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O processo como pena e o acerto da nova Lei de Improbidade Administrativa ao estabelecer regras de prescrição

Evânio Moura e Ubirajara Botelho

Prolongar indefinidamente uma ação contra alguém, significa punir o acusado, ainda que ao final venha a ser absolvido.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Atualizado em 1 de dezembro de 2021 09:10

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

No livro "O Processo" o escritor tcheco Franz Kafka narra de forma magistral o julgamento de Josef K., réu que passa a enfrentar uma acusação errática, autoritária, atabalhoada e sem observância de um rito adequado, sendo-lhe imposto um emaranhado de atos burocráticos e infindáveis, provocando transtorno e exaurimento. Ao final de malfadado processo, transformado em verdadeira via-crúcis, o acusado suporta a desesperança e o sentimento de que responder àquela imputação já consistia em uma pena1.

A ideia da utilização do processo como pena (strepitus fori ou strepitus judicii) não é nova, tendo Francesco Carnelutti em sua obra clássica "As Misérias do Processo Penal" apontado esse nefando efeito para o réu, sustentando que o processo não pode ter natureza perpétua, afirmando que "Ao chegar a um certo ponto, é necessário ir até o fim, terminá-lo. O processo não pode durar eternamente. É um fim por esgotamento, não por obtenção do objeto. Um fim que se assemelha à morte, mais do que à realização. É preciso contentar-se"2.

Prolongar indefinidamente uma ação contra alguém, significa punir o acusado, ainda que ao final venha a ser absolvido. Referida consequência resulta ainda mais evidente ao se tratar de uma ação cível de improbidade administrativa, quase sempre acompanhada de elevada carga negativa, com exposição pública e outras sérias consequências para o agente político ou servidor público que figure como réu. Nesse sentido é que ganha robustez a afirmação de que o tempo de duração da demanda pode ser interpretado como nefasto efeito do processo e uma espécie de punição antecipada, consistindo em verdadeira agressão à garantia fundamental da duração razoável do processo, agasalhada no art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal de 1988.

Especificamente quanto a este aspecto, merece aplauso a Nova Lei de Improbidade Administrativa - lei 14.230/21 com vigência na data de sua publicação (art. 5º) ao promover uma alteração substancial no microssistema das improbidades administrativas, alterando significativamente a lei 8.429/92, de modo a otimizar e racionalizar, em nosso sentir, a aplicação de sanções, na medida em que cria importantes anteparos à sanha persecutória estatal na seara do direito administrativo sancionador.

Como era de se esperar, profícuas discussões estão eclodindo no mundo jurídico acerca da reforma da Lei de Improbidade Administrativa, demandando estudo e debate pela academia e pelos profissionais do direito.

Dentre as diversas mudanças sofridas pela LIA, chama atenção o novo regime atinente a prescrição, sendo completamente alterada a redação do art. 23 da lei 8.429/92, promovendo a lei 14.230/21, a um só tempo, as seguintes modificações:

1) Aumentou o prazo prescricional para o período de 08 (oito) anos; 2) Alterou o momento inicial de contagem da prescrição, de modo que, a partir de agora, o dies a quo do prazo prescricional corresponde à data da ocorrência do fato ou ao dia em que se cessou a permanência nos casos de infrações permanentes (nova redação do art. 23 da lei 8.429/92); 3) Inseriu marcos interruptivos da prescrição (ajuizamento da ação de improbidade administrativa, publicação da sentença ou acórdão condenatórios ou acórdão que reforma a decisão absolutória e pelas publicações de decisão ou acórdão condenatório pelo STJ e STF que porventura confirmem decisões condenatórias da instância inferior ou reforme decisão absolutória para condenar o réu - art. 23, § 4º, incisos I a V, da lei 8.429/92 com a redação da lei 14.230/21); 4) Inseriu marco suspensivo da prescrição, que se verifica a partir da instauração de inquérito civil cuja abertura suspende o curso do prazo prescricional por um período máximo de 180 (cento e oitenta) dias corridos, não podendo ser superior o período mencionado, nos casos em que o IC perdure por tempo a maior ou sendo suspenso pelo tempo exato do IC acaso seja concluído em tempo menor que os 180 dias previstos - art. 23, § 1º; 5) Inseriu a prescrição intercorrente, modalidade até então inexistente no âmbito da apuração de uma improbidade administrativa, fixando o prazo de 04 (quatro) anos - metade da prescrição própria - art. 23, § 8º, lei 8.429/92, valendo-se dos mesmos marcos interruptivos do art. 23, § 4º da lei 8.429/92.

Evidentemente que o novo regramento acerca da prescrição (própria e intercorrente), com marcos interruptivos e suspensivos, reclamam uma análise acerca da sua incidência temporal, sendo este o recorte promovido pelo presente artigo que, obviamente, não possui o desiderato de esgotar a matéria.

Inegavelmente, a temática da improbidade administrativa está inserida no universo do chamado direito administrativo sancionador, microssistema jurídico que disciplina as condutas, sanções e balizas ritualísticas para a aplicação de reprimendas administrativas que extrapolam o poder disciplinar no âmbito da administração pública, sujeitando-se à sua incidência não apenas agentes públicos, mas todos os jurisdicionados, estando mencionado ramo do direito diretamente ligado à função de estado, notadamente a intervenção estatal sobre as liberdades individuais, ostentando, inclusive, um caráter penaliforme. 

Nesse sentido, colhe-se valorosa lição: "Em nossa ótica, no lugar de conectar a sanção à atividade da Administração Pública, com exclusividade, é necessário conjugar tal instituto estatal, o que implica as já mencionadas interfaces com o Direito Penal. Assim, à ideia de ilícito, disciplinado pelo Direito Administrativo, associa-se a sanção"3.

Com efeito, doutrina4 e jurisprudência5 entendem que, diante do efeito restritivo às liberdades individuais, todos os princípios constitucionais que funcionam enquanto mecanismos de restrição ao poder punitivo estatal (nulla poena sine previa legem, nulla poena sine tipo, nulla poena sine culpa, retroatividade da novatio legis in mellius, irretroatividade da novatio legis in pejus, in dubio pro miserabilis, vedação a analogia in mallam partem, dentre outros princípios), aplicam-se ao universo do direito administrativo sancionador.

Registre-se que a Nova Lei de Improbidade Administrativa expressamente disciplina em seu art. 1º, § 4º, que as improbidades estão inseridas no microssistema do direito administrativo sancionador, afirmando: "Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador".

Dessarte, entende-se como perfeitamente possível a aplicação do princípio da retroatividade da lei mais favorável (lex mitior - art. 5º, XL, CF/88), nos casos em que os novos dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa se mostrarem mais benéficos aos réus em ações de improbidade administrativa, desde que tutelem conteúdo normativo misto ou de direito material, do contrário aplica-se a máxima tempus regit actum.

Volvendo as atenções para a prescrição no direito administrativo sancionador, tem-se que a temática está inserida na porção substantiva do direito (direito material), eis que ligada diretamente ao exercício, de per si, do poder punitivo estatal (substância)6 e não ao caminho efetivamente percorrido para tanto (forma), sendo este posicionamento defendido de há muito pela doutrina que afirma: "no tema em foco - Direito Administrativo sancionador - como no Direito Penal, a retroatividade da lei só é admitida no benefício do réu, amplamente considerado"7.

Conclui-se que as novas disposições da lei 8.429/92 que versam especificamente sobre prescrição (lapso temporal, marcos interruptivos e a novel modalidade da prescrição intercorrente), são regras penaliformes, típicas do direito administrativo sancionador, favoráveis ao réu, devendo retroagir para feitos iniciados antes de sua vigência, aplicando-se o querer do art. 5º, XL, da Constituição Federal8.

Ao fim e ao cabo, afirma-se que a "Nova Lei de Improbidade Administrativa" ao tratar de forma adequada o relevante tema da prescrição, inserido marcos interruptivos e suspensivos do prazo prescricional, além de regulamentar expressamente a prescrição intercorrente, implica em um importante marco civilizatório e, ao contrário dos discursos de que irá fomentar a corrupção e a falta de zelo com a coisa pública, como se o processo fosse uma rena de vale-tudo, as novas disposições põem importantes limites ao Estado. Aliás, para os que alegam que a lei contribuirá para impunidade, cabe o questionamento: porque um processo que apura crimes hediondos como homicídio, estupro ou tráfico de drogas ou mesmo os crimes contra a administração pública de peculato e corrupção, por exemplo, prescreve acaso não julgado dentro de um determinado prazo e um feito (actio civilis) instaurado para apurar eventual ato de improbidade administrativa, uma vez deflagrada a ação, poderia perdurar ilimitadamente? Evidente que a ausência de limitação temporal sempre implicou em severa injustiça.

Com a vigência da lei 14.230/21, alterando o capítulo da Prescrição na LIA (art. 23, lei 8.429/92), põem-se fim as demandas de improbidade que se prolongam no tempo, chegando a perdurar por mais de uma década, vindo muitas vezes a resultar na absolvição ao final do processo. Essa punição pelo processo que se perpetua, angustiando o réu, arruinando sua imagem pública e menosprezando a garantia constitucional da duração razoável do processo, deve ser combatida com a utilização de referidos preceitos legais, evitando que gestores e servidores passem pelas agruras de Josef K. e não tenham que responder a processos intermináveis.

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1- "Agora terei que mostrar que nada me ensinou um ano de processo? Terei de deixar-me dizer que no começo do processo eu queria já terminá-lo e que agora, em seu final, quero tornar a começá-lo de novo". KAFKA, Franz. O Processo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 289.

2- CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Bookseller, 2002, p. 66.

3- OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 86-87.

4- OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Infrações e Sanções Administrativas. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pp. 64-65.

5- STJ - RMS nº 65.486/RO, STJ - RMS 37.031/SP.

6- Nesse sentido, conferir texto do Professor Fábio Medina Osório, publicado aqui no Consultor Jurídico. Disponível aqui.

7- FIGUEIREDO, Marcelo. A Prescrição na Lei de Improbidade Administrativa. In: Improbidade Administrativa: temas atuais e controvertidos. (Coord. Mauro Campbell Marques). Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 212.

8- Nesse mesmo sentido: MEDINA. José Miguel Garcia. A nova Lei de Improbidade Administrativa deve ser aplicada retroativamente?. Conjur, 2021. Disponível aqui. Acesso em 04 de novembro de 2021.

Evânio Moura

Evânio Moura

Doutor em Direito Penal e Mestre em Processo Penal pela PUC-SP. Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito 08 de Julho. Advogado. Procurador do Estado de Sergipe.

Ubirajara Botelho

Ubirajara Botelho

Pós-graduado em Direito Ambiental pela Verbo Educacional (RS) e Pós-graduando em Ciências Criminais pela Faculdade de Direito 8 de Julho (SE). Advogado.

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