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O valor da reparação moral no Direito do Trabalho

A conclusão do Min. Gilmar Mendes, onde apenas afasta o teto das reparações, mas mantém a constitucionalidade do texto, acaba por manter a desigualdade decorrente do critério adotado, a ela somando a insegurança que resulta da liberação do teto legal, capaz de traduzir fixações aleatórias.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Atualizado às 08:49

(Imagem: Arte Migalhas)

Encontra-se em julgamento no Supremo Tribunal Federal o tema da inconstitucionalidade da reforma trabalhista, na parte que dispõe acerca dos limites valorativos da reparação moral na seara trabalhista. Os ministros julgam em conjunto ações, ajuizadas, respectivamente pela Anamatra - Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (ADIn 6.050 e 5.870); CNTI -Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (ADIn 6.082) e pelo Conselho Federal da OAB (ADIn 6.069), como noticia o Informativo Migalhas 5.217, de 28/10/21.

O processo encontra-se suspenso, após voto do Min. Gilmar Mendes, onde concluiu que não há inconstitucionalidade do uso da tabela dos danos extrapatrimoniais pelo magistrado prevista na reforma trabalhista; no entanto, tais critérios não podem ser usados como "teto", sendo possível que o juiz, diante das peculiaridades do caso concreto, ultrapasse os limites quantitativos previstos na reforma trabalhista, segundo o mesmo Informativo.

Inicialmente convém mencionar que merece aplausos o disposto no art. 223-G da CLT, fruto da reforma trabalhista, que adotou os critérios sugeridos em nossa minuta do Projeto de Lei (PLS-334/08), colocando-os entre as considerações a serem levadas em conta na fixação:

Art. 223-G.  Ao apreciar o pedido, o juízo considerará:

I - A natureza do bem jurídico tutelado;

II - A intensidade do sofrimento ou da humilhação;

III - a possibilidade de superação física ou psicológica;

IV - Os reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão;

V - a extensão E a duração dos efeitos da ofensa;

VI - As condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral;

VII - o grau de dolo ou culpa;

VIII - a ocorrência de retratação espontânea;

IX - O esforço efetivo para minimizar a ofensa;

X - O perdão, tácito ou expresso;

XI - a situação social e econômica das partes envolvidas;

XII - o grau de publicidade da ofensa.

Esses parâmetros são os que foram aquilatados em nossa pesquisa jurisprudencial levada a efeito após a leitura estatística de mais de 5.000 acórdãos do Superior Tribunal de Justiça, retratando os critérios e valores que têm ido aceitos pela dominante jurisprudência dessa Corte, sendo eficientes a  nortear a lacunosa falta de regulamentação do valor da reparação moral. Tal como colocado, o julgador deverá graduar a reparação de acordo com esses parâmetros, tornando mais justa a reparação. A ilustração do resultado dessa pesquisa está sendo publicada semanalmente no Informativo Migalhas, por assunto.

Conquanto a exposição de motivos da reforma trabalhista não faça referência à origem, a um simples lance se verifica a coincidência entre os parâmetros aqui sugeridos desde a primeira edição do livro de nossa autoria, "O Valor da Reparação Moral" (5ª. Ed. Plácido Ed.), que inspirou referida minuta e os adotados pela nova lei trabalhista.

Na exposição de motivos da extinta MP 808 apenas destacou-se que "(..) No que se refere ao dano extrapatrimonial, a fixação de limites para as indenizações por danos morais com base em critérios objetivos tem por objetivo evitar que haja decisões judiciais díspares para situações semelhantes, ao mesmo tempo em que busca estabelecer uma gradação de valores a partir da classificação da ofensa por sua gravidade. Para tanto, são realizadas alterações nos §§ 1º e 3º, além de inclusões dos §§ 4º e 5º ao art. 223-G do Decreto-Lei 5.452, de 1943, apresentando dosimetria para a fixação da reparação a ser paga aos ofendidos em casos de dano moral ou existencial, estabelecendo o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social - RGPS como parâmetro de reparação. São apresentados limites máximos a depender do grau de gravidade da ofensa variando de ofensa de natureza leve a gravíssima. Os cenários apresentados visam possibilitar que o juízo arbitre a reparação que melhor se adequar ao caso concreto, além de reservar a possibilidade de o Juízo dobrar o valor da indenização nos casos em que haja reincidência de qualquer das partes."

Há um registro que merece ser feito, quanto aos valores indicados pelo novo texto, para a fixação da reparação. A reforma trabalhista sofreu modificação com a edição da MP 808/2017, retificando o equívoco da base salarial do empregado como critério de fixação da verba.

Assim, o art. 223-G, em seu § 1º. criava salutar critério de valor da reparação, no que a lei civil permanece omissa e que evita se mantenha a responsabilidade civil por dano extrapatrimonial como verdadeira loteria, fora do alcance das partes.

Com a referida Medida Provisória, seriam prefixados os valores devidos, devendo o juiz aquilatar o tipo de ofensa, o que deveria fazer não de modo aleatório, mas com base nos critérios fixados nos incisos I a XII do art. 223-G, ou seja, graduando de acordo com o limite dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.1

A redação original que foi restaurada com a perda de vigência da referida MP, prevê o salário do empregado como parâmetro, revela, sim, inconstitucionalidade, uma vez que criava fórmula desigual, variando para maior o valor da reparação conforme maior seja o salário da vítima:

§ 1o Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:

I - Ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido;

II - Ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido;

III - ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido;

IV - Ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.

§ 2o Se o ofendido for pessoa jurídica, a indenização será fixada com observância dos mesmos parâmetros estabelecidos no § 1o deste artigo, mas em relação ao salário contratual do ofensor.

§ 3o Na reincidência entre partes idênticas, o juízo poderá elevar ao dobro o valor da indenização

Esse critério de situação financeira das partes, que no passado foi utilizado para essa aquilatação, de há muito foi abandonado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pois não apenas criava situações de absurda desigualdade, como deixava ao desabrigo a real repercussão do dano, independente da condição econômica do lesado.

De fato, esse sistema de aferição econômica foi parâmetro usual para a fixação do valor nas mais diversas ocorrências consideradas ensejadoras da dor moral não obstante ausente, na medida encontrada, a definição individual dos valores em relação a esse critério, o que demonstra o mal que acomete a falta de previsão legal, qual seja, a utilização de conceitos vagos, que não relacionam o raciocínio diretamente à conclusão.

Vale também registrar que , embora mencionassem reiteradamente que a situação financeiras de ambas as partes conferiam relevo à opção por tal ou qual valor, verdade é que em nenhum desses julgados se verifica qualquer análise que demonstre essa condição, seja para o reclamante, seja para o reclamado na demanda,  como forma de efetivamente demonstrar que, por conta de tratar-se de empresa de pequeno porte ou, pior, de se estar diante de pessoa de parcos recursos, teria sido concedido valor inferior ou superior ao reiteradamente fixado em hipóteses análogas.

Deve-se reconhecer que, conquanto a fixação de valor maior quando o ofensor seja pessoa afortunada, pois que uma condenação irrisória, nesse caso, poderia incentivar a prática ofensiva, o contrário não revela a mesma justiça, pois acaba por considerar que a pessoa de parcos recursos possa ter sofrimento menor, para fato idêntico, do que o detentor de maiores recursos financeiros, numa flagrante e inaceitável desigualdade. Pode-se imaginar, no âmbito do dano moral, que um abalo de crédito, por exemplo, possa causar dor maior a uma pessoa de modestos recursos financeiros do que a um empresário no giro dos negócios, para quem não seria mais que um problema trivial.

Merece, portanto, ser completamente afastada a utilização desse enfoque no julgamento das demandas trabalhistas. E tal se conclui em relação ao tema, seja porque, de fato, conquanto indicado esse caráter financeiro na valoração dessa compensação moral, pode-se concluir que na verdade não influencia a decisão, porque raramente demonstrado, seja porque tal aspecto não guarda liame entre o evento e sua consequência, tendo sido progressivamente abandonado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, resultado da evolução do tratamento da matéria naquela Corte e que deveria ser melhor avaliada pelo Tribunal Superior do Trabalho.

Essa dificuldade de valoração que dificulta a jurisdição tem longo histórico. O Informativo Migalhas2 trouxe matéria com entrevista ao ministro Walmir Oliveira da Costa, que bem retratava a  conjuntura do Tribunal Superior do Trabalho e no qual destaca que as dificuldades de arbitramento nos casos de dano moral, mencionando que "(..) O problema se estabelece porque a legislação não fixa critérios objetivos: ela usa termos genéricos como "proporcionalidade", "razoabilidade", "extensão do dano" e "equitativamente". "A operação judicial na fixação da reparação de dano moral é das mais difíceis e complexas, porque o legislador deixou ao critério prudencial do juiz a atribuição de quantificar o valor da indenização"

Afirmou o ministro ainda, na escolha dos critérios, que "(..) O primeiro passo é identificar o dano da forma mais objetiva possível e, a partir daí, classificar a lesão moral (leve, grave ou gravíssima, segundo a intensidade ou o grau de culpa). A partir daí, entram outros critérios, como a repercussão do dano na esfera social e a capacidade econômica do ofensor."  E ainda que "(..) para chegar a um montante "proporcional e razoável" à "extensão do dano", muitas vezes o juiz se vale, além da CF e do CC , de outros subsídios, como a pena de multa prevista no artigo 49 do CP ou o artigo 53 da lei de imprensa (lei 5.250/67), antes de ser considerada incompatível com a Constituição pelo STF no julgamento da ADPF 130." Advertindo que "Esses critérios são apenas indicativos e não determinantes, e dependem dos fatos e circunstâncias do caso concreto.

Considerou também que "(..) A análise do caso concreto permitirá ao juiz considerar, na dosagem da indenização, circunstâncias agravantes ou atenuantes, como ocorre na fixação da pena criminal. A negligência do empregador que expõe ilegalmente um trabalhador a riscos desnecessários, por exemplo, exigirá uma indenização maior do que a resultante de um caso fortuito - ainda que, nos dois casos, o trabalhador tenha sofrido o mesmo tipo de lesão. É o caráter punitivo da pena."

Esse pronunciamento demonstra a enorme dificuldade que a falta de regulamentação traduz, sem falar na insegurança para ambas as partes e os critérios utilizados.

Assim, tal como colocado, o texto realmente não sobrevive a um cotejo de constitucionalidade, por criar desigualdade insuperável, que traduz maior vantagem a quem detenha maior renda, resultando em parâmetro flagrantemente injusto e inaceitável.

Ainda, seja nos valores eleitos pela Medida Provisória, seja nos que acabaram vigorando na lei, a crítica que se mantém, diz respeito à falta de base jurisprudencial para essa eleição, ou seja, são valores aleatórios e afivelados aquele ao benefício previdenciário e este ao salário, o que não tem respaldo jurisprudencial e cria disparidade com situações idênticas que podem ocorrer inclusive fora da seara trabalhista.

Aspecto que não tem sido levado em conta resulta justamente da absoluta falta de critérios objetivos que traduz enorme desigualdade, também com tom de inconstitucionalidade, uma vez que não apenas sujeita o jurisdicionado a valores desiguais em situações idênticas3, como a valores desarrazoados, onde são fixadas verbas superiores a casos de menor gravidade, contrapostos a verbas inferiores em situações de maior repercussão moral.

Em conclusão - e com a devida vênia -, a conclusão do Min. Gilmar Mendes, onde apenas afasta o teto das reparações, mas mantém a constitucionalidade do texto, acaba por manter a desigualdade decorrente do critério adotado, a ela somando a insegurança que resulta da liberação do teto legal, capaz de traduzir fixações aleatórias.

__________
 
1 "Art. 223-G. 
§ 1º Ao julgar procedente o pedido, o juízo fixará a reparação a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:
I - para ofensa de natureza leve - até três vezes o valor do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social;
II - para ofensa de natureza média - até cinco vezes o valor do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social; 
III - para ofensa de natureza grave - até vinte vezes o valor do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social; ou
IV - para ofensa de natureza gravíssima - até cinquenta vezes o valor do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
 
§ 3º Na reincidência de quaisquer das partes, o juízo poderá elevar ao dobro o valor da indenização.
§ 4º Para fins do disposto no § 3º, a reincidência ocorrerá se ofensa idêntica
ocorrer no prazo de até dois anos, contado do trânsito em julgado da decisão condenatória.
§ 5º Os parâmetros estabelecidos no § 1º não se aplicam aos danos
extrapatrimoniais decorrentes de morte." (NR)
 
2 Disponível aqui. Edição de 24.09.2012> Acesso em 24.09.2012
 
3 Vale aqui destacar o famoso caso do Massacre do Carandirú, antes mencionado, onde as famílias dos presos (111 no total), por um homicídio coletivo causado em situação individual idêntica, teve fixações que variaram de 8/30 de um salário mínimo a 500 salários mínimos, oscilando em fixações de 20, 50, 100, 500 salários mínimos, sem que qualquer explicação minimamente razoável pudesse ser colocada aos familiares que receberam tais valores, capaz de justificar a oscilação.[1] "
Mirna Cianci

VIP Mirna Cianci

Procuradora do Estado de São Paulo. Doutora e mestre em Direito Processual Civil. Professora. Sócia no escritório Cianci Quartieri Advogados.

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