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Superando o punitivismo contumaz

O objetivo do artigo é demonstrar como o punitivismo é fruto de um entendimento equivocado sobre a função do direito penal, e como é possível superar essa mentalidade.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Atualizado às 11:44

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Persiste a crença de que o Direito Penal deve(ria) ser utilizado para punir, com o máximo rigor, aqueles que transgridem as normas do sistema jurídico vigente; esse equívoco é cometido não só por leigos, mas também pelos operadores de direito de maneira geral, demonstrando que há um punitivismo contumaz em nossa sociedade, o qual precisa ser superado.

Recordemos que o Direito Penal nasce da necessidade de impor limites ao poder punitivo estatal, porque, sem regras claras que imponham limitações ao ius puniendi, predomina-se a arbitrariedade e desproporcionalidade da imposição das penas pelo Estado. Conforme dizia Aristóteles, "a lei é a razão livre da paixão", e é exatamente por isso que o Direito Penal é tão necessário, pois há uma tendência natural nas sociedades de aplicarem penas exageradas a condutas de pouca lesividade ou que poderiam sofrer a sanção de outro ramo do Direito, menos agressivo.

Muitos punitivistas, para justificarem a supressão das garantias asseguradas aos acusados no processo penal, vociferam que as vítimas dos crimes é quem deveriam receber a proteção estatal, portanto, qualquer medida que diminua o rigor da punição aplicada pelos tribunais, ou que proteja os acusados de alguma forma, é vista como uma ode à impunidade.

É evidente que as vítimas merecem proteção, mormente porque nem deveriam ter sido vitimizadas. Desse modo, merecem todo o apoio governamental para que o bem jurídico violado - sempre que possível - possa retornar ao status quo ante. Aliás, a proteção dos bens jurídicos fundamenta a aplicação do Direito Penal, no sentido de que este ramo da ciência jurídica visa proteger os bens jurídicos mais importantes do ordenamento, não só isso, como também apenas aqueles bens que não possam ser protegidos por outros ramos (princípio da fragmentariedade).1

Apesar das vítimas merecerem a proteção estatal, quando o processo penal se inicia, o acusado se torna hipossuficiente frente ao poderio do estado, por isso, deve ter todas as garantias legais que efetivamente limitem o poder de punir. Nas palavras do professor Aury Lopes Junior (2021).

BUENO DE CARVALHO, questionando para que(m) serve a lei, aponta que a "a lei é o limite ao poder desmesurado - leia-se, limite à dominação. Então, a lei - eticamente considerada - é proteção ao débil. Sempre e sempre, é a lei do mais fraco: aquele que sofre a dominação". Nesse contexto insere-se o juiz. Em última análise, cumpre ao juiz buscar a máxima eficácia da ley del más débil. No momento do crime, a vítima é o débil e, por isso, recebe a tutela penal. Contudo, no processo penal opera-se uma importante modificação: o mais débil passa a ser o acusado, que, frente ao poder de acusar do Estado, sofre a violência institucionalizada do processo e, posteriormente, da pena. O sujeito passivo do processo, aponta GUARNIERI, passa a ser o protagonista, porque ele é o eixo em torno do qual giram todos os atos do processo (LOPES JUNIOR, 2021, p. 65, grifo nosso).

É perfeitamente compreensível o sentimento da população que está constantemente ameaçada pela violência do crime, ainda mais nos últimos tempos, em que os índices de criminalidade aumentaram (BORTOLOTTO; DIAS; PASCHOALINO, 2021), agravando ainda mais a sensação de insegurança na sociedade. No entanto, não devemos enxergar a situação com o olhar de um pretenso moralismo, no qual nos enxergamos como seres puros e colocamos aqueles que, por algum motivo, estão vivendo à margem da lei, ou que apenas cometeram um crime pontual, como humanos de categoria inferior que merecem a fogueira, remetendo à ideologia da Idade Média.

A bem da verdade, por causa da ampliação irresponsável do legislador em relação ao uso do Direito Penal, qualquer cidadão de "bem" pode se tornar réu em um processo penal a qualquer tempo e, com certeza, os que agora são contra as garantias penais, quando acusados forem, tornar-se-ão ferrenhos defensores daquilo que atualmente combatem.

Destarte, a mentalidade punitivista é superada quando há um entendimento profundo sobre a função do Direito Penal, tendo em vista que esse ramo da dogmática jurídica não serve para a imposição de maior sofrimento possível aos infratores da lei; antes, serve para limitar o poder punitivo estatal, com a (pré) definição de regras claras e extremamente necessárias para a proteção dos bens jurídicos mais importantes.

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1- A fragmentariedade do Direito Penal é corolário do princípio da intervenção mínima e da reserva legal, como destaca Eduardo Medeiros Cavalcanti: "o significado do princípio constitucional da intervenção mínima ressalta o caráter fragmentário do Direito Penal. Ora, este ramo da ciência jurídica protege tão somente valores imprescindíveis para a sociedade. Não se pode utilizar o Direito Penal como instrumento de tutela de todos os bens jurídicos. E neste âmbito, surge a necessidade de se encontrar limites ao legislador penal" (BITENCOURT, 2020, p. 63).

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BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal. 26. ed. Vol. 1. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

BORTOLOTTO, B.; DIAS, G.; PASCHOALINO, R. Estado de SP tem aumento de 47% no número de roubos de celulares entre maio de 2020 e 2021. G1 São Paulo, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 nov. 2021.

LOPES JUNIOR, A. Direito Processual Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

Anderson Evangelista dos Santos

Anderson Evangelista dos Santos

Acadêmico de Direito e estagiário no contencioso cível.

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