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Devido processo no âmbito das plataformas

A ausência de critérios mínimos de para a tomada de decisão pelas plataformas coloca em risco os usuários e pode violar direitos fundamentais.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Atualizado às 16:47

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Este artigo pretende discutir o devido processo no âmbito das plataformas, significa dizer, assegurar ao usuário que, na hipótese de que tenha contra si a ameaça de remoção de postagem ou perfil, tenha conhecimento claro da infração, possa se defender e que a decisão tomada leve em consideração as razões do usuário. O argumento será exposto da seguinte forma: i) exposição do problema; ii) o devido processo e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais; iii) legislação vigente e projetos de lei; e iv) considerações finais.

I

De início, necessário utilizar uma das diversas definições de plataforma, servindo para os propósitos deste artigo a definição tradicional de que se trata de um serviço de intermediação entre usuários. Este conceito abrange tanto redes sociais, nas quais diversos indivíduos produzem e consomem conteúdo, quanto a intermediação entre prestadores e tomadores de serviços referentes à venda de produtos ou prestação de serviços.

A participação dos usuários dentro destas plataformas é medida por um instrumento de natureza contratual, que recebe variados nomes, tais como termos de uso, termos de serviço e expressões similares, mas sempre em caráter adesivo.

Contudo, a plataforma não é apenas intermediária silenciosa, por meio de seus instrumentos contratuais, opera-se a curadoria de condutas variadas, sendo que, em vários casos, os motivos que levam a plataforma a atuar são obscuras ao usuário.

A construção desta atividade de moderação levou largo período de tempo e não se pode dizer que a decisão das plataformas seja aleatória ou mal intencionada, havendo um esforço de que a atividade não se torne um ato de despotismo.

Contudo, especialmente no âmbito de plataformas de intermediação de serviços e produtos, diversos usuários têm seus perfis excluídos sem a possibilidade de tomar conhecimento efetivo da motivação da decisão e tampouco de se defender em relação ao conteúdo da acusação e há relatos inclusive de exclusões efetivamente arbitrárias.

Esta obscuridade tem levado a diversos processos judiciais cujos objetos terminam por ser a ausência do respeito ao devido processo e a necessidade de motivação das decisões levadas a cabo pelas plataformas.

II

O devido processo é um direito fundamental que engloba diversos outros direitos e garantias como a ampla defesa, o contraditório e o dever de fundamentação, servindo de viga mestra para o funcionamento dos diversos ritos processuais que existem no país. Significa dizer, todo aquele que participa de um processo judicial ou administrativo tem o direito de se manifestar, ter suas razões apreciadas, produzir provas e receber uma decisão que efetivamente levou em consideração seus argumentos, ainda que sejam rejeitados.

Os direitos fundamentais não estão adstritos apenas à esfera do Estado, pelo contrário, devem ser observados por todos os particulares à luz da chamada eficácia horizontal, de modo que a pessoa natural ou jurídica não possa ser objeto de um processo que corra sem qualquer espécie de respeito mínimo ao devido processo.

Este ponto, inclusive, foi objeto de memorável acórdão do Supremo Tribunal Federal no RE 201819/RJ, no qual se decidiu que o associado não pode ser excluído da sociedade sem que tenha direito ao devido processo.

No que tange às redes sociais, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já decidiu que a exclusão de aplicativo de mensageria sem o respeito ao devido processo descumpre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, como na apelação cível 1105197-54.2019.8.26.0100 e, mais recentemente, na apelação cível 100091894.2019.8.26.0333.

Por outro lado, a quantidade de decisões a respeito da exigência de devido processo e da eficácia horizontal dos direitos fundamentais em relação a entregadores ou motoristas parceiros é de quantidade muito reduzida, mas não inexistente. Há sentença da 4ª Vara Cível de Taguatinga (TJ/DFT) que determinou o reestabelecimento de entregador com deficiência auditiva que foi excluído imotivadamente da plataforma (processo 0705033-05.2021.8.07.0007) e sentença proferida pela 9ª Vara Cível de Belo Horizonte (TJ/MG) na qual motorista foi excluído da plataforma sem a possibilidade de defesa (processo 5180641-85.2020.8.13.0024).

A ausência de determinações claras a respeito de quais os direitos dos usuários de tais plataformas apenas agrava o problema, visto que o amparo concedido aos usuários de serviços de mensageria parece não ser reconhecido com a mesma intensidade no caso de entregadores e motoristas de plataformas, por exemplo.

III

Na legislação vigente no Brasil, não há determinações expressas a respeito do devido processo nas plataformas e parece ausente qualquer intenção de unificação da regulação.

Dentro da legislação, o Marco Civil da Internet (MCI) dispõe que o provedor de aplicações somente responde pelos "danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros" em caso de determinação judicial específica (art. 19), salvo nos casos de nudez e atos sexuais, quando basta a notificação do interessado (art. 21). A estrutura do MCI, portanto, deixa abertas as hipóteses em que um dado conteúdo pode ou não ser removido a critério do judiciário.

Além disto, o MCI deve comunicar o usuário "os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo" (art. 20).

Parece-nos que tais medidas, ao invés de protegerem a liberdade de expressão, terminam por fomentar uma verdadeira guerra judiciária entre os usuários, forçando o Estado a tomar parte em disputas que muitas vezes poderiam ser absorvidas por mediação das próprias plataformas.

A LGPD, por sua vez, concede ao titular dos dados o direito à solicitação de revisão de decisões totalmente automatizadas (art. 20), indo na contramão do que dispõe a GDPR ao conferir ao titular dos dados o direito de oposição e de não ser sujeito a decisões tomadas exclusivamente de modo automatizado (arts. 21º e 22º). Nota-se que ambas as legislações não adentram no campo das decisões conduzidas pelas plataformas, ainda que possuam conexão com o tema.

A legislação rejeitada se focou majoritariamente nas redes sociais, tal como é o caso da malsinada MP 1.068/21, editada pelo Presidente da República às vésperas da celebração do feriado de 7 de setembro. A MP previa expressamente a proibição de remoção de conteúdos ou perfis em redes sociais, exceto nas hipóteses do que denominou de justa causa e condicionando tal remoção à motivação e ao devido processo. Como se sabe, esta MP não apenas teve seus efeitos suspensos como ainda foi devolvida pelo Presidente do Senado.

Caminho diferente tem sido adotado pelo PL 2630/20 (PL das Fake News), que também regula a moderação de redes sociais assegurando o devido processo, porém sem adentrar no engessamento da MP 1.068/21 a respeito de um rol taxativo de hipóteses de remoção de conteúdos ou perfis.

Ao fim e ao cabo, este vácuo legislativo dá às plataformas maior poder de conduzir o processo de moderação das redes sociais ou dos usuários através de seus termos de uso, mas não estabelece vigas processuais adequadas para que os indivíduos possuam garantias mínimas de que seus argumentos serão considerados na tomada de decisão por parte da plataforma.

Evidentemente, a adoção de regras de devido processo nas plataformas não pode se tornar escudo para que o usuário atente contra direitos fundamentais de terceiros ou espalhe desinformação, mas nada impede que, após a remoção de tal conteúdo, o usuário tenha o direito de apresentar seus argumentos e tentar convencer a plataforma de que sua manifestação estava abrangida pela liberdade de expressão.

Situação mais delicada é a de prestadores de serviços vinculados a plataformas, que devem ter assegurada ampla proteção para que não sejam removidos de modo arbitrário ou injustificado, ainda mais quando se discute relação lastreada em contrato de adesão e dependência financeira para com a plataforma.

Nestes casos, cremos que a suspensão ou exclusão de prestadores de serviço deve ser embasada de maneira extremamente cuidadosa e sem a utilização de mensagens padronizadas. A análise dos casos deveria estar condicionada à oitiva do autor da reclamação e do prestador de serviço, possibilitando-lhe ao menos apresentar suas razões antes da tomada de decisão definitiva pela plataforma.

Como se verifica, trata-se um ponto cego da legislação que não deveria ser preenchido apenas pela jurisprudência, visto que há necessidade de maior uniformidade em relação aos parâmetros do que deve ser considerado devido processo no âmbito das plataformas.

IV

Pretendeu-se aqui apresentar um esboço do cenário atual da discussão em relação ao devido processo no âmbito das plataformas. Ainda que sejam consideradas simples intermediárias que estabelecem relações contratuais com os usuários, não é possível que sua atuação possa violar direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição Federal.

Dentro deste aspecto, nota-se que há demandas discutindo e reconhecendo justamente que, em dadas situações, plataformas atuam sem o respeito ao devido processo, removendo postagens ou perfis sem fundamentação ou contraditório, forçando o usuário a se socorrer do judiciário.

O modelo do Marco Civil da Internet, por sua vez, fomenta a judicialização de tais disputas, que muitas vezes poderiam ser absorvidas pelas plataformas e somente em caso de persistência da insatisfação deveriam exigir a tutela do Estado.

Observou-se ainda um ponto extremamente preocupante no que diz respeito aos prestadores de serviços, os quais possuem dependência financeira junto às plataformas e ingressam em contratos de adesão sem que tenham respeitado o seu direito ao devido processo. 

Bruno Yudi Soares Koga

VIP Bruno Yudi Soares Koga

Doutorando em Direito Constitucional e mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo IDP. Autor do livro "Precificação Personalizada". Advogado em São Paulo.

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