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Não se vacinar é um direito?

Não existe um "direito" de colocar vidas alheias em risco, no meio de uma crise sanitária global, em nome de alguma equivocada espécie de interpretação ultraindividualista do conceito contemporâneo de liberdade.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Atualizado às 12:10

(Imagem: Arte Migalhas)

Observo que o debate atual sobre vacinação e direitos individuais, em nosso país, frequentemente passa longe das devidas considerações jurídicas, reduzindo-se a uma mera discussão em torno de diferentes noções de moralidade (individualista, comunitária, etc).

Não pretendo, aqui, me ater à questão das liberdades individuais no contexto da Covid-19. Sobre este tema, remeto a artigo anterior publicado em maio de 2020, no primeiro semestre da chegada da pandemia no Brasil1. Minha intenção, neste texto, é deixar de lado considerações de filosofia política para focar nas respostas jurídicas para as dúvidas em torno da questão da vacinação.

Partirei de um axioma simples: a vacinação não pode ser obrigatória, no sentido de forçada. Não há controvérsia neste sentido. Não existe qualquer fundamento jurídico para cogitação em sentido contrário. Não há lei ou decisão judicial determinando que um cidadão - que não deseje ser vacinado - seja rendido por agentes estatais, por meio da força bruta, e então inoculado sem o seu consentimento e à revelia de sua vontade.

Isso significa que o cidadão tem um direito de não se vacinar? Não. Permita-me explicar a razão.

A não-vacinação não é um direito, mas sim uma conduta antijurídica - na medida em que viola regras e princípios de direito sanitário que o nosso ordenamento jurídico vem utilizando para combater a pandemia no país. Não se vacinar, portanto, não configura um "direito", mas sim uma conduta antijurídica (a qual, naturalmente, o cidadão eventualmente pode mesmo assim preferir praticar ao invés de evitar).

Não há qualquer novidade nisso: mesmo infrações, contravenções e crimes devidamente tipificados na legislação não possuem o condão de determinar a priori o campo da ação discricionária do indivíduo. Por exemplo: o Estado, com base no arcabouço do direito positivo de nosso ordenamento jurídico, pode punir alguém que pratica um roubo, que dirige veículo a 120 km/h em rodovia cujo limite é 80 km/h ou que comete um homicídio - mas por certo nem a tipificação prévia destas condutas, nem a cominação legal de penas, possuem o condão de impedir que essas condutas sejam efetivamente praticadas pelas pessoas (vale frisar: com muito mais frequência do que seria desejável).

Apesar disso, ninguém em sã consciência buscaria sustentar que a liberdade individual do cidadão abrangeria um "direito a dirigir acima do limite de velocidade", um "direito ao roubo" ou um "direito ao homicídio". A liberdade prática que nós temos, de cometer atos antijurídicos, não constitui um direito. Ninguém pode forçar você a deixar de cometer um homicídio, a dirigir seu automóvel dentro dos limites de velocidade legalmente previstos ou a se vacinar contra a sua vontade - mas, por certo, nós podemos (e deveríamos!) ser punidos, posteriormente, pela prática destas ações/omissões.

A vacinação contra Covid-19, embora não seja obrigatória (no sentido de imposta contra a vontade do cidadão), é compulsória - no sentido de que a sua não realização, de forma injustificada, constitui uma conduta antijurídica passível de sanção. A distinção neste sentido foi tornada clara pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs 6.586 e 6.587, em dezembro de 2020. Não se trata, vale dizer, de decisão ativista, inovatória ou surpreendente, na medida em que o STF se limitou a reconhecer a constitucionalidade da possibilidade de realização compulsória de vacinação, conforme expressamente prevista no art. 3º, inciso III, alínea "d" da lei 13.979 de fevereiro de 2020.2

É importante esclarecer que a questão da vacinação contra Covid-19 não se confunde com o direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI da Constituição Federal. Conforme bem assentado na jurisprudência pátria3, uma pessoa tem o direito de não ser constrangida a submeter-se a tratamento médico ou intervenção cirúrgica (sendo, aliás, desnecessária a verificação de existência efetiva do "risco de vida" referido no art. 15 do Código Civil). Trata-se de direito individual, que gera consequências única e exclusivamente para a esfera individual do cidadão que toma tal decisão. Desnecessário explicar que este raciocínio de cunho individualista não pode ser aplicado, de forma análoga, a uma situação de calamidade pública de pandemia causada por um vírus letal - cenário no qual cada comportamento isolado e individual gera efeitos também para o entorno comunitário.

Sobre o dever jurídico imposto aos cidadãos pelas medidas legais de enfrentamento à pandemia, o já referido art. 3º da lei 13.979/20 não deixa dúvidas a este respeito quando dispõe, em seu § 4º, que "as pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei".

Resta demonstrado, portanto, que: a) não existe um "direito" à não-vacinação; b) a vacinação, embora não seja coercitiva nem forçada, possui caráter compulsório; c) a não-vacinação é uma conduta antijurídica e, consequentemente, passível de sanção.

Diante de tais conclusões, cumpre examinar: a quais tipos de sanções, penas e/ou restrições podem ser submetidas as pessoas que deliberadamente deixam de se vacinar? No já mencionado julgamento das ADIs 6.586 e 6.587, o STF destacou que a vacinação pode ser implementada por meio de "medidas indiretas", as quais compreendem (de forma não exaustiva), "a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes". Frise-se que tais medidas "podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência".

Neste sentido, a experiência internacional tem sido variável na natureza das regras, mas essencialmente uníssona no rigor contra o ativismo negacionista que colabora para a proliferação do vírus, matando pessoas e ameaçando os limites dos sistemas de saúde pública por todo o mundo. A França aprovou nesta semana um passe vacinal que impedirá não vacinados de ingressar em estabelecimentos como cafeterias, bares, restaurantes, estádios, cinemas, teatros ou museus4. Em Nova York, segundo escreve Paul Krugman (comentário do economista vencedor do Prêmio Nobel), atualmente "não se pode fazer muita coisa na Big Apple sem mostrar seu cartão de vacinação".5

No Canadá, na província de Quebec, um pai divorciado perdeu temporariamente o seu direito de visitação ao filho por conta de não ter se vacinado.6 A mesma província adotou uma política de tributação de não vacinados e de restrição de venda de bebidas alcoólicas e de maconha para uso recreativo (cuja comercialização é legalmente permitida no país)7.

No Brasil, temos o exemplo de São Paulo (capital), que anunciou na primeira semana de 2022 que passaria a exigir o chamado passaporte da vacina para ingresso em qualquer evento, independentemente da quantidade de pessoas8. Até o momento, a medida não abrange restaurantes, bares ou shoppings, mas pesquisa recente do instituto Datafolha revela que 81% dos brasileiros são a favor da exigência de apresentação de passaporte vacinal para frequentar todo tipo de estabelecimentos comerciais ou eventos9.

Vale observar que os números da referida pesquisa indicam que as corriqueiras hesitações populistas dos agentes políticos, comuns nos chamados "anos eleitorais", não devem ser utilizadas como desculpa para inação e omissão diante da persistência da circulação do vírus - sobretudo diante do novo cenário estabelecido pela variante Ômicron. Nossas lideranças não deveriam ter medo de fazer o que é correto, por receio de aborrecer uma minoria de cidadãos que, impermeáveis à razão, insistem em continuar colocando em risco a saúde e a vida de terceiros.

Por fim, a conclusão é simples: não existe um "direito" de colocar vidas alheias em risco, no meio de uma crise sanitária global, em nome de alguma equivocada espécie de interpretação ultraindividualista do conceito contemporâneo de liberdade. Ninguém é, foi e nem será obrigado ou forçado a se preocupar com a saúde dos outros, nem a cumprir as leis e nem a colaborar individualmente para o enfrentamento deste gigantesco problema coletivo que é a pandemia de Covid-19. Mas quem optar por agir em prejuízo da saúde pública e do bem comum precisa compreender que sanções por condutas antijurídicas não são, de forma alguma, incompatíveis com a liberdade no contexto de um Estado Democrático de Direito. Pelo contrário: elas são condições de possibilidade para a existência da vida civilizada em sociedade.

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1 https://www.iargs.com.br/as-liberdades-individuais-no-contexto-da-covid-19-constituicao-em-tempos-de-pandemia/

2 Este ponto da questão já havia sido abordado por mim, em outubro de 2021, no seguinte artigo: https://www.migalhas.com.br/depeso/352775/levando-o-direito-a-serio

3  Ver Enunciados 403 e 533 das Jornadas de Direito Civil realizadas pelo Conselho da Justiça Federal.

4 https://www.publico.pt/2022/01/16/mundo/noticia/parlamento-frances-aprova-passe-vacinal-limita-vida-social-naovacinados-1992085

6 https://www1.folha.uol.com.br/colunas/paulkrugman/2022/01/nova-york-paga-o-preco-de-viver-sob-o-dominio-de-wall-street.shtml

6 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59989200

7 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59966065

8 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/01/06/passaporte-da-vacina-sera-exigido-na-cidade-de-sp-para-todos-os-eventos-a-partir-de-segunda-feira-diz-prefeitura.ghtml

9 https://www.cnnbrasil.com.br/saude/datafolha-81-dos-brasileiros-apoiam-exigencia-de-passaporte-da-vacina-em-local-fechado/

Henrique Abel

VIP Henrique Abel

Mestre e Doutor em Direito pela UNISINOS/RS, com estágio doutoral na School of Law of Birkbeck, University of London. Autor. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Advogado.

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