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Nexo entre parcelamento do objeto da licitação e ampliação da competitividade

Tais premissas reforçam a necessidade de sólida motivação por parte do gestor público, que exponha e demonstre claramente as influências quanto à competitividade advindas de sua decisão quanto ao parcelamento do objeto.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Atualizado às 13:08

(Imagem: Arte Migalhas)

Por meio do Acórdão 2529/2021-TCU-Plenário1, o Tribunal de Contas da União decidiu dar ciência à Coordenadoria Estadual do DNOCS no Piauí que "incumbe ao gestor demonstrar que a ausência de parcelamento do objeto (...) não restringe indevidamente a competitividade do certame, nos termos dos arts. 3º, inciso I, e 23, § 1º da Lei 8.666/1993".

Depreende-se, pois, da leitura da parte dispositiva do sobredito acórdão que, sob a ótica do TCU, a ausência de parcelamento do objeto da licitação representa, por si só, restrição ao caráter competitivo da disputa, havendo situações, no entanto, em que tal restrição poderia ser devidamente justificada. Estaria assim sujeita à reprimenda da Corte de Contas tão somente a ausência de parcelamento que configurasse injustificada restrição à competitividade do certame.

O objetivo do presente artigo é demonstrar que, ao contrário da premissa sustentada pelo TCU, nem toda ausência de parcelamento pressupõe, necessariamente, diminuição de competitividade.

Para tanto, cabe preliminarmente destacar que, para chegar ao entendimento supra, o TCU invocou dois dispositivos da Lei 8.666/1993, quais sejam, o art. 3º, § 1º, inciso I, e o art. 23, § 1º, que assim dispõem:

Art. 3º (...).

§ 1º É vedado aos agentes públicos:

I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato (...);

[...]

Art. 23. (...).

§ 1º As obras, serviços e compras efetuadas pela Administração serão divididas em tantas parcelas quantas se comprovarem técnica e economicamente viáveis, procedendo-se à licitação com vistas ao melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado e à ampliação da competitividade sem perda da economia de escala. (destacamos)

O primeiro dispositivo (art. 3º, § 1º, inciso I, da lei 8.666/93) não se mostra suficiente para elucidar a questão, pois somente assinala ser vedado ao agente público inserir, nos atos de convocação (editais), condições que restrinjam o caráter competitivo da licitação, salvo se a condição (circunstância) for pertinente, relevante para o específico objeto do contrato. Trata-se de previsão deveras genérica, podendo ser aplicada não só à eventual ausência de parcelamento, por exemplo, mas também à exigência de algum atributo técnico inerente ao objeto em si, ou mesmo de algum requisito de habilitação.

A discussão acerca de eventual restrição ao caráter competitivo do certame em função da não adoção do parcelamento emerge, pois, diretamente do conteúdo do segundo dispositivo mencionado pelo TCU (art. 23, § 1º, da lei 8.666/93), que é justamente o que versa sobre parcelamento do objeto.

Da leitura do aludido dispositivo, extrai-se conclusão no sentido de que o parcelamento será regra caso técnica e economicamente viável a divisão do objeto (em parcelas). E o legislador ressalta, ademais, que o parcelamento tem por objetivos o "melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado" e a "ampliação da competitividade sem perda da economia de escala". Destarte, conforme o art. 23, § 1º, da lei 8.666/93, ainda que o parcelamento viesse a, em tese, ampliar a competitividade, ele não deveria ser adotado caso implicasse perda da economia de escala.

Todavia, a literalidade da expressão - "ampliação da competitividade sem perda da economia de escala" - usada pelo legislador da lei 8.666/93 pode levar o intérprete, como parece ter sido o caso do TCU, a uma generalização equivocada, no sentido de que todo parcelamento implica, necessariamente, ampliação da competividade, embora ele não deva ser efetivado se acarretar perda da economia de escala, isto é, caso coloque em risco a economicidade da contratação. Nesse contexto, toda ausência de parcelamento do objeto traduzir-se-ia, como consectário lógico, em restrição da competividade, a ser devidamente justificada sob pena de configurar ilicitude na contratação pública.

Não se pode ignorar que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/42), alterada pela lei 13.655/18, corrobora a necessidade de que as decisões administrativas atentem para a realidade e não tomem por base interpretação abstrata que nem sempre retrata a dinâmica dos fatos da vida.

Partindo desse norte, impende destacar que, no acórdão 5134/2014-TCU-Segunda Câmara, por exemplo, o Tribunal de Contas da União se manifestou no sentido de que a adjudicação por lote em detrimento da adjudicação por item não necessariamente implica restrição ao caráter competitivo do certame, devendo, antes de mais nada, ser analisado o caso concreto.

O Ministro José Jorge, relator do referido acórdão, consignou no seu voto:

6. (...) a questão debatida se resume ao critério de julgamento adotado no Pregão Eletrônico 01/2014 ['registro de preços de equipamentos de uso e de proteção individual para servidores policiais que atuarão nas atividades de instrutor de tiro, operador de fuzil e grupo de pronta intervenção, para atender a demanda da Superintendência Regional - BA do Departamento de Polícia Federal e outras unidades'], qual seja, o de menor preço global, com a adjudicação por lote, em detrimento da adjudicação por item licitado.

7. A entidade sustenta que o critério por lote foi escolhido por duas razões: a uma, porque os itens agrupados possuem a mesma natureza, para uso específico em atividade policial; e, a duas, porque a maioria dos licitantes fornece a totalidade dos itens especificados. Não haveria, portanto, restrição ao caráter competitivo do certame.

[...]

10. No caso em tela, algumas considerações devem ser feitas. No primeiro momento, observo que a justificativa apresentada pela Polícia Federal, especificamente quanto à alegação de que os itens agrupados possuem a mesma natureza, me parece razoável.

[...]

21. Não vejo, portanto, a alegada afronta à jurisprudência do Tribunal. A interpretação da Súmula/TCU 247 não pode se restringir à sua literalidade, quando ela se refere a itens. A partir de uma interpretação sistêmica, há de se entender itens, lotes e grupos. (destacamos)

Eis aí claro exemplo do equívoco na conclusão generalista extraída da simples leitura do art. 23, § 1º, da lei 8.666/93, justamente quando se está diante de itens (objetos) de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no âmbito de um mesmo ramo de atividade ou segmento de mercado. A propósito, objetos de mesma natureza constituem um 'gênero' do qual são 'espécies' itens que se inserem em um mesmo ramo de atividade. Como exemplo, temos o 'gênero' material de expediente. Já o lápis, a caneta, a borracha, a cola e o grampeador são todos itens distintos entre si, mas, por se enquadrarem em um mesmo ramo de atividade, podem ser considerados 'espécies' do 'gênero' material de expediente.

Na hipótese acima, a adjudicação por item não acarretaria nenhum aumento de competição, haja vista que não existe mercado específico para cada um desses itens. Em termos práticos, a pessoa jurídica (papelaria) que, em determinada localidade, fornece lápis, igualmente fornece caneta, borracha, cola e grampeador. Por outro lado, seria indene de dúvida a violação à economia de escala, já que o aumento da quantidade de itens a serem fornecidos por uma mesma empresa representaria diminuição do preço total por ela ofertado. Donde se conclui que nem sempre a ausência de parcelamento representará restrição à competitividade do certame.

Na verdade, o mais adequado é dizer que, quando os potenciais licitantes forem os mesmos (fornecedores de itens de um mesmo ramo de atividade), a utilização do parcelamento não implicará aumento de competitividade. O risco, nesse caso, não é apenas de a adoção deste resultar em perda da economia de escala, mas também de reduzir a própria disputa em função da baixa atratividade em se fornecer um desses itens isoladamente.

O raciocínio ora desenvolvido afigura-se em perfeita consonância com o disciplinamento da temática do parcelamento na lei 14.133/21 (nova Lei de Licitações e Contratos e Administrativos).

Em primeiro lugar, acertadamente, foi substituída a expressão "tantas parcelas quantas se comprovarem técnica e economicamente viáveis" (art. 23, § 1º, da lei 8.666/93) por "tecnicamente viável e economicamente vantajoso" (arts. 40, inciso V, alínea 'b', e 47, inciso II, ambos da lei 14.133/21). Significa dizer que o parcelamento será cogente quando houver, em primeiro lugar, viabilidade técnica, ou seja, quando o objeto a ser contratado não configurar sistema único e integrado ou não houver a possibilidade de risco ao conjunto do objeto pretendido. É exatamente o que dispõe, a contrario sensu, o art. 40, § 3º, inciso II, da lei 14.133/21, segundo o qual o parcelamento não será adotado quando "o objeto a ser contratado configurar sistema único e integrado e houver a possibilidade de risco ao conjunto do objeto pretendido".

Em segundo lugar, não basta que haja viabilidade econômica, como sugere a redação do art. 23, § 1º, da lei 8.666/93, exigindo-se, com o advento do novo marco legal, que a adoção do parcelamento proporcione alguma vantagem econômica para a Administração, isto é, o parcelamento só será imperioso quando houver perspectiva de proveito econômico, o qual estará implicitamente afastado na hipótese do art. 40, § 3º, inciso I, da lei 14.133/21, segundo o qual o parcelamento não será adotado quando "a economia de escala, a redução de custos de gestão de contratos ou a maior vantagem na contratação recomendar a compra do item do mesmo fornecedor" (grifos acrescidos).

No caso, portanto, da "compra do item do mesmo fornecedor", ou seja, situação em que os itens demandados pertenceriam a um mesmo ramo de atividade (hipótese em que os potenciais licitantes seriam os mesmos), o fato de não haver parcelamento não implicaria redução automática da competitividade, tampouco prejuízo econômico à Administração.

Situação distinta seria a aquisição de itens não pertencentes ao mesmo ramo de atividade, a exemplo da aquisição concomitante de materiais de expediente e de suprimentos de informática, em que deveria ser cogitada, no mínimo, a divisão do objeto em lotes (art. 40, § 2º, inciso I, da lei 14.133/21). Nesse caso, sim, o não agrupamento dos itens de mesma natureza, qual seja, a ausência de parcelamento (em lotes), poderia resultar indevido prejuízo à competitividade do certame, exsurgindo aqui logicamente o dever de buscar a ampliação da competição (art. 40, § 2º, inciso III, da lei 14.133/21).

Dito isso, cabe agora atentar para o caso concreto apreciado no processo que deu ensejo ao supracitado Acórdão 2529/2021-TCU-Plenário. Apreciava-se, naquela assentada, suposta irregularidade relacionada ao Pregão Eletrônico 4/2021/CEST/PI - tinha por objeto a contratação de serviços de vigilância armada em instalações localizadas nos Estados do Piauí e do Maranhão -, consistente no "não parcelamento do objeto do pregão em lotes distintos, especialmente quanto à separação dos itens por unidades da Federação".

Em seu voto, o relator assinalou que "não há obrigatoriedade de o administrador público promover contratações distintas, em função da unidade da federação em que se dará a prestação do serviço". Ressaltou, ainda, que "é cabível a modelagem para contratação de uma só pessoa jurídica para atuar em dois (ou mais) estados da federação, mormente em casos em que as localidades de prestação dos serviços são fronteiriças, desde que as exigências de habilitação na licitação não se afigurem deveras restritivas". Contudo, enfatizou o relator, "impõe-se ao gestor a demonstração de que tais premissas não limitam indevidamente a competitividade do certame, bem como promovem ganhos para a Administração Pública" (grifos acrescidos).

Antes de chegar, no entanto, a essa conclusão absolutamente genérica, caberia ao TCU investigar se as empresas potenciais prestadoras de serviços de vigilância naquelas localidades fronteiriças eram as mesmas. Caso positivo, o parcelamento, como já frisado, não propiciaria necessariamente aumento de competitividade e, portanto, ganhos econômicos para a Administração contratante. Poder-se-ia até mesmo cogitar, ao revés, redução da competição e perda da economia de escala. De outro tanto, na hipótese de serem potenciais licitantes distintos, isto é, empresas que, a despeito de lidarem com serviços de vigilância, não atuassem naquelas mesmas localidades, aí sim a ausência de parcelamento poderia suscitar possível violação à competitividade.

Donde se conclui que a deliberação do TCU inserta no Acórdão 2529/2021-Plenário aplicar-se-ia perfeitamente a essa segunda situação, mas não à primeira, a qual, como frisado, não foi devidamente investigada pela Corte de Contas.

Tais premissas reforçam a necessidade de sólida motivação por parte do gestor público, que exponha e demonstre claramente as influências quanto à competitividade advindas de sua decisão quanto ao parcelamento do objeto.

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1 Proferido na sessão de 20/10/2021, relator Ministro Raimundo Carreiro.

Elísio de Azevedo Freitas

Elísio de Azevedo Freitas

Advogado Especialista em TCU. Procurador - Procuradoria-Geral do Distrito Federal. Doutorando em Direito Constitucional pelo IDP. Mestre em Economia e em Administração Pública pelo IDP. MBA em Regulação pela FGV.

Luiz Felipe Simões

Luiz Felipe Simões

Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pelo IDP, MBA em Controle Externo pela FGV e advogado especializado em Direito Administrativo.

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