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Ideologia como narrativa cultural no Estado de Direito

A legitimação de narrativas e de qualquer ato jurídico devem se dar tão somente com base no constitucionalismo a fim de não fragmentar ainda mais o direito tão mal utilizado como jogo de poder.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Atualizado às 08:26

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução.

A ideologia tem influenciado o raciocínio jurídico, e, por via de consequência, as narrativas têm se adequado às percepções que formam determinado discurso. Investigar a relação entre o direito e a ideologia sob o aspecto da prestação jurisdicional como função ordenadora da sociedade exige mais do que uma simples avaliação dos argumentos jurídicos, isto é, faz com que precisemos manter vivo o debate sobre como a ideologia impacta no papel da jurisdição em um Estado plural, onde diversos grupos sociais clamam por inclusão.   

A visão racionalista de ideologias como sistemas de crença conscientes, bem articulados, é claramente inadequada: deixa escapar as dimensões afetivas, inconscientes, míticas ou simbólicas da ideologia, a maneira como ela constitui as relações vividas, aparentemente espontâneas do sujeito com uma estrutura de poder.1

Decisões judiciais como narrativas culturais adquiriram maior relevância em função da dimensão política de cada discurso. Então, a partir de realidades sociais há um caráter ideológico que passa a reger as pessoas, de modo que a cultura passa a ser o reflexo dos valores de uma sociedade.

De todo discurso emana poder. E não poderia ser diferente com o discurso jurídico, afinal é através da (des)construção dos argumentos jurídicos que o intérprete do direito define os rumos e as condições materiais da vida social. Compreender isso, garante a justa consideração do caráter político e ideológico do Direito. O problema é que, assim sendo, muitas vezes se sobressai o argumento que é mais hábil em sua capacidade discursiva, repercutindo em razão do poder, restando a ideologia ainda mais em plano secundário. 

A legitimidade democrática parece servir a interesses dominantes sob o pretexto de as cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados serem apenas um sentido inicial, de modo que os valores pessoais podem se sobrepor à integridade do direito. O constitucionalismo traduz a ideia de limitação de poder e respeito aos direitos fundamentais. Essa é a ideologia que vigora no país e precisa ser em grau máximo mantida como o caminho para a garantia de que o poder emana do discurso que tenha em seu conteúdo estreita relação com os fatos sociais e os textos jurídicos.

Fatores ideológicos continuam a mostrar a insuficiência da dogmática jurídica e o enfraquecimento do direito ao permitir que fatores extrajurídicos colidam com a democracia. Por isso mesmo, a função da jurisdição constitucional deve ser a de solucionar os desacordos nos limites estabelecidos na Carta Política, e não em alicerces pessoais onde o Poder Judiciário venha a forjar os modos de legislar.

Em países de redemocratização mais recente tem havido uma fragilidade do sistema representativo. Waldron3 sustenta que o processo decisório destinado a compor os desacordos tem como pré-requisito, de um lado, ser independente do particular dissenso que pretende solucionar; e, de outro, ter a capacidade de ser reconhecido como legítimo pelos polos opostos nos embates.

A formação epistemológica jurídica é construída em relação com a ideologia. Thompson elucida em sua concepção de reformulação do conceito de ideologia que há três aspectos que necessitam elaboração: a noção de sentido, o conceito de dominação e as maneiras como o sentido pode servir para estabelecer e sustentar relações de dominação.4

Se a ideologia realmente serve para estabelecer e sustentar relações de dominação, e com isso reproduzir a ordem social e favorecer grupos dominantes, o papel da jurisdição põe-se como indispensável à garantia da democracia. Juízes tratam muitas vezes as técnicas de interpretação das leis como princípios, e não como legados de uma tradição5. Por isso se apoiam em um pragmatismo que desrespeita o que autoridades públicas fizeram sob um suporte ideológico e com isso maculam o sentido e a segurança do que era pretendido pelo legislador democrático.

Nessa quadra da história, o direito há de se preocupar com a sua legitimidade, de forma que não haja cisão entre a norma e o texto a partir da ideologia de cada um, onde a atribuição de sentido pode dar espaço a uma narrativa sedutora que se distancia dos fundamentos do nosso Estado de Direito.

Ney Castelo Branco Neto

Ney Castelo Branco Neto

Doutorando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Advogado, sócio do escritório Maia & Castelo Branco Advogados.

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