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Injúria racial pode ser crime imprescritível?

O STF decidiu que a injúria racial é racismo e crime imprescritível. A decisão ignora a lei 7.716/89, critério de técnica legislativa, a decadência, a proporcionalidade e o direito fundamental à prescrição.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Atualizado em 12 de novembro de 2021 09:51

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

No dia 28 de outubro (2021), o Plenário do STF decidiuque o delito de injúria racial configura um dos tipos penais de racismo e, portanto, é imprescritível (Habeas Corpus 154248). A recente decisão não discrepa da orientação jurisprudencial que o STJ já estava a seguir (AgRg no REsp 1849696/SP).

Contudo, surge a pergunta se o postulado da legalidade estrita, determinada e taxativa do direito penal brasileiro permitiria tal conclusão. E vem à mente antiga advertência de Lourival Vilanova segundo a qual o jurista tem um fim específico: "verificar quais as normas em vigor incidem sobre tal ou qual categoria de fatos"1. Forte nessas premissas, parece que considerar a injúria imprescritível implica ignorar (i) a lei regulamentadora do inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal (CF); (ii) critério de técnica legislativa; (iii) o instituto da decadência; (iv) o princípio da proporcionalidade; e (v) o direito individual do acusado à prescrição penal.

1. O mandado constitucional de criminalização e a lei 7.716/89

Segundo o constituinte "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei" (art. 5º, XLII). A expressão "nos termos da lei" levava à inferência de que norma outra deveria delimitar, criminalmente, a práticadoracismo; é dizer, impunha-se "ao legislador o dever de criminalizar determinadas condutas", dentre elas, os "casos de racismo"2.

Ora, é fácil deduzir, por interpretação literal e histórica, que isso ocorreu com a edição da lei 7.716/89, pois na ementa da citada lei assim consta: "Define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor". Ainda, o seu art. 1º assim giza: "Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Portanto, a delimitação criminal veio com a lei 7.716 (lei básica, por assim dizer), e não com a circunstância qualificadora de outro delito (a injúria) por meio da lei 9.459/97.

2. A técnica legislativa do tipo qualificado

A doutrinasempre sustentou que a injúria racial ofendia a dignidade e o decoro de pessoa determinada, diferentemente dos delitos da lei 7.716/89, cujas características são manifestações preconceituosas generalizadas ou que buscam a segregação racial3. Diz-se que na "prática de racismo, o dolo é de segregar, afetando a igualdade. Na injúria, é de ofender a honra subjetiva de alguém"4[destaques meus].

Diz-se, por outro lado, que qualquer lei poderia criminalizar a prática do racismo, além da lei 7.716/89, a qual não esgota a lista dos crimes5. Sim, é verdade. Porém, se o legislador pode criar outros tipos penais, seria inequívoca ausência de técnica legislativa fazê-lo fora do campo da própria lei 7.716, isto é, em outro texto codificado e na forma de tipo derivado (injúria qualificada). E, por boa técnica legislativa, reza a Lei Complementar (LC) 95/98:

"Art. 7º. O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:

IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa"

Diante desse critério, é possível concluir que a prática do racismo não deve ser criminalizada em mais de um texto legal. Há um desincentivo à criação de leis esparsas que tratem do mesmo assunto, exceto se a lei subsequente servir de complemento à primeira (lei básica), vinculando-se a esta por remissão expressa. Se a lei 7.716/89 pode ser considerada a lei básica dos crimes de discriminação ou preconceito racial, a criação de novos tipos dessa natureza fora do seu texto, visando a complementá-la, deve a ela, lei 7.716, fazer remissão.

lei 9.459/97 (art. 2º) criou a injúria racial no Código Penal e, ao mesmo tempo, tratou da prática do racismo, alterando a lei 7.716. Esse contexto normativo e histórico evidencia que a intenção do legislador foi só descrever circunstâncias especiais ao tipo básico (injúria) e não nova conduta típica de racismo. Do contrário, teria plasmado a injúria no bojo da lei 7.716. Não o fez. Preferiu majorar a sanção de um crime já existente. E, como se sabe, "circunstâncias são dados periféricos, acessórios, que gravitam ao redor da figura típica, somente interferindo na graduação da pena"6.

Por isso, a LC 95/98, para a obtenção de ordem lógica, prescreve ao legislador que restrinja cada artigo de lei a um único assunto ou princípio, deixando aos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada na cabeça do artigo.

"Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

II - para a obtenção de ordem lógica:

b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio;

c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida"

Os parágrafos representam "disposição acessória, marginal e complementar do trecho onde figura"7. De modo que as circunstâncias que qualificam o crime veiculadas, a rigor, nos parágrafos do artigo conferem ao tipo penal apenas aspectos complementares, mas não têm o condão de modificar a sua essência8.

Por esse critério, a injúria preconceituosa continuou sendo injúria - e não um novel crime sujeito à imprescritibilidade. A diferença entre ela, injúria, e a prática do racismo se torna mais nítida quando se visualiza critério de técnica legislativa, o qual não pode ser ignorado por quem interpreta o direito penal.  

3. A decadência e o crime imprescritível

Como se sabe, a referida injúria deve ser apurada mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido. Não existindo representação no prazo legal, ocorrerá a decadência.

Nesse cenário, sujeitar a injúria à imprescritibilidade parece um contrassenso, já que, embora o Estado detenha o direito eterno de punir, outra norma (decadência) pode aniquilar tal direito. De um lado teríamos um crime imprescritível e, de outro, uma norma impeditiva do exercício da ação penal. Ora, qual a lógica em buscar a efetividade do ius puniendi pela imprescritibilidade e restringir a ação penal pela decadência? Nenhuma. Então, a imprescritibilidade só tem sentido se incidir sobre aqueles crimes que, em razão da intolerável ofensa social, são apurados mediante ações penais incondicionadas, o que não é o caso da injúria.

4. A proporcionalidade e o crime imprescritível 

Também se sabe que a prescrição penal depende da maior ou menor gravidade do crime, isto é, quanto mais danosa socialmente uma infração, maior deverá ser o tempo concedido ao Estado para agir-punir. Essa ideia de proporção vem desde a obra de Cesare Beccaria9.

O Código Penal estatui que penas mais graves-altas implicam prazos maiores de prescrição. Seguindo essa lógica, a cláusula de imprescritibilidade só deveria recair sobre os crimes de alto potencial ofensivo. Ora, apesar do seu inegável desvalor moral, a injúria preconceituosa comparada a outros crimes (mais ofensivos socialmente) mereceria a cláusula da imprescritibilidade? Parece que não. Aliás, a própria sanção cominada à referida injúria é desproporcional, porquanto reprimida com reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa, ao passo que para o homicídio culposo, um crime contra a vida, tem-se detenção de 1 (um) a 3 (três) anos.

Ainda, a interpretação sistemática da Lei Maior parece tornar o crime imprescritível pouco harmônico com a vedação da pena de caráter perpétuo e com a segurança jurídica, a qual exige que a controvérsia (lide) penal se estabilize e desapareça após o transcurso de determinado tempo. Se o constituinte não quis a prisão perpétua, por que permite eternamente a persecução criminal? Esse contrassenso já fora enfatizado por importante constitucionalista, nos seguintes termos:

"[.] a imprescritibilidade criminal repugna a sensibilidade da comunidade jurídica. Um sistema jurídico equilibrado não deveria consagrar uma situação de incerteza indeterminada. Configura um contrassenso ao lado da disposição que prescreve a inexistência de penas de caráter perpétuo (art. 5º, XLVII, 'b'). Se a pena deverá ter duração determinada, a possibilidade de efetivação da punição penal não deveria ser perpétua"10.

Na mesma linha, há quem sustente que a imprescritibilidade constitui um exagero, não se ajustando à ideia de intervenção mínima do direito penal e ao princípio da proporcionalidade11.

Portanto, ao se admitir que a injúria seja imprescritível nega-se a hierarquia valorativa da tutela penal dos bens e interesses, a qual exige diferenciada e gradual punição dos fatos ilícitos. Considerar imprescritível um delito contra a honra é desconsiderar o princípio da proporcionalidade, que exige justa relação entre o desvalor da conduta e a resposta punitiva estatal.

5. Exegese abolitiva do direito individual à prescrição

De outro lado, é preciso lembrar que o constituinte originário permitiu a incidência da prescrição (causa extintiva da punibilidade) para a quase totalidade dos crimes. A prescrição penal é, por assim dizer, o padrão. Lembra André Estefam que a Constituição adotou o princípio da prescritibilidade das infrações criminais, mediante a exegese dos mencionados incisos do art. 5º a contrario sensu12.

E, reitera-se, se a imprescritibilidade foi prevista no art. 5º da CF (Dos Direitos e Garantias e Fundamentais) como cláusula excepcional, então a contrario sensu haveria um direito à prescrição daquele acusado criminalmente. Ora, uma vez que se trata de direito individual, "as hipóteses de imprescritibilidade não poderão ser ampliadas, nem mesmo por meio de emenda constitucional, por se tratar de cláusula pétrea"13.

Para a injúria preconceituosa ser imprescritível fez-se exegese elástica, extensiva, extravagante. Com isso, abre-se caminho para interpretações que ampliem os crimes sujeitos à imprescritibilidade - instituto de incidência excepcional no direito brasileiro. Se ninguém discorda do absoluto desvalor moral da injúria, a interpretação do STF esvazia a segurança jurídica, a legalidade estrita, determinada e taxativa do direito penal, abolindo à socapa a cláusula do direito à prescrição, que deveria ser intangível.

6. Conclusões

  1. A delimitação criminal da prática do racismo (CF, art. 5º, XLII) veio com a lei 7.716/89 (lei básica, por assim dizer) e não com circunstância qualificadora da injúria por meio da lei 9.459/97.
  2. Critério de técnica legislativa indica que os parágrafos de um artigo são acessórios e servem para complementá-lo, o que se afina à dogmática penal no sentido de que a qualificadora de um tipo lhe confere aspectos complementares sem autonomia típica e sem modificar a essência do delito.
  3. É irrazoável que um crime imprescritível seja apurado mediante ação penal pública condicionada à representação da vítima. Porque eventualmente a decadência acarretará a extinção da punibilidade, tornando inútil a previsão da imprescritibilidade.  
  4. Ontologicamente o instituto da imprescritibilidade não se harmoniza com a segurança jurídica e a proibição da pena de caráter perpétuo. Se a injúria for imprescritível nega-se a hierarquia valorativa na tutela penal dos bens-interesses humanos, a qual exige diferenciada e gradual punição dos fatos criminosos (proporcionalidade).
  5. Existe um direito individual do acusado à prescrição, que decorre da interpretação a contrario sensu da hipótese excepcional da imprescritibilidade no art. 5º da CF. Se a imprescritibilidade não pode ser ampliada nem por emenda constitucional - por se tratar, aquele direito, de cláusula pétrea -, que dirá por interpretação elástica, extensiva, extravagante.

Enfim, o sistema legal brasileiro não indica com razoável clareza e segurança que a injúria preconceituosa é um crime imprescritível. Para considerá-la como tal o enunciado normativo deve ser claro, certo e taxativo. Essa é a lição da teoria do delito para conter o poder punitivo do Estado.

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1- VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 62.

2- BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 416.

3- Cf. GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Dos crimes contra a pessoa. 4. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 103.

4- TRIPPO, Maria Regina. Imprescritibilidade penal. 1. ed. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004, p. 79.

5- NUCCI, Guilherme de Souza. Só quem nunca sofreu racismo na vida que pensa que isso é mera injúria. 2015. Acesso em: 31 out. 2021.

6- GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, vol. 1, p. 468.

7- CARVALHO, Kildare Gonçalves. Técnica legislativa (legística formal). 6. ed., rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2014, p. 162.

8- Cf. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. 13. ed. São Paulo: Atlas, 1998, vol. 1, p. 286.

9- Cf. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad.: J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 102.

10- FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 298-299.

11- Cf. TRIPPO, Maria Regina. Imprescritibilidade penal. 1. ed. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004, p. 81-82.

12- Cf. ESTEFAM, André. Direito penal, volume 1: parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 518.                                                                        

13- CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, vol. 1, p. 584-585.            

Alan Brizola

Alan Brizola

Advogado, é especialista em direito econômico e negocial pela Escola Paulista da Magistratura e em direito tributário pela PUC/SP.

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