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Lei de propriedade industrial x lei de cultivares

Afinal, o uso e replantio da soja transgênica deve ou não ser objeto de cobrança de royalties e outros encargos pela empresa que aplicou a técnica da transgenia?

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Atualizado às 08:36

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O aparente conflito de normas entre as leis 9.279/96 (Propriedade Industrial), e 9.456/97 (Cultivares), no que tange ao uso da soja transgênica, remete-nos a uma reflexão não apenas de cunho jurídico mas também social. Tal antinomia, que algumas vezes possa nos passar despercebida, tem feito parte do cotidiano dos pequenos agricultores de soja do Rio Grande do Sul, visto que eles se encontram como a parte considerada vulnerável em relação à empresa empreendedora de transgenia.

O caso, envolvendo diversos sindicatos de sojicultores do Rio Grande do Sul e a Empresa Monsanto, já percorreu o Judiciário brasileiro no afã de obter um esclarecimento justo entre esses dois diplomas legais e, consequentemente, libertar os sojicultores do dever de continuarem pagando royalties, taxas administrativas e outros encargos à Empresa Monsanto. Os sojicultores fundamentam seus requerimentos na Lei de Cultivares e a Monsanto invoca o seu direito na Lei de Propriedade Industrial, vez que a Constituição Federal de 1988 confere o direito de patente aos autores de inventos industriais¹.

As decisões proferidas pelos tribunais brasileiros envolvendo a Lei de Propriedade Industrial e a Lei de Cultivares, especificamente em relação à soja transgênica, entendem pela prevalência da Lei de Propriedade Industrial. No dia 09 de outubro de 2019, o STJ negou provimento ao Recurso Especial interposto pelos Sindicatos de sojicultores do Rio Grande do Sul cujo entendimento foi pela ausência de conflito entre os dois diplomas legais. Transcrevo a Ementa do Acórdão:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.610.728 - RS (2016/0171099-9)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE : SINDICATO RURAL DE SERTÃO E OUTROS

RECORRIDO : MONSANTO DO BRASIL LTDA ADVOGADOS E OUTROS

EMENTA: INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. PROPRIEDADE INTELECTUAL. AÇÃO COLETIVA. SOJA ROUNDUP READY. TRANSGENIA. LEI DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL. LEI DE PROTEÇÃO DE CULTIVARES. ART. 10. INOPONIBILIDADE AO TITULAR DE PROTEÇÃO PATENTÁRIA. DUPLA PROTEÇÃO. INOCORRÊNCIA. SISTEMAS PROTETIVOS DISTINTOS. PRINCÍPIO DA EXAUSTÃO. CIRCUNSTÂNCIA ESPECÍFICA QUE FOGE À REGRA GERAL. PREVISÃO LEGAL EXPRESSA. (...) 2. A Lei de Propriedade Industrial - em consonância comas diretrizes traçadas no plano internacional e na esteira do dever imposto pela norma do art. 5º, XXIX, da Constituição de 1988 - autoriza o patenteamento de micro-organismos transgênicos, a fim de garantir, ao autor do invento, privilégio temporário para sua utilização. 3. Patentes e proteção de cultivares são diferentes espécies de direitos de propriedade intelectual, que objetivam proteger bens intangíveis distintos. Não há incompatibilidade entre os estatutos legais que os disciplinam, tampouco prevalência de um sobre o outro, pois se trata de regimes jurídicos diversos e complementares, em cujos sistemas normativos inexistem proposições contraditórias a qualificar uma mesma conduta. (...) 5. O âmbito de proteção a que está submetida a tecnologia desenvolvida pelas recorridas não se confunde com o objeto da proteção prevista na Lei de Cultivares: as patentes não protegem a variedade vegetal, mas o processo de inserção e o próprio gene por elas inoculado nas sementes de soja RR. A proteção da propriedade intelectual na forma de cultivares abrange o material de reprodução ou multiplicação vegetativa da planta inteira, enquanto o sistema de patentes protege, especificamente, o processo inventivo ou o material geneticamente modificado. 6. Ainda que a LPI veicule o princípio da exaustão como norma geral aplicável a produtos patenteados, há de se destacar que seu art. 43, VI, parte final, prevê expressamente que não haverá exaustão na hipótese de tais produtos serem utilizados para "multiplicação ou propagação comercial da matéria viva em causa". 7. A toda evidência, a opção legislativa foi a de deixar claro que a exaustão, quando se cuida de patentes relacionadas à matéria viva, atinge apenas a circulação daqueles produtos que possam ser enquadrados na categoria de matéria viva não reprodutível, circunstância que não coincide com o objeto da pretensão dos recorrentes. 8. Diante disso, a tese firmada, para efeito do art. 947 do CPC/15, é a seguinte: as limitações ao direito de propriedade intelectual constantes do art. 10 da lei 9.456/97 - aplicáveis tão somente aos titulares de Certificados de Proteção de Cultivares - não são oponíveis aos detentores de patentes de produto e/ou processo relacionados à transgenia cuja tecnologia esteja presente no material reprodutivo de variedades vegetais. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. (sem grifo no original)

Conforme se percebe, nos termos do art. 947, caput, do Código de Processo Civil² - o qual foi mencionado no presente Acórdão -, trata-se de matéria de grande repercussão social, até porque foi objeto de Incidente de Assunção de Competência.

Analisando a norma contida no art. 43, VI, parte final, da Lei de Propriedade Industrial, o STJ entendeu pela exaustão do tema, vez que é inadmissível a reprodução de matéria viva patenteada para fins comerciais. No entanto, pela análise sistêmica dos arts. 42 e 43³, percebe-se uma tênue diferença de tratamento do produto patenteado, sendo uma situação possível e a outra não permitida.

O cerne do presente caso encontra-se entre as disposições do art. 42 da Lei de Propriedade Industrial (lei 9.279/96) e o art. 10, incisos I, II e IV da Lei de Cultivares (lei 9.456/97).4

Conforme se observa, a concessão de patente pela Lei de Propriedade Industrial segue requisitos condicionantes para qualquer invenção e atribui propriedade ao inventor; ao passo que a Lei de Cultivares confere proteção às plantas registradas e suas sementes, permitindo, assim, o seu uso para replantio, venda, utilização como alimento e matéria prima. A esse respeito, pode-se dizer que o legislador não vislumbrou sobre a tênue incidência de diplomas legais sobre as mesmas espécies vegetais. O caso analisado não se encontra circunscrito apenas nas consequências decorrentes de uma patente de invenção da soja aos agricultores do Rio Grande do Sul; trata-se, pois, de reivindicações infrutíferas quando se pretende utilizar a soja transgênica como semente cultivável.5

As decisões do TJRGS referem-se ao Direito do Agricultor em face da Lei de Cultivares, especificamente sobre a ilegalidade da cobrança de royalties sobre as sementes reservadas e que já devem ter expirado o prazo do direito conferido às patentes de invenção.

Depois de analisadas as razões de convencimentos contidos no Acórdão supracitado, somos tomados a refletir sobre uma possível prevalência da Lei de Cultivares sobre a Lei de Propriedade Industrial pelo critério de interpretação cronológico, dado que a primeira é de 1997 e a segunda de 1996, sendo ambas federais; e, ainda, que existe uma possível lacuna entre uma norma e outra na parte atinente à ausência de disposição, na Lei de Propriedade Industrial, sobre árvores, e a Lei de Cultivares é específica sobre estas espécies vegetais.

Pela análise, os sojicultores gaúchos já dispõem de uma norma, a meu ver, específica apara disciplinar os seus direitos que é a Lei de Cultivares. Mas, pelo andar da carruagem, os litígios estão longe de conceder uma prestação jurisdicional justa, principalmente aos pequenos agricultores. Apesar das inúmeras ações contra a Monsanto, os tribunais brasileiros vêm adotando o mesmo entendimento a favor da multinacional, num verdadeiro nocaute à Lei de Cultivares. Como se percebe, é uma antinomia jurídica que reclama sérias preocupações por parte dos legisladores brasileiros para, finalmente, resolver esse problema de entendimento jurídico. E, assim, é preciso que nosso ordenamento jurídico possa conceder melhores condições de trabalho aos pequenos, médios e até grandes agricultores, principalmente os sojicultores do Rio Grande do Sul.

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1- Art. 5º, XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;

2- Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos. (sem grifo no original)

3- Art. 42. A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos:

(...)

II - processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado.

(...)

§ 2º Ocorrerá violação de direito da patente de processo, a que se refere o inciso II, quando o possuidor ou proprietário não comprovar, mediante determinação judicial específica, que o seu produto foi obtido por processo de fabricação diverso daquele protegido pela patente.

Art. 43. O disposto no artigo anterior não se aplica:

(...)

VI - a terceiros que, no caso de patentes relacionadas com matéria viva, utilizem, ponham em circulação ou comercializem um produto patenteado que haja sido introduzido licitamente no comércio pelo detentor da patente ou por detentor de licença, desde que o produto patenteado não seja utilizado para multiplicação ou propagação comercial da matéria viva em causa. (sem grifo no original)

4- Art. 10. Não fere o direito de propriedade sobre a cultivar protegida aquele que:

(...)

II - usa ou vende como alimento ou matéria-prima o produto obtido do seu plantio, exceto para fins reprodutivos;

(...)

IV sendo pequeno produtor rural, multiplica sementes, para doação ou troca, exclusivamente para outros pequenos produtores rurais, no âmbito de programas de financiamento ou de apoio a pequenos produtores rurais, conduzidos por órgãos públicos ou organizações não-governamentais, autorizados pelo Poder Público. (sem grifo no original)

5- ÁVILA, Charlene de. O Acachapante Nocaute da Lei de Cultivares pelos tribunais brasileiros: Um estudo de caso. PIDCC, Aracaju, Ano VI, Volume 11 nº 02, p.155 - 203 Jun/2017 | www.pidcc.com.br

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ÁVILA, Charlene de. O Acachapante Nocaute da Lei de Cultivares pelos tribunais brasileiros: Um estudo de caso. PIDCC, Aracaju, Ano VI, Volume 11 nº 02, p.155 - 203 Jun/2017 | www.pidcc.com.br

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: Setembro/2021

BRASIL. Lei 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial). Disponível aqui. Acesso em: Setembro/2021

BRASIL. Lei 9.456/97 (Lei de Proteção de Cultivares). Disponível aqui. Acesso em: Setembro/2021

BRASIL. Lei 13.105/15 (Código de Processo Civil). Disponível aqui. Acesso em: Setembro/2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça - STJ. Recurso Especial nº 1.610.728 - RS (2016/0171099-9). Relatora Min. Nancy Andrighi. Disponível aqui. Acesso em: Setembro/2021.

Lúcia Helena de Matos Moura

Lúcia Helena de Matos Moura

Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUC-RS, Especialista em Direito Processual Civil, Direito Tributário e Administração Pública. Técnico Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará - TRE-CE.

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