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Homogenia capilar - A defenestração social praticada na raspagem capilar compulsória no sistema penitenciário brasileiro

A correlação que se faz entre a população carcerária, de cabelos raspados e uniformes padronizados, como sendo uma parcela inferior e perigosa da sociedade evidentemente traz prejuízos imensuráveis à personalidade do custodiado. É inegável que, em razão desses atos e fatos, a população carcerária seja cada vez mais marginalizada.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Atualizado às 08:51

(Imagem: Arte Migalhas)

Apesar das previsões legal e constitucional, a Portaria do Ministério da Justiça 1.191/08 institucionalizou o flagelamento legalmente justificado da imagem pessoal dos presos ao prever a obrigação de raspagem dos pelos faciais dos custodiados ao adentrarem no sistema penitenciário.

A psicologia define a identidade pessoal como a imagem que a pessoa tem de si mesma. É a resposta à pergunta fundamental quem sou eu? A formação da identidade pessoal no indivíduo passa por diversos aspectos, dentro os quais destacamos valores morais, costumes, padrões de comportamentos e o estilo estético. É inegável a importância que o "parecer e se sentir belo" tem no âmago da psique humana, sendo fundamento principal da diferenciação entre os indivíduos.

Sobre o tema do direito à identidade pessoal, que geralmente permeia o Direito Civil e as indenizações por danos morais, há uma situação corriqueira no âmbito da execução penal e que, só agora, ficou sob os holofotes. Trata-se da raspagem compulsória do cabelo, barba e bigodes dos presos custodiados em penitenciárias federais. A prática milenar, passou por muito tempo relegada ao esquecimento, dada a marginalização social daqueles que costumeiramente constituem a população carcerária. No entanto, com a crescente investigação e punição dos crimes de colarinho branco, passando figuras públicas e com grande poder aquisitivo a figurarem entre o rol de custodiados do sistema penitenciário, a medida vem sendo discutida em ações pontuais no judiciário.

O tema é regulado pela Portaria do Ministério da Justiça 1.191/08 que disciplina os procedimentos administrativos a serem efetivados durante a inclusão de presos nas penitenciárias federais. A norma pontua em seu art. 2º, VIII, "a", "b", "c"1 que:

Art. 2º Compete ao Chefe da Divisão de Segurança e Disciplina, e, na sua ausência e de seu substituto legal, ao Chefe da Equipe de Plantão, coordenar a realização dos seguintes procedimentos, durante a inclusão de presos:

VIII - realizar o processo de higienização pessoal, incluindo:

a) cortar cabelo, utilizando-se como padrão o pente número "2" (dois) da máquina de corte;

b) raspar barba;

c) aparar bigodes.

A justificativa legal para a prática até então inquestionável das administrações penitenciárias federais é de que se trata de medida de asseio importante para a questão de segurança física do preso, além da promoção de sua saúde evitando-se o contágio de parasitas (piolhos e lêndeas) nos estabelecimentos penais. Aqueles que defendem as medidas postulam, além dos argumentos anteriormente narrados, a questão da adoção dessa prática em outros ambientes, dentre eles os monastérios budistas e as instituições militares.

Com as recentes prisões de figuras importantes do cenário político e econômico brasileiro, começou-se o debate acerca da constitucionalidade de tais medidas. A priori, a Corte Constitucional tem decidido pela manutenção da medida, como foi o caso do ex - deputado Rocha Loures que solicitou ao STF não ter os cabelos raspados quando de sua transferência para o Complexo da Penitenciária da Papuda. O pedido foi negado e ex-assessor parlamentar foi flagrado por diversos meios de comunicação com o couro cabelo completamente raspado. A defesa do ex-deputado alegou a questão da violação à intimidade e à integridade física do então réu, argumento que fora rechaçado pela Corte Constitucional.

Apesar da recente discussão aberta sobre o tema, que teve figuras marcantes como estandartes do debate, entre eles o ex-bilionário Eike Batista e o Ministro de Estado Geddel Vieira Lima, sendo que este último foi ojerizado pela população ao chorar por causa da calvície que lhe foi imposta, o debate não é novo. Há extensa jurisprudência dos Tribunais de Justiça brasileiros tratando sobre o tema, seja aceitando, seja declinando o direito dos custodiados de manterem a cabeleira.

A discussão é interessante uma vez que põe em xeque a tese de que, em razão dos atos praticados que levaram o indivíduo ao sistema penitenciário brasileiro, poder-se-ia agredir a integridade física, sob o aspecto da própria identificação do indivíduo. A interpretação do ordenamento jurídico demonstra que, muito mais que rechaçada, essa prática é absurda e deve ser considerada inconstitucional de imediato por ferir diversos direitos e preceitos constitucionalmente assegurados a todo e qualquer ser humano.

A Constituição Federal2, em seu art. 5º, X preceitua que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

O Código Penal3, por sua vez, diz, em seu artigo 38 que:

Art. 38 O preso conserva todos os direitos não atingidos pela liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral

Como se vê, o nosso ordenamento jurídico é taxativo no que tange à manutenção de todos os direitos não intrinsicamente ligados à liberdade, daqueles que estão sob a custódia penal do Estado. A Constituição Federal, por sua vez, assegura expressamente a inviolabilidade da intimidade e imagem das pessoas, assegurando inclusive o direito à reparação pelo dano sofrido. Forçoso concluir, como dito anteriormente, que o Estado Brasileiro assegurou a todos, indistintamente, o direito à preservação da imagem pessoal.

Apesar das previsões legal e constitucional, a Portaria do Ministério da Justiça 1.191/2008 institucionalizou, no Brasil, o flagelamento legalmente justificado da imagem pessoal dos presos ao prever em seu bojo a obrigação de raspagem dos pelos faciais dos custodiados ao adentrarem no sistema penitenciário. A norma em questão retira da pessoa do apenado o direito à manutenção dos sinais físicos que lhes são característicos sob a justificativa de segurança pessoal e sanitária do estabelecimento prisional. No entanto, as razões apontadas nada mais são que falsas verdades suscitadas para justificar as condutas arcaicas e antidemocráticas adotadas.

O estudo da hermenêutica jurídica permite concluir que as normais infralegais, como é o caso da Portaria ora debatida do Ministério da Justiça, não possuem a prerrogativa de ferir o texto da lei strictu sensu e muito menos da Constituição Federal.

É certo que a obrigação imposta ao custodiado, de raspar os pelos faciais, fere importante aspecto do direito da personalidade: o livre arbítrio no que pertine à identificação identitária do preso. Podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que o ato de raspar a cabeça dos apenados caracteriza tratamento desumano e degradante, sendo ainda espécie de penalidade não prevista em lei. Não há, a guisa de exemplo, a mesma imposição às mulheres condenadas à reclusão ao cárcere. Se considerarmos a verossimilhança entre os estabelecimentos prisionais masculinos e femininos, e o fato de que ambos estão expostos aos mesmos riscos físicos e sanitários, igual medida deveria ser adotada no âmbito das penitenciárias femininas.

Por qualquer ângulo que se olhe a questão é extremamente perceptível o fato de que não há justificativas plausíveis para as práticas medievais adotadas pela malograda portaria, sendo patente, portanto, a sua ilegalidade e inconstitucionalidade.

No âmbito internacional, é posição majoritária a de que a raspagem compulsória do cabelo e barba dos apenados fere a dignidade da pessoa humana à medida que atinge o âmago da identidade pessoal do indivíduo. Foi o que decidiu a Corte Europeia de Direitos Humanos ao julgar a Bulgária como violadora de normas internacionais que proíbem a prática de tortura e tratamento degradante e desumano aos presos, no caso conhecido como Yankov vs. Bulgária4.

No território nacional, por sua vez, temos decisões em ambos os sentidos, ou sejam, que julgam legais e constitucionais a arcaica prática ora discutida, e aquelas que corretamente repudiam o ato. Percebe-se que há uma divergência entre os tribunais conforme o Estado da federação.

A raspagem compulsória dos cabelos e barba de presos no âmbito do sistema penitenciário brasileiro é mais uma das diversas inconstitucionalidades que existem no sistema. A violação forçada à imagem autodeterminada dos custodiados, sob a justificativa que se faz de segurança física e sanitária, é, acima de tudo, uma falta de humanidade com aqueles já marginalizados pela sociedade por outras razões.

O comando contido na portaria no Ministério da Justiça que determina o corte de cabelo e barba dos custodiados em penitenciárias federais é completamente insustentável no âmbito do Direito brasileiro. A violação aos caracteres que distinguem as pessoas entre si, causando uma perda da identidade pessoal dentro dos presídios federais, é uma violação das mais graves possíveis à dignidade humana por atacar a percepção de ser sujeito único que os apenados anteriormente à raspagem dos cabelos tinham.

A imagem pessoal está intimamente relacionada à personalidade humana, sendo a sua violação, em regimes totalitários por exemplo, uma forma de vulnerabilizar pessoas ou grupos sociais. A raspagem obrigatória e ativa dos cabelos e barba dos custodiados contém um efeito ainda mais preservo. Além de roubar a identidade (características e gostos pessoais) do apenado, atribui outra totalmente marginalizada a ele: a estigmatização da compleição de um apenado. Esse rótulo social que se disseminou sobre os presos, todos com as cabeças raspadas, somado aos seus uniformes padronizados, permeiam a consciência coletiva, atribuindo uma imagem pejorativa da sociedade em relação às pessoas presas.

A correlação que se faz entre a população carcerária, de cabelos raspados e uniformes padronizados, como sendo uma parcela inferior e perigosa da sociedade evidentemente traz prejuízos imensuráveis à personalidade do custodiado. É inegável que, em razão desses atos e fatos, a população carcerária seja cada vez mais marginalizada.

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1 Portaria 1.191/2008 Ministério da Justiça

2 Constituição Federal

3 Código Penal

4 Disponível aqui. acesso em 25/09/2021, as 15:36

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira

Advogada criminalista. Atuante na defesa de custodiados em presídios federais. Doutora pela Universidade Nacional de Mar Del Plata. Pós-doutora pelas Universidades de Salamanca (Espanha) e Messina (Itália).

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