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A USP e a disputa pela reitoria

Comunidades cientificas respeitadas e universidades públicas conceituadas exigem liberdade de pensamento, condições de trabalho, ambiente de ensino, autonomia administrativa e independência funcional - ou seja, requisitos que o atual governo não honraria, se pudesse.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Atualizado às 10:40

(Imagem: Arte Migalhas)

Nas apresentações que fizeram aos membros da Congregação da Faculdade de Direito da USP, no dia 28 de outubro, os dois candidatos a reitor apresentaram seus projetos e as diretrizes que adotarão, caso venham a integrar a lista tríplice e ser escolhidos pelo governador. Contudo, apesar de suas boas intenções e de sua simpatia, deixaram parte da plateia frustrada. 

Em primeiro lugar, porque privilegiaram uma agenda essencialmente burocrática, como se os problemas USP se reduzissem apenas a questões técnicas e de gestão administrativa. Em segundo lugar, porque nada falaram a respeito de como reagirão a pressões externas, sejam elas políticas, sejam oriundas de setores econômicos que reivindicam sua submissão à princípios de utilidade mercantil e à lógica do mercado, onde conhecimento é tratado como mercadoria. E, em terceiro lugar, porque não levaram em conta que, nestes últimos tempos, a comunidade acadêmica e científica tem ficado à mercê das contingências de governos e de preconceitos de governantes. Com isso, frustraram quem esperava que tratassem de questões institucionais, como, por exemplo, a sistemática agressão do governo ao princípio da autonomia universitária, o processo de asfixia orçamentária do ensino superior público, o menosprezo pela proteção do meio ambiente, o desprezo pela pesquisa e a negação da ciência. 

Assim, deixaram no ar quem aguardava deles uma atitude resistência às ameaças aos direitos fundamentais do corpo docente da USP, como ocorreu com a ofensiva jurídica da AGU contra um professor da instituição, o constitucionalista Conrado Hubner Mendes. Improcedente e intimidadora, a iniciativa foi tomada pela AGU apenas por ter ele exercido sua liberdade de opinião, criticando a omissão do Ministério Público Federal na fiscalização de atos de um presidente da República autocrata, homofóbico, inepto, inconsequente e irresponsável. 

Além disso, apesar das reiteradas afrontas desse presidente às instituições de direito e ao regime democrático, em momento algum desses candidatos mostraram ver a Universidade publica como um espaço autônomo dos poderes político e econômico, bem como um locus de liberdade de criação, de pensamento e reflexão crítica. É difícil saber se os dois candidatos foram omissos por questão de esquecimento ou, então, por contemporização. Mas o fato é que, como se entendessem equivocadamente que as posições de uma universidade pública devam ser neutras, uma vez que é praticamente impossível que ela se expresse em nome de todos seus integrantes, os dois candidatos perderam uma excelente oportunidade para mostrar como encaram, por exemplo, a crítica de que universidades públicas são "locais de baderna" e as insistentes tentativas desmanche do ensino superior público. 

No fundo, ambos agiram como se a ausência de uma manifestação sobre essas questões equivalesse a uma imparcialidade de juízo. Assim, desprezaram o risco de que ela pudesse ser entendida como um silêncio pusilânime. Pecaram por se esquecer de que reitores de uma universidade de ponta, como a USP, têm de enfrentar dois desafios. Por um lado, o de compreender as transformações de sua época. Por outro, o de estimular ações transformadoras por meio de suas atividades não apenas administrativas, mas, também intelectuais. Esqueceram-se, também, de que a gestão de uma universidade pública do porte da USP, a maior da América Latina, requer não apenas eficiência administrativa, mas coerência político e compromisso. Dessa forma, relevaram as razões políticas e as motivações culturais que levaram à criação, no dia 24 de janeiro de 1934, da própria instituição que almejam dirigir. 

Comunidades cientificas respeitadas e universidades públicas conceituadas exigem liberdade de pensamento, condições de trabalho, ambiente de ensino, autonomia administrativa e independência funcional - ou seja, requisitos que o atual governo não honraria, se pudesse. Foi justamente por isso que o silêncio dos dois candidatos a reitor da USP com relação a de temas institucionais, num período de fortes tensões políticas, deixou vários membros da congregação da Faculdade de Direito decepcionados com as alternativas que ofereceram. 

José Eduardo Faria

José Eduardo Faria

Professor titular da Faculdade de Direito da USP. Chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito (DFD).

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