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A municipalização das APPs urbanas: a inconstitucionalidade da lei 14.285/21

Parece que a nova lei - que abre caminho para uma enorme "anistia", não passa no teste da constitucionalidade que por certo se seguirá em nome da proteção dos bens ambientais.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Atualizado às 09:03

(Imagem: Arte Migalhas)
1. A recente lei 14.285, de 29 de dezembro de 2021, modificou três outras leis: o já combalido "Código Florestal", de 2012; a lei da regularização fundiária em terras da União, de 2009; e a lei 6766/79, que é a bem conhecida lei nacional do parcelamento do solo. Apesar de mudar três leis, o tema de que trata é o mesmo, a saber: as faixas marginais dos cursos d'água, que existem para a proteção dela, em função dela, por causa dela: a água é um bem de domínio público e é um recurso natural limitado (diz a lei 9433/97, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos).

2. A recente lei veio mudar, de modo radical, algo que tinha se estabelecido no "Código Florestal", de 2012, ou seja, que as APPs - Áreas de Preservação Permanente existem "em zonas urbanas e rurais", tal como expressamente dispõe o caput do art. 4º. Curioso é que ela não mexe com a cabeça desse artigo, mas dispõe diversamente a respeito do tema, levando à insegurança que havia antes, o que desde logo demanda declaração do STF.

3. A ideia principal da lei foi a de permitir a regularização de áreas urbanas consolidadas, "caracterizada pela existência de edificações residenciais, comerciais, industriais". Em outras palavras, mesmo se as ocupações humanas se situem dentro de APP, elas poderão ser regularizadas, caso a lei municipal o permita. É a consagração do fato consumado. Assim, a primeira modificação da lei é exatamente a de introduzir no art. 3º do "Código" a definição de área urbana consolidada, porque, em seguida, dará outro regime para ela -se estiver situada em APP -, diferente da regra geral do espaço especialmente protegido.

4. E o regime é este: em áreas urbanas consolidadas as APPs podem ser fixadas em dimensões diferentes daquelas definidas, de modo genérico, pelo art. 4º/I. Isto encontra-se expresso no §10 do art. 4º, introduzido agora, e que diz que em áreas consolidadas a lei municipal "poderá definir faixas marginais distintas" daquelas estabelecidas no inciso I, "ouvidos os conselhos estaduais e municipais" do meio ambiente (e tal oitiva, por certo, não será vinculante).

5. De outra parte, no que tange à regularização fundiária em terras da União, o art. 3º da lei, em norma que aparente caráter genérico, estabelece que "os limites das áreas de preservação permanente marginais de qualquer curso d'água natural em área urbana serão determinados nos planos diretores e nas leis municipais de uso do solo" (...). A boa hermenêutica dirá que tal determinação só valerá para a regularização em terras da União, o que já é ruim. Porém, como a norma é genérica, não faltarão operadores dizendo que este é o novo conceito de APP, que revogou o art. 4º, caput, do "Código Florestal", porque é lei posterior que dispôs sobre o tema de maneira diversa.

6. Por fim, a lei modificou mais uma vez o art. 4º da lei 6766/79, já tantas vezes alterado sempre para restringir o que constava da redação original. Mudou para dizer que ao longo das águas correntes e dormentes, as faixas não edificáveis deverão respeitar a lei municipal que aprovar o instrumento de planejamento territorial. Em outras palavras, não precisa mais ser 15m, medida que ficou apenas para o caso da faixa não edificável ao longo das ferrovias. lei de 2019 já tinha determinado que "ao longo das faixas de domínio público das rodovias, a reserva de faixa não edificável de, no mínimo, 15 (quinze) metros de cada lado poderá ser reduzida por lei municipal ou distrital que aprovar o instrumento do planejamento territorial, até o limite mínimo de 5 (cinco) metros de cada lado".

7. Portanto, o que temos aqui: temos uma lei que mexe num tema sensível como é a proteção ambiental da água, sob a aparência de se tratar de ordenamento do solo urbano. Não é isso. As áreas de preservação permanente como um todo (art. 4º/I-XI) e as APPs hídricas, em especial, existem para proteção de um bem ambiental fundamental que é a água. Isto não é matéria de competência municipal porque a Constituição Federal estabelece que legislar sobre conservação da natureza e proteção do meio ambiente é matéria que compete à União e aos Estados (art. 24/VI). Trata-se de competência não comum mas concorrente, cabendo à União a edição de normas gerais. E tais normas existem: são, exatamente, o "Código Florestal" (ambiente natural) e a lei de parcelamento (ambiente construído). Assim, a matéria não poderia ser atribuída à lei local, sobretudo porque o caput do art. 4º do código (que é lei federal) não foi modificado e, pois, as APPs ainda continuam existindo, mesmo que fragilmente, em "zonas urbanas e rurais".

8. Portanto, voltamos ao "imbróglio" que havia a respeito antes do "Código Florestal" de 2012. E tal solução equivocada foi dada em função de um "conflito entre poderes" evidentemente instalado. Com efeito, em abril de 2021, o STJ, em recurso repetitivo, decidiu, com carradas de razão, que aquele código se aplicava em áreas urbanas e rurais. O texto da ementa é este: "Na vigência do novo Código Florestal (lei 12.651/12), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d'água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade" (Tema repetitivo 1010).

9. Depois desse julgamento do STJ, em resposta, o Congresso Nacional aprovou, em dezembro de 2021 e o presidente logo sancionou, a lei que transforma a disciplina das APPs urbanas em matéria de competência municipal. Vários deputados justificaram seu voto favorável ao projeto à luz da decisão do STJ que, segundo eles, prejudicaria muitas cidades, tornando seu cumprimento inviável ("fiat justitia, pereat mundus", segundo pensavam). Se a lei derivou de um "conflito entre poderes", a solução encontrada parece um claro equívoco porque a APP hídrica existe em função da água, ou seja, existe com "a função ambiental de preservar os recursos hídricos" (art. 3º/I do "Código Florestal"). E, assim, não se trata de ordenação do espaço urbano mas, bem ao contrário, a ordenação do solo é que deve respeitar as condicionantes ambientais porquanto o quadro natural precede o ambiente construído.

10. Portanto, parece que a nova lei - que abre caminho para uma enorme "anistia" - não passa no teste da constitucionalidade que por certo se seguirá em nome da proteção dos bens ambientais. O art. 225/§1º/III da CF é frontalmente vulnerado. No entanto, dada a morosidade do STF (que levou 10 anos para rejeitar a alegação de inconstitucionalidade da lei do georreferenciamento), a matéria poderá levar muitos anos para ser apreciada e, enquanto isso, os recursos hídricos irão perecer. Não há "água urbana" ou "água rural": o bem ambiental escasso é um só e a APP como a faixa não edificável existe em razão dela, para protegê-la. Assim, a solução para superação do conflito foi a pior possível, que passa por cima dos princípios e das normas ambientais, o que é inadmissível: em suma, é o interesse privado dos ocupantes de áreas protegidas passando por cima do interesse coletivo na proteção dos mananciais, o interesse pontual contra o interesse geral - que é o ambiental, o espaço que nos circunda a todos e que deve garantir a qualidade de vida de todos os seres.

José Roberto Fernandes Castilho

VIP José Roberto Fernandes Castilho

Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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