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O redesenho do Direito Administrativo sancionador na nova lei geral de licitações e contratos parte 2 de 3: o princípio da insignificância

As condutas inseridas dentro do campo da impropriedade formal, ante à sua lesividade insignificante são atípicas e, portanto, fora do alcance do jus puniendi estatal.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Atualizado às 16:35

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Dando sequência aos nossos estudos sobre o redesenho do regime jurídico sancionador promovido pela nova lei geral de licitações e contratos (NLGLC) passaremos nesta segunda parte da trilogia a analisar a positivação do princípio da insignificância/bagatela no art. 169, § 3º, I da lei 14.133/2021.

A exemplo da primeira parte, antes de propriamente nos debruçarmos sobre o dispositivo legal que será objeto do presente estudo, esclarecemos que todas as garantias processuais mencionadas aqui, na primeira e na vindoura terceira parte, são, apesar do que dispõe o art. 190 da NLGLC, de aplicação imediata aos processos administrativos em curso, haja vista que a aplicação do princípio da retroatividade da norma penal mais benéfica também se dá no âmbito do direito administrativo sancionador, conforme inclusive já decidiu o STJ (vide RMS 37.031/SP).

Estabelecida tal premissa inicial, pontue-se que o art. 169, § 3º, I da lei 14.133/2021 preconiza o seguinte:

"Art. 169. (...)

§ 3º Os integrantes das linhas de defesa a que se referem os incisos I, II e III do caput deste artigo observarão o seguinte:

I - quando constatarem simples impropriedade formal, adotarão medidas para o seu saneamento e para a mitigação de riscos de sua nova ocorrência, preferencialmente com o aperfeiçoamento dos controles preventivos e com a capacitação dos agentes públicos responsáveis;

Ou seja, "havendo erros de cunho formal, que não sejam relacionados com má-fé nem sejam substanciais a prática do ato, a regra será o seu saneamento, conjugado com medidas que evitem que erros dessa natureza voltem a ocorrer1".

Conforme bem pontua Juliano Heinen2, só há de se falar em infração administrativa em caso de ocorrência de um vício jurídico ad substanciam que implique em dano à Administração Pública, sendo por outro lado verificada uma eiva ad probationem, esta ausência de prejuízo ao interesse público ou ao interesse de terceiros caracteriza uma mera impropriedade formal e não uma irregularidade.

Percebe-se, portanto, que, conforme já antecipado, o tratamento conferido pelo art. 169, § 3º, I da lei 14.133/2021 à impropriedade formal configura uma verdadeira positivação do princípio da insignificância/bagatela no âmbito das licitações, dos contratos e, inclusive, do controle da Administração Pública.

Sobre a aplicação de tal princípio oriundo do direito penal também em sede de direito administrativo, eis o que propugna Edilson Pereira Nobre Júnior:

"a exemplo do direito penal, é de bom alvitre a aplicação do princípio da insignificância (ao qual far-se-á alusão adiante). Assim, o aplicador da norma punitiva haverá de relevar as situações de não ocorrência de lesão a bens jurídicos da coletividade, escoimando de pena o infrator". (Nobre Júnior, Edilson Pereira, Sanções administrativas e princípios de direito penal, Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, v. 219, jan./mar./2000, pág. 138)

Heraldo Garcia Vitta entende que, se a Administração Pública der azo a persecução penal às meras infrações de bagatela, grassaria o desprestígio ao seu jus puniendi:

"Apesar da obrigatoriedade de ser imposta a penalidade pela Administração, conforme veremos, condutas que resultem danos ínfimos, irrisórios, podem ser desconsideradas como ilícitas. Trata-se de análise teleológico-funcional da pena: se o Estado-Administração infligisse pena aos infratores dos denominados 'ilícitos de bagatela', traria somente desprestígio à potestade punitiva, em vez de fazer com que os súditos se ajustassem aos padrões do ordenamento, finalidade de toda sanção administrativa." (Vitta, Heraldo Garcia, A sanção no direito administrativo, São Paulo: Malheiros Editores, 2003, pág. 58)

Para Fábio Medina Osório, o princípio da insignificância se revela quando da verificação da ocorrência de determinados ilícitos administrativos que...

"não se mostram materialmente lesivos a valores e princípios regentes da Administração Pública lato sensu ou mesmo da ordem social, não se justificando, nessas hipóteses, o desencadear de investigação, processo, ação criminal ou ação civil pública, permitindo-se acordos e enfatizando-se a importância, se for o caso, do ressarcimento ao erário ou às partes lesadas. (...) Cuida-se em verdade, além da questão moral sempre subjacente às decisões jurídicas, de aquilatar os custos de um processo, de uma investigação e de toda uma carga punitiva, que pode recair mais sobre a sociedade, a vítima, do que sobre o próprio infrator. (...) admite-se o chamado princípio da insignificância jurídica, na medida em que o resultado delituoso há de ser analisado segundo a antijuridicidade material, vale dizer, o impacto causado no bem jurídico protegido. (...) tal princípio depende de múltiplos fatores ligados à natureza do fato, condições pessoais do agente, antecedentes, particularidades próprias da singularidade do evento ilícito e, acrescento ainda, de juízos de oportunidade e conveniência conectados à relação custo-benefício do processo punitivo, o que há de ser exposto de modo fundamentado e transparente." (Osório, Fábio Medina, Direito administrativo sancionador, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, págs. 192/195)

Por fim, trazemos a lição de José Roberto Pimenta Oliveira, para quem as infrações administrativas capazes de ensejar a aplicação do princípio da insignificância devem ser consideradas como atípicas:

"Deve a Administração considerar materialmente atípica infração que lesione, de forma insignificante, o bem protegido pela atividade sancionatória. Mesmo que formalmente típica certa conduta, por consignar em si um desvalor jurídico, somente é exigível a sanção quando observado o grau suficiente e necessário de ofensividade ou danosidade aos interesses que se busca proteger com a cominação. (...) Reconhecendo a insignificância de determinadas condutas comissivas ou omissivas ilícitas, não haverá ofensa ao princípio da legalidade, porque atendida a teologia da norma jurídica-sancionadora, tampouco se vai de encontro ao princípio da segurança jurídica, porque a previsibilidade de que é dotado o tipo administrativo não abarca de per se a reprovação dos chamados 'delitos de bagatela'. Com o aludido reconhecimento, apenas se terá em conta a antijuridicidade material da infração". (Oliveira, José Roberto Pimenta, citado por Ferreira, Daniel, Teoria Geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009, págs. 259/260)

Destarte, ainda que a conduta, apesar de formalmente típica, venha a lesar de modo desprezível o bem jurídico protegido, não há que se falar em tipicidade material, o que transforma o comportamento em atípico, ou seja, indiferente ao Direito.

Percebe-se de tal forma que, dentro do espectro da mera impropriedade formal, diante da ausência de prejuízo à Administração Pública, a lei 14.133/2021 impede a aplicação de sanções a licitantes, a contratados e aos controlados (pois, lembremos, a NLGLC também incide sobre as atividades dos controles interno e externo).

Veja, considerando-se que o "o Direito Administrativo Sancionador preocupa-se sobretudo com a prevenção e não com a repressão3", é preciso deixar muito claro que não estamos diante de uma discricionariedade conferida à Administração ou aos órgãos de controle, pois a NLGLC não lhes dá outra opção: a conduta vinculada diante de uma impropriedade formal é a de saneá-la e de adotar medidas orientativas para que ela não se repita.

A impropriedade formal não pode, sob pena de ilegalidade, redundar sequer na instauração de um processo punitivo e muito menos ainda na aplicação de uma sanção administrativa.

As condutas inseridas dentro do campo da impropriedade formal, ante à sua lesividade insignificante são atípicas e, portanto, fora do alcance do jus puniendi estatal.

Assim, caso determinada conduta não tenha o condão de fazer com que atos administrativos, licitações e contratos deixem de atender o interesse público (o qual não se confunde com o interesse da Administração Pública ou com o interesse do controlador), deve-se privilegiar o atingimento dos objetivos e a efetividade, deixando-se as meras falhas de ordem formal na esfera da irrelevância jurídica para fins penais.

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1 Cabral, Flávio Garcia, Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos, Leandro Sarai (Org.), São Paulo: Editora JusPodivm, 2021, pág. 1.430.

2 Heinen, Juliano, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Salvador: Editora JusPodivm, 2021, págs. 801/802.

3 Verzola, Maysa Abrahão Tavares, Sanção no direito administrativo, São Paulo: Saraiva, 2011, pág. 31.

Aldem Johnston Barbosa Araújo

VIP Aldem Johnston Barbosa Araújo

Advogado em Mello Pimentel Advocacia. Membro da Comissão de Direito à Infraestrutura da OAB/PE. Especialista em Direito Público.

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