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A rachadinha do Capone

Recebimento de significativas doações sem o respectivo recolhimento tributário, não fosse ilícito em diversas outras esferas, ainda assim significaria prática - na veia - de sonegação fiscal.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Atualizado às 09:29

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A decisão do TSE no Respe 0600235-82/SP sobre a repercussão eleitoral (inelegibilidade) relacionada à prática ilícita da "rachadinha" fixou premissas e contornos relevantes quanto a essa espécie "clara e ostensiva de corrupção". Evidenciou o dispêndio criminoso de recursos públicos, não para a prestação de serviços, mas para o recheio de alguns bolsos gulosos.

A Corte superior eleitoral detectou, a um só tempo, a ocorrência de enriquecimento ilícito e de dano ao erário público na prática em questão, que, aliás, já fora julgada como ato de improbidade administrativa (esfera cível coletiva).

Destaco trechos da ementa:

"ELEIÇÕES DE 2020. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. PRÁTICA ILÍCITA DE "RACHADINHA". CARACTERIZAÇÃO SIMULTÂNEA DE ENRIQUECIMENTO ILÍCITO E DANO AO ERÁRIO PÚBLICO. INELEGIBILIDADE DO ART. 1º, I, L, DA LC Nº 64/1990 CONFIGURADA. RECURSO PROVIDO.

(...)  2. O esquema de "rachadinha" é uma clara e ostensiva modalidade de corrupção, que, por sua vez é a negativa do Estado Constitucional, que tem por missão a manutenção da retidão e da honestidade na conduta dos negócios públicos, pois não só desvia os recursos necessários para a efetiva e eficiente prestação dos serviços públicos, mas também corrói os pilares do Estado de Direito e contamina a necessária legitimidade dos detentores de cargos públicos.

(...) 4. O enriquecimento ilícito está caracterizado pelo desvio de dinheiro público para o patrimônio da requerida; enquanto o dano ao erário público consubstanciou-se justamente pelo desvio de finalidade no emprego de verba pública de utilização não compulsória para subsequente apropriação de parte dos valores correlatos em desrespeito à legislação municipal. 5. Flagrante caracterização de existência de contraprestação desproporcional de serviços relacionada a esses valores; pois houve claro pagamento indevido à custa do erário, sendo que a retribuição pelo serviço prestado foi irregularmente superior à efetivamente pactuada" (TSE, Respe 0600235-82/SP, 19/08/2021)".

Mesmo que polianamente alguém acreditasse em Queirozinho da Páscoa ou na Fantástica Fábrica de Chocolate Kopenhagen e suas quimeras sobre a origem caridosa e voluntária da "rachadinha", nem assim a prática deixaria de ser ilícita. 

De fato, paira ainda um outro aspecto criminal-tributário a assombrar os "rachadistas".

É que a rachadinha se trata também de ilícito tributário, sonegação fiscal, perpetrado em detrimento dos cofres públicos estaduais. 

Considerado o milenar princípio tributário "pecunia non olet" (o dinheiro não tem odor), é possível a abstração quanto à origem do fato gerador tributário. Embora exista grande discussão quanto ao tema "tributação de ato ilícito", o Código Tributário Nacional concretiza esse princípio em vários dispositivos (artigos 118, 126, entre outros). 

Mesmo num exercício de abstração, em que se desconsidere candidamente a ilicitude da rachadinha nas demais áreas, do ponto de vista tributário, porém, não haveria como escapar

Destinatários dos valores das rachadinhas, em termos de "negócio jurídico", os "capos" do gabinete parlamentar recebiam esses montantes, digamos, a título de caridosa doação clandestina de seus servidores. Tais valores, centenas de milhares de reais - até mesmo milhões (é o que se noticia) - configuram fato gerador de ITCD (ou ITCMD, conforme a nomenclatura do estado-membro), cuja alíquota chega a 8% no Estado do Rio de Janeiro. Os patamares noticiados, claro, superam qualquer faixa de isenção. A responsabilidade tributária é dos donatários, no caso, os membros da famiglia.

Se houve recebimento sem o respectivo recolhimento tributário, significa - numa adaptação do famigerado caso do miliciano Al Capone - que houve... sonegação! Simples assim.

Um mesmo ato, como se sabe, pode sensibilizar ilicitude em diversas esferas, por exemplo, civil, penal, administrativa, consumerista, sanitária, ambiental etc. No caso das rachadinhas parlamentares, além da área eleitoral (inelegibilidade), cível (improbidade), penal comum (crime de peculato), administrativa (falta ético-disciplinar, conforme o regimento da casa legislativa), delineia-se também ilícito penal-tributário.

Ou seja, pelo tamanho da encrenca, a singela, quase romântica, alcunha "rachadinha" poderia muito bem ser substituída por "rachuchão do Capone".

Paulo Calmon Nogueira da Gama

VIP Paulo Calmon Nogueira da Gama

Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Desembargador do TJMG.

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