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À memória de Arruda Alvim que inspira

No luto que escreve seu epitáfio emblemático se encontram três pilares: a unidade do direito a partir de uma cultura concreta de justificação; a segurança jurídica; e a mútua confiança entre as pessoas e as instituições.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Atualizado às 16:41

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Alça-me o pesar a um sentimento de réquiem. Integro a honrosa legião infinita de alunos e discípulos que se erigiram nos generosos ombros do Professor José Manoel de Arruda Alvim Neto, um admirável intelectual cuja perda recente enlutou toda a comunidade jurídica.

Foi um ser humano coerente com a racionalidade de sua formação e interveniente no seu tempo. Tratou não somente da vida do Direito como também do direito da vida, controversa e aberta, esse grande canteiro de obras que é a interpretação e aplicação da normatividade jurídica no Brasil, e o fez na temperança entre segurança jurídica e justiça.

Arruda Alvim não é somente um grande autor que evocamos. É uma biblioteca inteira. As áreas nas quais cultivou seu múnus, na advocacia, na consultoria, no exercício da magistratura, estão vincadas pela sua dedicação às mais variadas especialidades do universo jurídico.

Brindou-me a vivência acadêmica com a orientação de Arruda Alvim no Mestrado e no Doutorado, a ele apresentado que fui pelos professores Lamartine Correa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz, da Faculdade de Direito da UFPR, minha alma mater; mais que isso, o transcurso da existência obsequiou-me, praticamente no dia seguinte à colação de grau, a viajar nas águas do Direito com a caravela que o Mestre e Amigo pôs a flutuar na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Explorou ali múltiplos territórios do conhecimento jurídico. Deixou legado e obra a nos inspirarem.

Lembro-me de 1982 como se hoje fosse. Ministrava aulas com o primor de uma oração, preciso, sereno e firme como o oficiante de uma cerimônia nos altares do conhecimento. Corteses e coerentes sempre foram suas lições. Era um semeador. O pensamento nele sistematizado, ao verbo fácil a passagem lhe negava.

Arruda Alvim sabia à erudição. A contribuição inconfundível consiste em aporte essencial para compreender o transcurso do processo civil brasileiro, a experiência da codificação civil desde o Código Bevilacqua de 1916, bem como o percurso de quase 200 anos de experiência constitucional, sendo mais de três décadas da vigência da Constituição da República Federativa de 1988. Assim hauriu e explicitou o seu modo de ver, sem relegar as tensões entre Direito Público e Direito Privado, ao menos em dois sentidos, quer horizontal, à luz dos debates sobre a primazia da fonte e a reserva da especialidade, quer vertical, que fotografa sístoles e diástoles da pessoa ao cidadão, do contrato à ordem econômica e social, e dos direitos de personalidade aos direitos fundamentais.

O Mestre Arruda Alvim doutorou-se na PUC de SP em 1970, uma década após haver obtido o diploma de bacharel na mesma instituição. Sua tese, intitulada "Ensaio sobre a litispendência no direito processual civil" é um monumento, com mais de 1000 páginas. A vasta produção em direito processual civil e a intensa atividade como professor amplificaram sua notoriedade em todo o país. O "Manual de Direito Processual Civil", cuja 20ª edição data de maio de 2021, tornou-se verdadeira bíblia, indispensável aos profissionais do direito.

Giuseppe Chiovenda, Leo Rosemberg (de cujas 16 edições guardava ao menos 8) e José Frederico Marques foram influências que o marcaram na seara processual. Herdeiro, afinal, de uma tradição privatista que remonta ao século XIX, sua produção em direito civil é igualmente (quiçá ainda mais) robusta, notadamente no que se refere ao direito das coisas.

Suas reflexões a respeito da "convenção processual" bem demonstram a clivagem entre o direito civil e o processual. A origem da "convenção processual", a qual remonta ao negócio jurídico, envolve a captura de um instituto do direito material, inserto na ambiência processual. Herdamos, também, suas reflexões sobre função social da propriedade urbana e o Estatuto da Cidade.

A travessia entre todos esses temas era singrada com nobreza pelo Mestre Arruda Alvim, o que só se pode atribuir à rigorosa atividade de pesquisa e docência, engrandecendo, também, o caminho de seus alunos e discípulos, como é próprio dos verdadeiros professores.

Para além das aulas inesquecíveis, da vastíssima obra publicada sob a forma de livros e artigos, deixou-nos, ainda, ensinamentos importantes sobre a função social da propriedade urbana e o Estatuto da Cidade. Legou-nos, também, a RePro e a Coleção Enrico Tulio Liebman, verdadeiro patrimônio jurídico brasileiro.

Como jurista no tempo do Brasil contemporâneo não se arredou da pauta de deveres morais, do compromisso estrito com os preceitos constitucionais, do respeito ao sistema de regras, de princípios e de restrições; e da tarefa de aplicar o direito na inteireza de sua complexidade.

Arruda Alvim reconheceu essa complexidade, o que corresponde a refletir sobre o direito dos dias atuais, cujos sintomas não lhes escaparam e que são, dentre outros: o fim da invisibilidade do aplicador da lei; a interpelação que emerge da ética da convicção à ética da responsabilidade, nos termos do clássico Max Weber; ao tropel dos eventos que desmancha o saber, nas palavras de Milton Santos; a responsabilidade pela casa comum, como se lê na admirável Encíclica Papal "Louvado Seja".

A todos nós o Professor Arruda Alvim lançou luzes sobre o contexto dos dias correntes, esse mal-estar da juridicidade e seus problemas de efetividade e seus sintomas: a degradação da autoridade da lei, os riscos da abdicação da democracia, e a imperatividade, realçada pela doutrina alemã, na realização de direitos fundamentais.

Era o Mestre Arruda Alvim um ser humano com esperança num porvir melhor para toda a humanidade. Não deixou de enaltecer a retomada de valores, a probidade, a integridade, e mesmo o novo desenho weberiano do Estado e da administração.

Em Arruda Alvim tivemos formulações teóricas materialmente adequadas ao tempo e ao espaço brasileiro, com o refinamento de quem conhecia o Zeitgeist das fontes diretas, transitava de modo ímpar entre conhecimento e experiência.

Situou-se naquela esfera elevada que Paolo Grossi denominou de nobiltà del diritto. Está para o Brasil como Franz Wieacker esteve para a Alemanha do século XX; um jurista à altura de Salvatore Pugliatti, dos clássicos como Raymond Saleilles e François Gény, e mais, sem favor algum, do talhe, zum Beispiel, de Hedemann, Larenz, Esser, entre outros de escol.

No luto que escreve seu epitáfio emblemático se encontram três pilares: a unidade do direito a partir de uma cultura concreta de justificação; a segurança jurídica; e a mútua confiança entre as pessoas e as instituições.

À memória de Arruda Alvim também calha o dístico flutuat nec mergitur. Aberto às diversas e distintas correntes do pensamento, mesmo na voragem do tempo contemporâneo, verdadeiro educador permaneceu em sua baliza mensageira, inscrevendo-se Arruda Alvim na morada perene da cultura, do saber e da ciência do Direto.

Edson Fachin

Edson Fachin

Ministro do STF.

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