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A inconstitucionalidade da anistia federal aos militares estaduais e distritais e os possíveis reflexos no julgamento das ADIns 6.595-DF e 6.663-DF (lei 13.967/19)

A tese principal, de autonomia local para o regime disciplinar de seus agentes, está em ambas e poderá ser o principal fundamento à decisão das últimas ADIs.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Atualizado em 18 de novembro de 2021 13:59

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O plenário do STF julgou, em 4 de novembro de 2021, a ADIn 4377-DF1, que versava sobre relevante matéria, a (im)possibilidade da União anistiar infrações disciplinares militares cometidas por policiais e bombeiros militares. A decisão cresce de importância, à medida que a tese condutora do julgamento unânime deve balizar o julgamento das ADIns 6.595-DF2 e 6.663-DF3, por intermédio das quais os Governadores, respectivamente dos Estados do Rio de Janeiro e da Bahia, buscam o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei (da União) 13.967/19, que vedou a aplicação de sanções disciplinares privativas de liberdade a policiais e bombeiros militares.

Veja-se que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 21, inciso XVII, confere competência à União para conceder anistia. Para tanto, esta deverá ser materializada em lei, devidamente aprovada pelo Congresso Nacional (Art. 48, inciso VIII, da CF/88), de iniciativa concorrente aos legitimados a deflagrar o processo legislativo ordinário.

O instituto da anistia, entretanto, encontra condicionantes no próprio texto constitucional, que devem ser levadas em consideração. Veja-se que compete à União legislar sobre direito penal e processual penal militar, nos termos do art. 22, inciso I, da CF/88. Desse modo, resta claro que a anistia a ser concedida pela União se encontra cingida às infrações penais e não administrativas.

Ademais, ressalvadas as reservas de competência expressas na Constituição, especialmente as do art. 21 e 22, o Constituinte preservou a autonomia política e administrativa dos Estados e dos Municípios, decorrente do próprio princípio federativo insculpido no seu art. 1º, de modo que a competência para legislar sobre matéria afeta aos agentes públicos, sejam servidores ou militares, permanece sob a égide de cada Ente Federativo, nos limites constitucionais (a exemplo daqueles contidos nos arts. 37 a 42).

Não há dúvidas, nesse cenário, que à União compete legislar sobre matéria afeta ao regime jurídico-disciplinar dos seus militares, quais sejam, das Forças Armadas, enquanto aos Estados e ao Distrito Federal compete legislar sobre o regime jurídico-disciplinar dos seus militares, quais sejam, os policiais e bombeiros militares, os quais sujeitam-se aos princípios constitucionais da hierarquia e disciplina previstos no art. 42 e estão subordinados à autoridade suprema do respectivo Governador do Estado, nos termos do art. 144, § 6º, CF/88, e do Distrito Federal, conforme o art. 32, § 4º, da CF/88 e art. 1º da lei 6.450/77.

Foi sob esse contexto que o Governador do Estado de Santa Catarina ajuizou a ADI 4377-DF, buscando obter a declaração de inconstitucionalidade da lei 12.191/10, por intermédio da qual a União concedeu anistia a policiais e bombeiros militares do Rio Grande do Norte, Bahia, Roraima, Tocantins, Pernambuco, Mato Grosso, Ceará, Santa Catarina e Distrito Federal punidos por participarem de movimentos reivindicatórios.

A competência federal para anistiar as práticas tidas como crimes no Código Penal Militar é, formalmente, indiscutível. Todavia, o legislador foi além, anistiando, em seu art. 3º, "os crimes definidos no DL 1.001/69 (Código Penal Militar), e as infrações disciplinares conexas".

É na parte final desse artigo, grifada acima, que a União invade a autonomia dos Estados e do Distrito Federal para dispor sobre o regime disciplinar de seus militares. É nesse sentido que, por unanimidade, o STF julgou procedente, em parte, o pedido inicial para declarar inconstitucional a expressão "e as infrações disciplinares conexas".

Além do bem jurídico que, materialmente, encontrava-se tutelado e destacado no voto do Min. Relator, Gilmar Mendes, qual seja, a proibição constitucional à greve por parte dos militares da União, dos Estados e do DF, o principal fundamento, do ponto de vista formal, foi de que tão somente o legislador local poderia conceder a anistia referente às infrações disciplinares, ou seja, compete à União conceder anistia em matéria penal, tanto aos militares federais quanto estaduais, cabendo, entretanto, a cada Ente federativo, a anistia às infrações administrativas militares.

Essa tese possivelmente estará presente no julgamento das ADIs 6.595-DF e 6.663-DF, nas quais, como dito acima, se questiona a (in)constitucionalidade da alteração promovida no art. 18 do DL 667/69, pela lei 13.967/19, o qual passou a prever, no seu inciso VII, a "vedação de medida privativa e restritiva de liberdade" aos policiais e bombeiros militares.

A lei foi ementada com o propósito de "alterar o art. 18 do DL 667/69, para extinguir a pena de prisão disciplinar para as polícias militares e os corpos de bombeiros militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, e dar outras providências".

A competência da União para legislar sobre as polícias e corpos de bombeiros militares encontra-se prevista no art. 22, inciso XXI, a qual cinge-se às "normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares".

Pelo mesmo princípio da autonomia política e administrativa presente no recente julgamento do STF, tem-se que a competência da União não compreende a capacidade de dispor sobre o regime jurídico-disciplinar dos militares locais, ou seja, por este postulado, se está diante da inconstitucionalidade da alteração legislativa promovida pela União, por invadir a competência reservada aos demais Entes federativos.

De igual modo, me parece que não só padeceria de inconstitucionalidade formal a lei 13.967/19, por esse prisma já enfrentado pelo Supremo, mas também material, uma vez que fulmina, no âmbito militar local, com o direito fundamental à prisão disciplinar (sim, ela é um direito fundamental), previsto no art. 5º, inciso LXI, o qual prevê que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei".

Veja-se que o dispositivo constitucional contempla dupla garantia: a primeira de que nenhum militar será privado de sua liberdade administrativamente se não for por transgressão militar definida em lei. O Constituinte estabeleceu a reserva legal, em sentido estrito, como uma garantia constitucional aos militares. Sob este aspecto, entendo que regulamentos que definem as transgressões militares, via decreto, após a Constituição Federal de 1988, são inconstitucionais, mesmo que haja delegação por intermédio de lei (este tema já teve repercussão geral reconhecida pelo STF no RE 603.116/RS4). A segunda de que a sociedade não ficará sem um regime disciplinar diferenciado aos seus militares, ou seja, de que, justamente para atender aos princípios constitucionais da hierarquia e disciplina, bases da atividade militar e policial militar, haja a possibilidade de privação administrativa da liberdade.

Assim, não se pode desconsiderar que a exceção feita pelo constituinte na parte in fini do art. 5º, inciso LXI, contida na região topográfica dos direitos e garantias fundamentais, também se reveste como uma garantia à sociedade, a qual deve ser aplicada atendendo-se parâmetros de necessidade e adequação, justamente àquele militar que agir à margem da lei, o que configura risco direto ou indireto à própria sociedade.

Ao estabelecer essa dupla garantia, o Constituinte cumpriu o papel estatal do Dever de Proteção5 (schutzpflicht) à sociedade, diante de eventual desvio de seus agentes militares. Explico: ele necessitou protegê-la, estabelecendo os princípios constitucionais da Hierarquia e Disciplina e os meios necessários a assegurá-los, para tanto estas medidas necessitam se encontrar, proporcionalmente, entre a escala da proibição de excesso (übermassverbot) e da proibição de proteção insuficiente (üntermassverbot), ou seja, não podem ser excessivas a ponto de violar outros direitos fundamentais (como os dos militares), mas também não podem ser insuficientes a ponto de deixar a sociedade sem a proteção ao mau exercício destes agentes estatais. Assim, protegeu os primeiros, estabelecendo a reserva legal (as transgressões devem, necessariamente, estar definidas em lei), e a sociedade, ao possibilitar a privação administrativa da liberdade de seus militares transgressores.

Diante disso, o Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul, de modo incidental, nos casos que estavam sendo levados à sua apreciação, estava compreendendo no sentido da inconstitucionalidade formal e material da Lei nº 13.967, de 26 de dezembro de 2019, justamente sob o fundamento de que a União usurpou competência legislativa dos Estados e que a privação de liberdade militar encontra previsão material no art. 5º, inciso LXI, da CF/88, a exemplo do paradigmático HCº 0090005-30.2020.9.21.0000, julgado no dia 09 de dezembro de 2020, por aquele Tribunal Castrense Local6.

Em sentido contrário, o Min. Nunes Marques, em decisão monocrática na Medida Cautelar no Habeas Corpus 200.979/RS7, no dia 29 de abril de 2021, suspendeu liminarmente a execução de uma detenção disciplinar aplicada a militar do Rio Grande do Sul, sob o fundamento de que até a apreciação das ADIn 6.595-DF e 6.663-DF, ambas de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, a lei 13.967/19 permanece em plena vigência.

A meu ver, a decisão pretoriana, utilizando-se deste único fundamento, menosprezou a competência do tribunal castrense local para realizar o controle difuso de constitucionalidade, o qual, após o advento da EC 45/04, aprecia não apenas matéria criminal militar estrita, mas também administrativa disciplinar militar, conforme expresso no art. 125, § 4º, da CF/88.

Em sede conclusiva, há de se dizer que o entendimento unânime do STF, no julgamento da ADIn 4377, em 4 de novembro de 2021, em que se preservou a autonomia dos Entes federativos para dispor sobre o regime disciplinar dos seus militares (anistia às punições disciplinares militares), demonstra-se importante precedente a balizar o julgamento das ADIns 6.595-DF e 6.663-DF, nas quais também se discute a usurpação de competência da União ao dispor sobre a matéria administrativa disciplinar dos militares dos Estados e do Distrito Federal.

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1- A íntegra do processo encontra-se disponível aqui. Acesso em: 11 nov 21.

2- A íntegra do processo encontra-se disponível aqui. Acesso em: 11 nov 21.

3- A íntegra do processo encontra-se disponível aqui. Acesso em: 11 nov 21.

4- A íntegra do processo encontra-se disponível aqui. Acesso em 11 nov 21.

5- A teoria do "dever de proteção" (schutzpflicht) foi desenvolvida pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão pelo amadurecimento da concepção da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, notadamente nas decisões acerca do aborto. A respeito ver: ALVES, Felipe Dalenogare; LEAL, Mônia Clarissa Hennig. O direito fundamental ao bom governo e o dever de proteção estatal: uma análise das competências federativas à implementação de políticas de prevenção e repressão aos atos de malversação do patrimônio público. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, v. 21, n. 2, p. 11-46, 26 nov. 2020.

6- O acórdão do TJM/RS pode ser acessado aqui utilizando-se o número do processo no campo "termos de pesquisa". Acesso em 11 nov 21.

7- A íntegra do processo encontra-se disponível aqui. Acesso em: 11 nov 21.

Felipe Dalenogare Alves

Felipe Dalenogare Alves

Pós-Doutorando, Doutor, Mestre e Especialista em Direito. Professor de Direito Administrativo, Constitucional e Direitos Humanos. Autor e Palestrante. Instagram: @prof.felipedalenogare

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