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A política cultural kamikaze

Ao observar a realidade brasileira a respeito do direito à cultura, percebe-se uma estratégia bastante similar como será exposto na sequência.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Atualizado às 10:24

(Imagem: Arte Migalhas)

A palavra japonesa Kamikaze designava os pilotos de aviões japoneses que carregavam explosivos e cuja missão era realizar ataques suicidas contra navios dos Aliados nos momentos finais da campanha do Pacífico na Segunda Guerra Mundial.

De modo que o suicídio do piloto se dava em prol da "causa", isto é, da ideologia e/ou do objetivo final da guerra, na disputa pelo poder.

Curiosamente, ao observar a realidade brasileira a respeito do direito à cultura, percebe-se uma estratégia bastante similar como será exposto na sequência.

Inicialmente, para ilustrar o ponto que se deseja expor neste texto, cumpre notar que foi realizado um debate no âmbito dos "Diálogos Nacionais" ocorrido no dia 23 de setembro de 2021 sobre o tema Cultura em Crise, exposto pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados Federais no mês de setembro de 20211 destacando os principais pontos que corroboram a ocorrência do desmonte nas políticas públicas culturais, consoante os eventos que determinam as razões da paralisação do setor, a seguir esposados2.

Em primeiro lugar, destaca-se que em janeiro do ano de 2019 ocorreu a extinção do Ministério da Cultura - MinC por intermédio do decreto 9.674/19 que o transformou na Secretaria de Cultura (SeCult), fundindo assim os antigos ministérios da cultura, do esporte e do desenvolvimento, transformando-os em uma só pasta denominada de Ministério da Cidadania. Porém, poucos meses depois, a Secretaria de Cultura foi retirada da pasta da Cidadania e é transferida para o Ministério do Turismo, através do decreto 10.107/19.

Com efeito, essas medidas iniciais terminaram relegando à cultura do status de ministério para uma mera secretaria, tirando a sua autoridade simbólica, inclusive na esfera internacional.

Na sequência, no final ano de 2020, o alvo do ataque foi a lei Rouanet (lei 8.313/91) com a criação do "princípio do equilíbrio" através da portaria 24, de 22 de dezembro de 2020, estabelecendo uma relação entre as admissões de propostas relativas ao fomento e incentivo cultural e a capacidade operacional de análise das prestações de contas, tendo em vista o enorme passivo constante na prestação de contas.

Assim, com espeque nesta portaria, a Secretaria Especial de Cultura estabeleceu uma meta de análise mensal de 120 (cento e vinte) novas propostas por mês. Ou seja, 720 (setecentos e vinte) por semestre e 1.440 (hum mil, quatrocentos e quarenta) por ano. Dessa maneira, o Estado penalizava o setor cultural pela incompetência das gestões governamentais pretéritas que falharam em organizar a força de trabalho para a realização da prestação de contas públicas. Por outro lado, conforme dados extraídos do sistema Salic3, no ano de 2020 foram aprovados 4.492 novos projetos. Portanto, pode ser percebida intenção desta nova Secretaria Especial de Cultura de reduzir para, aproximadamente, um terço as análises referentes ao número de projetos culturais aprovados por período.

Somente no dia 15 de setembro de 2021, nos autos do processo 008.379/2017-3, o Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu cautelarmente a referida Portaria nº 24/2020 em razão do indevido represamento semestral ou anual dos projetos culturais de fomento indireto sem a devida motivação técnica. O que tem, de certa maneira, asfixiado o setor de produção cultural do país, pois de acordo com os dados da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, de um universo de 870 projetos em fase de análise na SeCult, grande parte espera desde o ano de 2020 a liberação de, aproximadamente, 500 milhões de reais em recursos já captados e depositados em contas bloqueadas.

Outro aspecto relacionado a Lei Rouanet (lei 8.313/91) que causou espécie foi a publicação da portaria 210 de 15 de abril de 2021, contendo a determinação de prioridade de análise das propostas culturais cujo local de execução não estivesse situado em uma unidade federativa com restrição de circulação durante a pandemia. Essa estratégia parece ter sido claramente utilizada para pressionar o setor a ingressar na disputa ideológica a respeito das medidas sanitárias tomadas por autoridades em cada um dos entes federados. O que denota certa confusão entre o interesse público e o interesse pessoal dos governantes, o que demonstra indícios potenciais de desvio de finalidade no ato administrativo perpetrado.

Em quarto lugar, o documento elaborado pela Comissão de Cultura relata a ocorrência de assédio moral de servidores públicos nos órgãos públicos ligados à Cultura, tendo em vista que notícias de fatos expuseram a existência de dossiês denegrindo a imagem de servidores de carreira, além de relatos sobre os casos de funcionários públicos que tiveram seus e-mails funcionais apagados, computadores funcionais devassados sem autorização e que suportaram medidas graves de retaliação por terem testemunhado graves irregularidades no âmbito de suas repartições públicas4.

Na sequência, cumpre ressaltar que também há aparelhamento político nos órgãos públicos da área da cultura. A nomeação de pessoas sem perfil técnico ou qualificação desejável dá ensejo a casos de decisões baseadas em critérios meramente ideológicos, tais como aqueles noticiados na mídia base em referências religiosas5.

Some-se a isso tudo a morosidade deliberada e paralisante na contratação dos projetos previamente selecionados nos editais dos anos de 2018 e anteriores por parte da Agência Nacional do Cinema (Ancine), haja vista que existem, aproximadamente, 782 projetos selecionados em editais de 2016 a 2018 que não foram contratados. O que demonstra a ocorrência de um represamento de recursos em desfavor do setor cultural, principalmente considerando que a Ancine e o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) não liberaram um único edital de produção desde início do ano de 2019.

Finalmente, não se pode deixar de mencionar a ocorrência do incêndio na Cinemateca, que havia sido abandoada sem a devida curatela e manutenção devida por um longo período e, por conta disto, corria sérios riscos de perda de parte do seu acervo ante a ausência de cuidados técnicos, o que acabou acontecendo depois com o incêndio. Além da tentativa de descarte de parcela significativa das obras literárias da Fundação Palmares, com base em razões meramente ideológicas, o que foi impedido pela Justiça Federal.

 Ora, é notório que a cultura é um dos principais fatores de desenvolvimento da sociedade. Nesse mesmo sentido, a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada pela UNESCO em 2005 e ratificada pelo Brasil no ano de 2007, ressalta que a diversidade cultural constitui patrimônio comum da humanidade, a ser valorizado e cultivado em benefício de todos, haja vista que a diversidade cultural cria um mundo rico e variado que aumenta a gama de possibilidades, nutrindo as capacidades e valores humanos, constituindo, assim, um dos principais motores do desenvolvimento sustentável das comunidades, povos e nações.

A referida Convenção também é clara ao dispor que a diversidade cultural, ao florescer em um ambiente democrático, tolerante, respeitador do postulado da justiça social e do mútuo respeito entre povos e culturas, é indispensável para a paz e a segurança no plano local, nacional e internacional.

Nesse esteio de raciocínio, de acordo com o entendimento de Paulo Bonavides6, um direito é considerado fundamental quando ele é essencial para a garantia de uma vida digna e para o exercício da cidadania, os quais estão essencialmente vinculados aos princípios da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana. De modo que o direito à cultura, considerado internacionalmente como patrimônio comum da humanidade, merece ser tutelado na condição de direito fundamental, haja vista os notórios aspectos subjetivos do ser humano como ser social no que tange a identidade cultural e dignidade da pessoa humana, além dos valores da liberdade, igualdade e solidariedade.

De uma forma mais estruturada, José Afonso da Silva (2001, p.42-43) sistematiza os dispositivos presentes na Constituição  Federal  de  1988  que  dizem respeito à cultura,  confira-se:  artigo  5º, IX, XXVII,  XXVIII,  LXXIII  e  artigo  220, §§  2º  e  3º  (liberdade  de manifestação,  direito individual,  e direitos  autorais);  artigos  23,  24  e  30 (regras  de  distribuição  de  competência  e cultura como objeto de ação popular); artigo 219 (como incentivo ao mercado interno, como viabilizador  do  desenvolvimento  cultural);  artigo  221  (princípio  a  serem  atendidos  na produção e programação das emissoras de rádio e televisão); artigo 227 (cultura como direito da  criança  e  do  adolescente); artigo  231  (índios  e  sua  organização  social  como  costumes, tradições, línguas, crenças, tradições e terras ocupadas para a manifestação cultural indígena); artigos 215 e 216 (objetos culturais de Direito e patrimônio cultural brasileiro)7.

Não obstante o tratamento Constitucional preconizado nos artigos 215, 216 e 216-A com todos os seus extensos incisos, a realidade é que a imposição normativa isolada não garante o efeito automático daquelas normas no âmago da sociedade. Em outras palavras, vale dizer que o texto normativo do qual se extraem as normas constitucionais que serão efetivamente construídas no caso concreto não detém eficácia se essa mudança não estiver alijada de uma transformação social.

Diante disso, é elementar que para que seja permitido o pleno exercício dos direitos culturais é necessário que o Estado promova ações afirmativas visando a igualação dos socialmente desiguais, com o fito de democratizar o acesso à cultura. Devendo o Estado dispor de verba orçamentária para o efetivo acesso, apoio e incentivo à cultura.

Nesse mesmo sentido, o Ministro Ricardo Lewandowsky8 nos autos da ADIn 2163, destaca que tanto o caput do art. 215 da CRFB/1988 como seus parágrafos possuem comandos normativos voltados para o Estado, veja-se: "o Estado garantirá...e apoiará...e incentivará"; "o Estado protegerá..."; "A lei disporá..."; "A lei estabelecerá...". De modo que tem relevância, na espécie, a dimensão objetiva do direito fundamental à cultura. Segundo esse aspecto objetivo, o Estado está compelido a criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo do direito à cultura.

E prossegue aduzindo que os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Logo, citando as palavras de Claus-Wilhelm Canaris9, não apenas uma proibição de excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de omissão (Untermassverbot).

Portanto, nessa dimensão objetiva do direito fundamental à cultura, também assume relevo a perspectiva dos direitos à organização e ao procedimento (Recht auf Organization und auf Verfahren), que são aqueles direitos fundamentais que dependem, na sua realização, de providências estatais com vistas à criação e conformação de órgãos e procedimentos indispensáveis à sua efetivação. Fica evidenciado, portanto, que a efetividade desse direito fundamental à cultura não prescinde da ação estatal positiva no sentido da criação de certas condições fáticas, sempre dependentes dos recursos financeiros de que dispõe o Estado, e de sistemas de órgãos e procedimentos voltados a essa finalidade. Daí a extrema importância da ação positiva do Estado para garantir a eficácia do direito fundamental à cultura para a população.

Diante do exposto, fica claro que a situação atual da cultura não diz respeito tão somente à ineficácia das normas constitucionais, mas é pior, são ações perpetradas com a intenção de sufocar um setor que é dependente da atuação estatal positiva para ser realizado no mundo concreto.

Frise-se que a o direito à cultura está essencialmente atrelado ao Estado Social (Wellfare State), o qual é responsável por clamar pela intervenção dos poderes públicos permitindo a realização de novas funções no domínio da vida econômica, social e cultural.

Conclui-se que essas ações contra a cultura só demonstram que o próprio Estado acaba jogando contra a si próprio, de modo contraditório, pois deixa de se valer de um importante elemento estratégico para o desenvolvimento nacional e para difusão da cultura brasileira em escala mundial.

Em outras palavras, trata-se de um verdadeiro suicídio em prol de uma ideologia, tal como faziam os pilotos kamikazes. Mas o grande problema desta tática é que mesmo que vença a guerra no final, o piloto não estará mais lá para assistir... E se ocorrer tal e qual o resultado da segunda guerra, nem a vitória terão.

______________

1 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Agência Câmara de Notícias. Comissão debate crise na cultura. Disponível em: . Acesso em 07 de out. 2021

2 Uma apresentação foi elaborada pela assessoria da Deputada Alice Portugal, presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. Disponível em: . Acesso em 08 de out. 2021.

3 "Sistema de Acesso às Leis de Incentivo à Cultura (Salic) é o local de cadastro das propostas. No Salic, são transitadas todas as fases do projeto, desde o cadastramento, passando pela aprovação, execução e prestação de contas. É também o principal veículo de comunicação entre o proponente e a equipe da Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic) da Secretaria da Cultura, responsável pela gestão da Lei de Incentivo à Cultura."

SECRETARIA ESPECIAL DA CULTURA. Disponível em: . Acesso em: 01 jun. 2021.

4 BATISTA, Vera. Servidores denunciam assédio e repudiam dossiê da Secretaria Especial da Cultura, Correio Brasiliense, publicado em 23 de abril de 2021. Disponível em: . Acesso em 08 de out. 2021.

5 VETTORAZZO, Lucas. Governo cita deus e recusa lei Rouanet para festival de jazz na Bahia, Revista Veja, Publicado em 12 de julho de 2021.  Disponível em: . Acesso em 08 de out. 2021.

6 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 15ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 562.

7 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo: Malheiros, 2001. p.42-43. Registre-se que na data em que foi confeccionada a referida obra ainda não havia sido incluído o art. 216-A, que foi incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012.

8 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 2163, Relator(a): Luiz Fux, relator(a) p/ acórdão: Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 12/04/2018, processo eletrônico dje-167, divulg 31-07-2019, publicado em 01-08-2019. Disponível em: . Acesso em 06 de out. 2021. p.84.

9 CANARIS, Claus-Wilhelm. Grundrechtswirkungen um Verhältnismässigkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS, 1989, p. 161.

Magno de Aguiar Maranhão Junior

Magno de Aguiar Maranhão Junior

Professor da FTESM e especialista em Regulação da ANCINE. Mestrando em Direito na linha de Finanças, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ. Especialista em Direito Civil-Constitucional pela UERJ.

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