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O óbvio foi dito: injúria racial e injúria homofóbica são crimes imprescritíveis e inafiançáveis

Andrey Rondon Soares e Marco Aurélio de Carvalho Rocha

Entendam que "ignorantes e nojentos" são aqueles que em pleno século XXI ainda buscam ofender outra pessoa com base na sua etnia, raça, sexo, cor, religião, idade, deficiência ou orientação sexual. Ainda há muito a ser feito.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Atualizado às 09:22

(Imagem: Arte Migalhas)

O Supremo Tribunal Federal decidiu, no dia 28 de outubro de 2021, que o crime de injúria racial é imprescritível e inafiançável. Com isso, o prazo para condenar alguém por uma ofensa racista passa a ser ilimitado, ou seja, sem tempo específico para que o Estado possa punir aquele agente causador do dano.

No caso, uma mulher branca e idosa proferiu as seguintes palavras para uma trabalhadora negra e frentista de um posto de gasolina: "Negrinha nojenta, ignorante e atrevida". 

O julgamento - que diz respeito ao Habeas Corpus (HC) 154.248 - terminou com o placar de 8 a 1, com relatoria do Ministro Edson Fachin. O único voto contrário à tese firmada foi proferido pelo Ministro Nunes Marques, único ministro do STF nomeado pelo atual presidente da República.

No entendimento confirmado pelo STF, a injúria racial se torna espécie de racismo, o que, na prática, equipara as duas coisas. 

Para melhor entendimento, a imprescritibilidade do crime de racismo é um direito fundamental e está previsto na Constituição da República. O crime ocorre quando há uma ofensa contra um grupo ou coletividade, discriminando uma etnia de forma geral. O crime de injúria racial é classificado como uma ofensa à dignidade de uma pessoa, utilizando-se de palavras depreciativas referente à sua raça, cor, etnia, religião ou origem e está previsto na lei 7.716/89.

No caso em questão, a agressora requereu junto ao STF a prescrição de sua punibilidade, tendo em vista que, por se tratar de idosa, teria como direito a redução pela metade dos prazos de prescrição, previsão contida no Código Penal, em seu art. 115.

Na tese proposta pela autora, o crime realmente estaria prescrito. Contudo, conforme entendeu a Suprema Corte, a agressão, havendo uma referência expressa à cor de pele, atinge toda a coletividade e, não menos, a humanidade, o que configura como prática racista, sujeitando-se, portanto, às regras definidas pela Constituição federal, que expressamente prevê a imprescritibilidade da punição.

O Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, apontou que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, IV, da Constituição). Além disso, o país deve pautar suas relações internacionais pelo "repúdio ao terrorismo e ao racismo" (art. 4º, VIII, da Constituição). E o art. 5º, XLII, da Carta Magna determina que o racismo é crime inafiançável e imprescritível.  Ainda de acordo com o Ministro, a Constituição considera inafiançável e imprescritível a "prática do racismo" e não apenas o tipo penal denominado "racismo".

O Ministro Barroso destacou que "estamos todos precisando passar por um processo de reeducação nessa matéria". Cármen Lúcia opinou que, mesmo no caso de injúria racial, a vítima não é apenas a pessoa ofendida, mas toda a humanidade. O Ministro Lewandowski declarou que o racismo não se limita às condutas previstas pela lei 7.716/89. E o presidente do STF, Luiz Fux, ressaltou que a jurisprudência sobre o tema vem se desenvolvendo no sentido de conferir proteção ampla às vítimas de racismo.

Nesse mesmo sentido de ampla proteção às minorias, é importar unir o HC 154.248 ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4.733, que ocorreu 13/06/2019, quando foi reconhecida a mora do Congresso Nacional para tipificar atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGBT e equiparou a homofobia e a transfobia ao crime de racismo.

Com isso, a injúria homofóbica faz parte, do ponto de vista judicial, da mesma classe penal das injúrias relacionadas à raça, cor, etnia, religião e procedência. Dessa forma, xingamentos homofóbicos e transfóbicos passam a ser crimes imprescritíveis por via puramente judicial, sem que o Poder Legislativo tenha sequer tocado no tema, ante a equiparação dessas ofensas ao racismo.

Infelizmente, o racismo acompanha de forma histórica e estrutural a nossa sociedade e, sendo algo extremamente reprovável e danoso, merece a devida imprescritibilidade prevista em lei e que, agora, alcança também a injúria racial, como bem acertada ficou a decisão do STF. Além disso, em muitos casos, há a desclassificação do delito de racismo para injúria racial e, com prazos prescricionais baixos, invariavelmente era reconhecido o decurso de prazo, diante da morosidade do Judiciário, o que resultava, na prática, na impunidade do ofensor.

A decisão do STF, nesse sentido, contribui para a luta antirracista, uma vez que a ofensa ao indivíduo em sua honra subjetiva por elemento racial é a principal forma de manifestação do discurso racista, como comprova estudo das professoras Marta Machado, Márcia Lima e Natália Neris, que analisou mais de 200 decisões da Justiça sobre o tema.

É preciso que, assim como o Supremo, busquemos sempre contestar de forma veemente toda e qualquer manifestação de racismo. Como já dito pelo jornalista Carlos Lacerda: "A impunidade gera a audácia dos maus" e, relembrando os ensinamentos do filósofo Cícero: "O maior estímulo para cometer faltas é a esperança de impunidade", portanto, racistas e homofóbicos jamais devem ser impunes.

Essa vitória pela imprescritibilidade da injúria racial é muito recente, mas não deveria ser. O óbvio sempre esteve lá, desde 1988, positivado como um direito fundamental, esperamos o óbvio ser dito apenas 43 anos depois.

Entendam que "ignorantes e nojentos" são aqueles que em pleno século XXI ainda buscam ofender outra pessoa com base na sua etnia, raça, sexo, cor, religião, idade, deficiência ou orientação sexual. Ainda há muito a ser feito.

Andrey Rondon Soares

Andrey Rondon Soares

Graduado em Direito pela Universidade Católica de Brasília - UBS. Pós-graduação em Direito Público. Advogado da área trabalhista do escritório LBS Advogados - Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados.

Marco Aurélio de Carvalho Rocha

Marco Aurélio de Carvalho Rocha

Advogado da LBS Advogados - Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados.

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