, o CF-1965 "trouxe novos limites para derrubada de florestas", e isso "com percentuais variáveis segundo o bioma no qual localizadas"; (iii) nessa gradativa restrição, "a proteção estampada no artigo 16 [do CF-1965], com o texto então em vigor, somente se estendia às propriedades rurais onde houvesse floresta, nada havendo a respeito dos demais tipos de vegetação"; (iv) ao depois, anos mais tarde, "a Lei nº 7.803, de 18 de julho de 1989 [...], acrescentou dois parágrafos no artigo 16 do Código Florestal, para [...] estender a proteção legal às áreas de cerrado".12

Com esse quadro, é preciso até mesmo perceber que, ao contrário de outros dispositivos do bloco, o art. 68 do CF-2012 não cuida, em última análise, da regularização de áreas consolidadas em áreas de reserva legal, como fruto de conduta ilícita e antijurídica havida ao tempo das leis hoje revogadas, em situações que o legislador entenda deva permitir que ingressem na legalidade mediante as regras erigidas nas normas de regularização constantes das disposições transitórias (arts. 59/68); dirige-se, ao revés, de modo certo, claro e exclusivo, aos proprietários ou possuidores de imóveis rurais que realizaram remoção de vegetação nativa respeitando as leis em vigor à época de tal ocorrência, de modo que a remoção de vegetação a que procederam não se revestiu de laivo algum de ilegalidade, mesmo quando se considera a legislação revogada, já devidamente interpretada na conformidade com os marcos temporais de proteção gradativa lembrados pelo STF no julgamento das ADIs aforadas contra o CF-2012.

Vale dizer que, "explicitando o óbvio e consolidando regra que nem precisaria constar de disposição de lei, o art. 68 registra, apenas e tão somente, que aquele que, na vigência dos ordenamentos revogados, removeu vegetação cuja retirada não era vedada à época de tal ocorrência, estará dispensado 'de promover a recomposição, compensação ou regeneração para os percentuais exigidos' pelo CF-2012". E, assim, tal dispositivo "apenas erige em artigo específico da nova codificação florestal o princípio de respeito à situação consolidada na conformidade com a lei de seu tempo, ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido".13

Ante esse quadro, em última análise, ante a própria desnecessidade de existência do art. 68 na estrutura do CF-2012, nem mesmo haveria razão lógica ou jurídica para indagações acerca da possibilidade de sua retroação para ocorrências anteriores à vigência da atual codificação florestal.

8. A razão dos PRAs é regularizar o passado

A esta altura, insiste-se mais uma vez em que, na esfera intrínseca do CF-2012, como regra, o legislador estabeleceu normas permanentes para o futuro nas disposições gerais (arts. 1º-A/58), enquanto determinou normas gerais de acertamento para as irregularidades do passado nas disposições transitórias (arts. 59/60), esmiuçando tal possibilidade de regularização para as áreas de preservação permanente (arts. 61-A/65) e para as áreas de reserva legal (arts. 66/68).

Para viabilizar tal escopo de acertamento, iniciando o Capítulo XIII, que introduz o tratamento das disposições transitórias, o caput do art. 59 do CF-2012 determina que os entes federativos deverão implantar os "Programas de Regularização Ambiental - PRAs" para as "posses e propriedades rurais", com o objetivo "adequá-las aos termos deste Capítulo".

Como não é difícil perceber, o artigo por último referido explicita que o escopo das normas atinentes aos Programas de Regularização Ambiental é fundamentalmente a acomodação, a adaptação, o ajustamento e a conformação à novel codificação florestal (e mais especificamente aos termos do capítulo que trata das disposições transitórias) por parte das situações de fato por ela encontradas em desconformidade com o ordenamento anterior, normalmente respeitado o limite temporal de 22.07.2008. Em outros dizeres: explicita o dispositivo que visam as normas referidas a "acomodar as atividades eventualmente desconformes das propriedades e posses rurais com áreas assim consolidadas até tal data às determinações do quanto estatuído pelo Capítulo XIII do CF-2012, dando-as por regularizadas, uma vez cumpridos os requisitos necessários".14 Sem muito esforço de raciocínio, é de fácil conclusão que, se não se destinassem a regularizar o passado, as normas dos arts. 59/68 do CF-2012, em última análise, não teriam razão de ser, nem se revestiriam de serventia alguma.

9. Negar retroatividade ao CF-2012 é heresia jurídica

Ante esse conjunto de argumentos, em qualquer dos três exemplos apontados, dizer que não se deve "admitir a aplicação das disposições do novo Código Florestal a fatos pretéritos, sob pena de retrocesso ambiental"15 , ou que "os comandos legais que autorizam a exploração antrópica das Áreas de Preservação Permanente devem ser interpretados restritivamente", sem possibilidade de incidência para regularizar fatos pretéritos16, ou, ainda, que "a adoção do princípio 'tempus regit actum' impõe obediência à lei em vigor quando da ocorrência do fato"17, além de rematada heresia jurídica, constitui flagrante negativa de vigência não apenas dos arts. 15, 61 e 68, mas também de todo o conjunto das normas constantes dos arts. 59/68, dispositivos esses que sobreviveram incólumes, quanto ao reconhecimento de constitucionalidade, aos severos ataques das ADIs que contra eles foram ajuizadas.

10. Definição do tema 1.062 do STJ

Feitas essas ponderações todas como premissas de raciocínio, esclarece-se que, após muita insistência de recursos às instâncias superiores postulando a aplicação de tais normas que tratam da regularização ambiental no sentido acima apontado, sempre com negativas claras, taxativas e peremptórias como resposta por parte do mais elevado tribunal infraconstitucional do país, e isso em todos os anos que se seguiram ao início de vigência do Código Florestal de 2012, enfim o Resp 1.762.206 - SP (2018/0040853-5)18 chegou às mãos da ministra Regina Helena Costa, e, por proposta dela, em data de 08.09.2020, os ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, acordaram os seguintes aspectos: (i) definir, como tese (que passou a ser identificada como tema 1.062 do STJ), a "possibilidade de se reconhecer a retroatividade de normas não expressamente retroativas da lei 12.651/12 (novo Código Florestal) para alcançar situações consolidadas sob a égide da legislação anterior"; (ii) para tanto, "afetar o processo ao rito dos recursos repetitivos"; (iii) em termos de movimentação processual, "suspender a tramitação de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional, nos termos do artigo 1.037, II, do CPC/15".19

11. Necessidade de procedência da afetação e de fixação da tese

Ante os argumentos que embasaram os comentários até aqui feitos, vê-se que é de mister que, quando do julgamento do referido processo afetado ao rito dos recursos repetitivos, se estabeleça efetivamente, por definição pretoriana superior e vinculativa, a possibilidade de retroação das normas do Código Florestal que tenham por escopo o acertamento do passivo ambiental, incrustadas que se acham, sobretudo, nas disposições transitórias (arts. 59/68).

Como denota o próprio adjetivo encartado em tal circunlóquio, têm as normas ali contidas a característica do efêmero, do passageiro, do provisório. Suas regras se põem a serviço do acertamento, da adequação e da harmonização de determinadas situações encontradas irregulares pelo novel ordenamento, as quais a nova codificação - porque tem como de relevo a necessidade de sua compatibilização com o novo sistema - quer ver resolvidas e acatadas como situações legalmente consumadas, até porque sua regularização, com ou sem algum ônus que especifica para os respectivos proprietários ou possuidores, se lhe afigura importante nos moldes em que se encontram na prática perante o novo sistema e por ele acabam por ser, assim, aceitas.

Insista-se, por fim, em que tais dispositivos foram, em boa parte, questionados por ADIs e, em sua quase totalidade, acabaram reconhecidos como constitucionais. Ora, se foram tidos por constitucionais pela mais alta corte de controle de constitucionalidade do país, devem, por consequência, ser regularmente aplicados como lei que se encontra em regular vigência, sem que assista ao intérprete ou ao aplicador voltar a negar-lhes vigência ou viabilidade, quer por nova atribuição da pecha de inconstitucionalidade, quer pelo esvaziamento de sua aplicabilidade prática por algum outro fundamento, pretexto ou artifício de raciocínio.

E, como pá de cal sobre a equivocada interpretação dos tribunais infraconstitucionais do país, traz-se à colação importante aresto do colendo STF, o qual deixou claro que "as normas de proteção ambiental, como a lei 12.651/12, TÊM APLICAÇÃO EM CASOS NOVOS E NOS PREEXISTENTES, dada sua natureza de norma cogente e de aplicação imediata...".20

__________

1 Advogado, Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP. Primeiro colocado no concurso de ingresso na Magistratura paulista. Colunista do Gramatigalhas. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Autor dos livros "Solo Criado", "Manual de Redação Jurídica" e "Código Florestal Comentado", além de dezenas de artigos jurídicos.

2 STJ - Resp 1.687.335-SP, decisão monocrática de 22.11.2018, rel. Min. Mauro Campbell Marques.

3 STJ - REsp 1.510.351 - MS (2015/0005890-3), j. 01.09.2016, rel. Min. Benedito Gonçalves.

4 STJ - REsp 1.495.038/MS, rel. Min. Regina Helena Costa, j. 27.03.2017, DJe 30.03.2017.

5 STJ - REsp n. 1.394.025/MS, rel. Min. Eliana Calmon.

6 STJ - REsp 1.510.351 - MS, j. 01.09.2016, rel. Min. Benedito Gonçalves.

7 STJ - REsp 1.495.038/MS, rel. Min. Regina Helena Costa, j. 27.03.2017, DJe 30.03.2017.

8 STJ - AgInt no REsp 1.404.904-MG, j. 02.02.2017, DJe 03.03.2017, rel. Min. Herman Benjamin.

9 STF, ADC 42/DF, j. 28.02.2018, DOU 13.08.2019, rel. Min. Luiz Fux, Fundamentação, p. 74/75.

10 ANTUNES, Paulo de Bessa. Comentários ao Novo Código Florestal. São Paulo: Atlas, 2013, p. 261.

11 STF, ADC 42/DF, j. 28.02.2018, DOU 13.08.2019, rel. Min. Luiz Fux, Fundamentação, p. 54 e 68/69.

12 STF, ADC 42/DF, j. 28.02.2018, DOU 13.08.2019, rel. Min. Luiz Fux, Fundamentação, p. 3/4. Importa esclarecer que os itálicos não constam no texto original.

13 COSTA, José Maria da. Código Florestal Comentado. Ribeirão Preto, SP: Migalhas, 2020, p. 1.395.

14 COSTA, José Maria da. Código Florestal Comentado. Ribeirão Preto, SP: Migalhas, 2020, p.1.155.

15 STJ - Resp 1.687.335-SP, decisão monocrática de 22.11.2018, rel. Min. Mauro Campbell Marques.

16 STJ - REsp 1.495.038/MS, rel. Min. Regina Helena Costa, j. 27.03.2017, DJe 30.03.2017.

17 STJ - AgInt no REsp 1.404.904-MG, j. 02.02.2017, DJe 03.03.2017, rel. Min. Herman Benjamin.

18 Interposto em processo patrocinado pelo escritório do autor deste artigo.

19 STJ - Primeira Secção, ProAfR no Resp 1.762.206 - SP (2018/0040853-5), rel. Min. Regina Helena Costa, j. 08.09.2020, DJe 16/09/2020.

20 STF, REx com Agravo 1.116.636/SP, rel. Min. Edson Fachin, j. 26.03.2018.

José Maria da Costa

José Maria da Costa

Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.

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