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Crime é acusar de furto quem revira o lixo para procurar alimento

Classificar como crime de furto o ato de pegar do lixo alimentos vencidos é juridicamente equivocado, pois o furto é um crime patrimonial, e mercadorias descartadas no lixo não podem ser consideradas como bens dotados de valor econômico.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Atualizado às 14:38

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Não faz um mês que a imprensa trouxe a público o caso que ficou conhecido como "o furto de miojo": uma mulher, mãe de cinco crianças, em situação de rua e desempregada havia sido presa em flagrante - e mantida preventivamente encarcerada - por ter furtado em um mercado macarrão instantâneo, refrigerante e suco em pó, cujos preços totalizavam pouco mais de R$20. Quem atua como operador do Direito ou pesquisador na área penal sabe que não se trata de um caso incomum, mas sim da manifestação de uma práxis recorrente no sistema de justiça criminal, com seus clichês de encarcerar miseráveis.

O assunto mal tinha esfriado quando a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul divulgou o inacreditável caso de ação penal instaurada em face de dois homens acusados de furtar lixo em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. O fato ocorreu em 2019, e, agora em 2021, o Tribunal de Justiça daquele Estado deverá julgar apelação interposta pelo Ministério Público, que busca reverter a absolvição de dois homens que respondem por crime de furto por terem pegado no pátio de um supermercado alimentos vencidos e descartados, os quais foram apreendidos e restituídos ao estabelecimento, para seguirem seu destino de trituração e descarte.

Se o "caso do miojo" evocou a trajetória de Jean Valjean  d'Os Miseráveis de Victor Hugo, a judicialização da questão sobre o lixo ser ou não um patrimônio digno de proteção penal lamentavelmente revela a atualidade da discussão apresentada por Karl Marx sobre a "Lei do furto de lenha", que criminalizava a coleta de gravetos na floresta por camponeses na Alemanha do século XIX.

Para aqueles que preferem a letra fria da lei, não é preciso sequer apelar a um argumento moral ou humanitário para criticar o caso: para ser tecnicamente considerada crime, uma conduta praticada por alguém (i) deverá ser expressamente prevista em lei e a forma como se deu sua prática deverá corresponder com precisão à descrição legal (o que se chama juridicamente de tipicidade); (ii) não deverá estar enquadrada em exceções legais em que se autoriza sua prática (casos das excludentes de ilicitude); e (iii) seu autor deve apresentar condições pessoais de responder pelo fato (ou seja, deve ser culpável).

Classificar como crime de furto o ato de pegar do lixo alimentos vencidos é juridicamente equivocado, pois o furto é um crime patrimonial, e mercadorias descartadas no lixo não podem ser consideradas como bens dotados de valor econômico.

Ainda que se cometa o erro de atribuir valor econômico a lixo, o caso é uma hipótese evidente de furto famélico (ou haveria outra razão para uma pessoa revirar detritos em busca de alimento?), obrigando ao reconhecimento da situação de estado de necessidade, causa excludente de ilicitude prevista expressamente no Código Penal.

E mesmo que se insista nos erros de classificar subtração de lixo como furto e de não reconhecer o estado de necessidade de quem pratica o fato, ainda seria possível reconhecer - mesmo sem previsão legal expressa, mas por princípio jurídico consolidado - a inexigibilidade de conduta diversa que permitiria considerar os acusados como não culpáveis.

Ou seja: este fato claramente não criminoso passou pelo crivo de um séquito de autoridades - os policiais militares que realizaram a prisão em flagrante, o delegado de polícia que conduziu o inquérito, o promotor de justiça que ofereceu a denúncia e o juiz que a recebeu transformando os homens em réus - para, ao final, ser constatado o óbvio: não havia justa causa para uma ação penal em decorrência do furto de alimentos vencidos (e que, vale lembrar, foram devolvidos ao estabelecimento). E assim se deu como desfecho o veredito inevitável de absolvição.

Mas o Ministério Público - instituição essencial à função jurisdicional do Estado, à qual incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do artigo 129 da Constituição Federal - não se deu por vencido: apelou, inconformado, argumentando que "não se pode usar o princípio da insignificância e do crime bagatelar como estímulo e combustível à impunidade".

Tentar encontrar alguma função social em punir quem revira o lixo buscando comida já seria um grande desafio hermenêutico, pois o caso não é apenas um disparate humanitário, é um disparate jurídico: trata-se aqui de uso manifestamente ilegal do Direito para defesa de uma ideologia de criminalização da miséria.

E não é apenas um disparate jurídico, é um disparate humanitário: em um cenário social de avanço da miséria, crime é acusar de furto quem revira lixo para encontrar alimentos.

Talvez o mais sombrio de tudo isso seja o fato de que, para defender alguém acusado de crime de furto, é necessário mobilizar o argumento de que procurar comida no lixo seja insignificante para o Direito.

Maíra Zapater

Maíra Zapater

Professora de Direito da EPPEN - Unifesp e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Direito Penal e os Marcadores Sociais da Diferença.

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