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Crimes fiscais: dificuldades para comprovação da inocência

Fato é que há inúmeras ações penais por crimes de natureza tributária sem que sejam realizados os devidos esforços para apuração da autoria, mas que, assim mesmo, terminam em condenação.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Atualizado às 08:49

(Imagem: Arte Migalhas)

As imputações por crimes fiscais da lei 8.137/90 vêm dificultando o exercício do direito de defesa, devido à mitigação da necessidade de provar a sua ocorrência, fenômeno que, desde algum tempo, se alastrou pelas instâncias da Justiça Penal.

O procedimento administrativo fiscal foi alçado à categoria de verdade absoluta, transformando-se em prova irrefutável, inclusive sem atendimento ao que dispõe o artigo 158 do Código de Processo Penal, que exige o exame de corpo de delito sempre que a infração deixar vestígios. Além disso, há frequente e indisfarçável inversão do ônus da prova, quase nada sendo eficaz antepor às conclusões produzidas por agentes fiscais.

Assim, a constituição da materialidade do crime de sonegação fiscal fica comprometida; é relegada ao conteúdo de precários autos de infração destinados a finalidade específica e diversa da matéria penal, elaborados a partir dos interesses e sob a ótica dos órgãos tributários. Não obstante, logram subordinar o Ministério Público e o próprio Poder Judiciário ao império da sua visão por vezes distorcida e, mais do que tudo, arrecadatória.

Tornaram-se também corriqueiras acusações sem lastro probatório, que deveriam ser liminarmente rejeitadas por falta de justa causa. Chega-se ao cúmulo de se oferecer denúncias sem arrolar testemunhas, assim prescindindo o Ministério Público de produzir prova acusatória no curso da instrução criminal, na certeza infundada de que o procedimento fiscal é suficiente para demonstrar a culpa.

Num desses casos, em que não havia testemunhas arroladas na denúncia, ao ter minha resposta à acusação como que "contrarrazoada" pelo juiz da causa, desisti da prova oral e orientei meu constituinte a exercer o direito de permanecer calado no interrogatório (art. 186 do CPP). A fase judicial terminou sem que fosse produzida uma única prova, o que demandaria a aplicação do artigo 155 do Código de Processo Penal, que veda ao juiz fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos colhidos na investigação.

Ainda que ressalvadas as provas não repetíveis, como seria provada a autoria, à vista apenas de um simples auto de infração fiscal? Sobreveio sentença condenatória, evidenciando que a condenação era inevitável, fosse qual fosse a conduta da defesa. Agora, está com a palavra o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que terá a missão de julgar a apelação interposta e decidir se é possível condenar sem a produção de prova judicial.

Não se deve esquecer de que nem toda infração fiscal é passível de configurar crime tributário, mas não é isso que vem prevalecendo em inúmeras ações penais, nas quais essas condutas ilícitas - tributária e criminal -, bem diferentes entre si, aparecem de certa forma embaralhadas, como se a existência de uma implicasse, automaticamente, a ocorrência da outra.

Para reforçar o conhecimento sobre o que vem ocorrendo quanto a essa perversa combinação entre infrações criminais e tributárias, cabe revelar que, noutra causa, em que as operações comerciais foram todas regularmente escrituradas e os impostos recolhidos, a contribuinte foi autuada porque a Fazenda estadual, contra as evidências, entendeu que havia erro no enquadramento da alíquota do ICMS, entre duas opções muito assemelhadas e de difícil desempate, até para tributaristas com larga experiência.

Tanto assim que, o recurso administrativo, perante o Tribunal de Impostos e Taxas - TIT, não conhecido pela maioria em decorrência de empecilhos processuais, mereceu o voto pelo mérito de dois de seus integrantes, entre eles o Relator, favoravelmente ao cancelamento do auto de infração fiscal por improcedência, ou seja, por considerar que a alíquota utilizada pela contribuinte foi a mais correta.

Nada obstante, a contribuinte está denunciada por crime de sonegação fiscal mediante fraude e o juiz diferiu a análise dessas questões para o momento da sentença, postergando seu julgamento sobre flagrante constrangimento ilegal, em superação à possibilidade de absolvição sumária ou de revisão do despacho que recebeu denúncia mesmo diante dessas insólitas circunstâncias.  

É preciso estar muito atento a essas deformidades, de modo a evitar graves injustiças, especialmente quando se sabe que o emaranhado de regras do nosso caótico sistema tributário impõe invencíveis dificuldades de interpretação, gerando situações verdadeiramente kafkianas.

Mas não apenas a prova da materialidade vem padecendo pela falta de melhor apreciação judicial.

A comprovação da autoria, igualmente, sofre seguidos golpes. Ora porque a ausência de provas é suprida pelo camaleônico argumento do domínio do fato, que preenche os espaços vazios daquilo que não se consegue demonstrar concretamente, ora pela aplicação cômoda, tanto quanto ilegal, da responsabilidade objetiva, em decorrência da posição ocupada pelo imputado no organograma da pessoa jurídica autuada. E assim se procede em relação a crimes que exigem o dolo como elemento integrante do tipo.

Fato é que há inúmeras ações penais por crimes de natureza tributária sem que sejam realizados os devidos esforços para apuração da autoria, mas que, assim mesmo, terminam em condenação. 

Todos os defeitos aqui apontados, mesmo quando ressaem dos autos de ações penais com enorme clareza, sistematicamente, são rechaçados, desconsiderados ou julgados impertinentes.

Ante esse estado de coisas, a atuação da defesa, nas causas em que se imputa crime de sonegação fiscal, torna-se extremamente dificultosa, o que não afeta, mas antes estimula, a perseverança e o aguerrido combate às injustiças por parte dos advogados como imperativo dever de ofício e, sobretudo, por requisição da consciência.

Antonio Ruiz Filho

Antonio Ruiz Filho

Advogado criminalista. É presidente da Comissão de Defesa da Democracia e de Prerrogativas da Federação Nacional dos Advogados. Sócio do escritório Ruiz Filho Advogados. Foi presidente da AASP - Associação dos Advogados de São Paulo, diretor da OAB/SP - Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo e do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo.

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