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A pessoa e a deficiência de acesso aos espaços coletivos

O presente ensaio aponta as diversas vias por onde a pessoa com deficiência é obrigada ou impedida de passar, em flagrante desrespeito aos seus direitos fundamentais de liberdade e igualdade. Aponta ainda, a ausência de solidariedade como elemento caracterizador da invisibilidade das pessoas com deficiência que são encarceradas do lado de fora do ambiente do poder.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Atualizado às 11:00

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução

1. A ocupação de espaços coletivos sempre foi um grande desafio para as pessoas com deficiência. Tanto as barreiras físicas, quantos as imateriais foram se amontoando com o passar do tempo, impedindo reiteradamente o exercício pleno do direito constitucional de liberdade.

2. O excessivo descaso governamental e social com a população deficiente recrudesceu a marginalização de quem já estava às margens pelas mais diversas razões. É preciso reconhecer que o país sucumbe numa crise crônica de falta de solidariedade.

3. Questiona-se, como reverter esse quadro, tornando a pessoa com deficiência visível aos olhos das políticas públicas, dos governantes e de toda sociedade, a fim de que possam acessar os espaços de poder em igualdade de condições.

4. O desprezo aos direitos fundamentais da pessoa com deficiência pode ser encontrado nos mais diversos espaços coletivos e isso consubstancia a liga que sedimenta as barreiras impeditivas do exercício da liberdade, fraternidade e igualdade.

A pessoa com deficiência na "via pública".

5. A inacessibilidade física é a primeira face do muro que separa as pessoas com deficiência do resto da sociedade. A ausência de rampas, pisos táteis, audiodescrição, elevadores, intérpretes de Libras e, até mesmo, a ausência de calçadas, colocam as pessoas com deficiência na "via pública" expostas a riscos elevados.

6. Por vezes, os argumentos para não ofertar a acessibilidade necessária é a impossibilidade de alteração de espaços tombados, deixando claro que as estruturas físicas, não raras vezes, prevalecem sobre a pessoa e seu direito básico e fundamental de ir e vir.

7. A segunda face não é tão visível, contudo é ainda mais contundente no mister de afastar pessoas formalmente iguais em direitos e diferentes em suas necessidades. Trata-se da rejeição, do preconceito e da ignorância peculiares de quem teima em se importar apenas consigo.

8. Ora, as barreiras materiais e imateriais não podem prevalecer diante da elementaridade do direito de trânsito, que nada mais é que um instrumento para viabilizar o bem-estar social. A simples obediência do texto constitucional já seria suficiente para garantir os direitos básicos (Almeida, 2017), mas às vezes, a Constituição é vista apenas como uma olha de papel em branco.

A pessoa com deficiência na "via dolorosa".

9. A "via dolorosa", segundo a tradição cristã, é o caminho por onde Jesus levou a sua cruz, em cumprimento à sentença de morte que lhe foi imposta. Mal comparando, o sistema penitenciário brasileiro, que por si só já revela um estado de coisas inconstitucional, para a pessoa com deficiência representa a marginalização dos marginalizados.

10. A pior parte é que a sociedade parece possuir uma solidariedade seletiva que não alcança os presidiários, quanto mais os presidiários deficientes. Nem as políticas públicas, nem a caridade se ocupa destas pessoas (Marques, 2021). Certamente, alguns leitores dirão: "nunca pensei num preso cadeirante ou num cego que cometeu crime". Eles são "invisíveis", mas existem e suas necessidades especiais estão relacionadas com os seus direitos humanos e não com os crimes que cometeram.

11. Inclusive, o PL 4.008/19 acrescenta o artigo 43-A na Lei de Execução Penal, para estabelecer que "a pessoa com deficiência cumprirá pena em estabelecimento penal adaptado à sua condição peculiar". No Brasil, quase sempre o óbvio precisa ser dito em leis, pois a falta de bom senso não pode ser subestimada.

12. A Constituição Federal de 1988 firmou a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre a proteção e integração social das pessoas com deficiência, não há razões para crer que os presidiários deficientes não devem ser alvo de proteção e integração, ainda que no ambiente prisional.

A pessoa com deficiência na "via do poder"

13. O fato é que o exercício do poder sempre foi praticamente inacessível às pessoas com deficiência, mesmo com as cotas em concursos públicos, muitos espaços de poder ainda carecem de representatividade.

14. Já defendem os entusiastas da democracia: "nada sobre nós, sem nós". Convém perguntar: até quando a presença de pessoas com deficiência nos espaços públicos irá causar constrangimento aos detentores do poder?

15. A mídia é uma forte arma para apresentação da questão, contudo, a presença de pessoas com deficiência nos meios de comunicação, em especial na televisão é a exceção e, além disso, quase sempre, a aparição dos deficientes é recheada de estigmas e incompreensão.

16. É necessário que as pessoas com deficiência sejam desinvibilizadas e chamadas a ocupar os espaços de poder, efetivamente. Não apenas nos cargos públicos por concurso ou eleição, ou na mídia para exposição de uma imagem politicamente correta. Não se trata de ser convidado para a festa, é preciso ter acesso às comidas, bebidas e, até mesmo, à pista de dança.

Conclusão

17. Por tudo isso, convém ressaltar que a pessoa com deficiência precisa ser vista e respeitada. A sociedade, por sua vez, precisa reconhecer sua responsabilidade na proteção do direito à liberdade de locomoção. 

18. O direito à liberdade deve ser garantido de forma plena, principalmente para as pessoas que possuem necessidade especiais para se locomover nos ambientes materiais e imateriais por onde deseje passar.

19. Mesmo no sistema prisional, deve ser garantido o atendimento às necessidades fundamentais que são inerentes a todos os seres humanos. Independentemente dos crimes que cometeram, a CF/88 garante que a pena não será cruel (art. 5º, XLVII, e). Ademais, "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral" (art. 5º, XLIX).

20. Em verdade, os mais vulneráveis são postos em último plano, porque não participam do exercício do poder na medida adequada. Sem acesso não há representatividade e sem representatividade não haverá influência que motive a mudança.

21. É inexorável. O problema não é a deficiência das pessoas em acessar os espaços coletivos, a deficiência está nos próprios espaços, tornados inóspitos para essas pessoas. A mudança depende de todos, como disse Cervantes: "Quando se sonha sozinho é apenas um sonho. Quando se sonha juntos é o começo da realidade". Sem solidariedade, a liberdade e a igualdade serão sempre para poucos.

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ALMEIDA, Alisson Santos de. A acessibilidade à luz da legislação e da jurisprudênciaRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22n. 506514 maio 2017. Disponível aqui. Acesso em: 1 dez. 2021.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

MARQUES, Pedro Batista. Pessoa com deficiência no sistema prisional brasileiro. Jus, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 1 dez. 2021.

Alisson Santos de Almeida

Alisson Santos de Almeida

Bacharel em direito, Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e Mestrando em Direito, Regulação e Políticas Públicas pela Universidade Brasília - UnB. Ex-advogado do Município de Camaçari.

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