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República dos segredos: a inconstitucionalidade da utilização indiscriminada do sigilo pela Administração Pública

Já passou da hora de as instituições e da sociedade civil iniciarem em nosso país - em nome da democracia, da Constituição e da legalidade - um firme movimento de resposta a esta escalada autoritária, marcada pela absurda e antijurídica naturalização do sigilo em informações de interesse público por parte da administração federal.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Atualizado às 11:03

(Imagem: Arte Migalhas)

A Constituição Federal, em seu art. 37, consagra a publicidade como um dos princípios da administração pública. Em tese, seria razoável esperar que esta principiologia de transparência seria aprofundada após a entrada em vigor da lei 12.527/11, que visava assegurar e facilitar o acesso dos cidadãos a informações de interesse público. No entanto, uma década após a promulgação da referida lei, o que se vê é o Brasil transformado em uma espécie de "República dos Segredos". Mais impressionante do que esta realidade, no entanto, é a aparente normalização deste estado de coisas - que é flagrantemente incompatível com a lógica do nosso ordenamento jurídico.

Sob o aspecto normativo, as investidas contra a publicidade e transparência das informações de interesse público começaram cedo no atual governo, já em janeiro de 2019, por meio do decreto 9.690/19, que passou a ampliar significativamente o número de agentes públicos com autorização para determinar o sigilo de informações públicas. A iniciativa foi fortalecida, em abril do mesmo ano, pelo decreto 9.759/19, que reduziu a participação de setores da sociedade no governo ao extinguir grande parte dos conselhos, comitês e comissões até então existentes da administração pública federal.

Em julho de 2019, quando da alteração de dispositivos da LGPD (Lei 13.709/18) por meio da lei 13.853/19, o presidente vetou1 o texto do inciso IV do art. 23 da referida norma, que determinava que deveriam ser "protegidos e preservados dados pessoais de requerentes de acesso à informação, no âmbito da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, vedado seu compartilhamento na esfera do poder público e com pessoas jurídicas de direito privado".

A contradição, aqui, é evidente: ao mesmo tempo em que busca ampliar (de forma potencialmente ilimitada) a discricionariedade da administração pública federal para fins de utilização do sigilo em interesse próprio, o governo se opõe a garantir a privacidade e proteção de dados do cidadão que formula requerimento de acesso a informações de caráter público. Dito de outro modo: ocultação e segredo para as ações do agente público, mas exposição dos dados privados do cidadão, em óbvio prejuízo deste.

Por fim, em março de 2020, o governo buscou dificultar o acesso a informações e suspender prazos de resposta a requerimentos, por meio de novas regras elencadas na MP 928 - utilizando a pandemia de COVID-19 como desculpa circunstancial. A estratégia não vingou: no mês seguinte, decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIns 6.347, 6.351 e 6.353, suspendeu a eficácia do artigo 1º da medida provisória em questão.2

Embora existam precedentes em administrações anteriores, o governo Bolsonaro parece decidido a tornar a política do segredo algo como sua marca registrada. Entre os casos de informações de interesse público que foram colocadas sob sigilo, podemos citar: dados sobre os acessos dos filhos do presidente ao Palácio do Planalto; informações a respeito do status da vacinação do presidente; os detalhes sobre a compra da vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde3; o resultado de um processo sobre a participação do general e ex-ministro Eduardo Pazuello em ato político ao lado do presidente; detalhes de gastos com cartão corporativo e o incidente de desfile de tanques na Esplanada dos Ministérios. Várias destas informações foram colocadas sob sigilo de até 100 anos. Sim, caro leitor, você leu corretamente: CEM ANOS!4

Muitos destes procedimentos estão sendo realizados sem a observância mínima das formalidades jurídicas necessárias5, inclusive sem os (em tese) necessários decretos de sigilo - bem como sem a formalização, em termo específico, da decisão que classifica, em um dos graus de sigilo, a informação protegida no caso específico (à revelia, portanto, da exigência que consta expressamente no art. 31 do decreto 7.724/12).

Pergunta-se: como isso é possível em um ambiente que se pretende democrático e republicano? Que fim levou o Princípio da Publicidade? Como é possível que, após a Lei de Acesso à Informação, o Brasil tenha se convertido em uma nação MENOS - e não mais - transparente em termos de divulgação de dados de interesse público? A partir de qual momento se passou a aceitar a ideia absurda de que administração federal gozaria de uma espécie de "discricionariedade absoluta e ilimitada" para ocultar, sob um carimbo de "segredo", tudo aquilo que bem entender?

Mais uma vez, é possível constatar que a teoria dos princípios jurídicos - tão consagrada na doutrina nacional e internacional na esteira do Constitucionalismo Contemporâneo pós-positivista do último meio século - encontra grandes dificuldades em termos de concretização em nosso ordenamento jurídico6. Colaboram, para isso, as frequentes más compreensões sobre princípios jurídicos, muitas vezes erroneamente entendidos como meras "orientações programáticas" ou genéricos "mandados de otimização" do sistema. Nada poderia estar mais distante da realidade. Pelo contrário: princípios constitucionais são norma jurídica, pura e simplesmente.7 Na lição de Lenio Streck: 

O princípio só se "realiza" a partir de uma regra. Não há princípio sem (alg)uma regra. Por trás de uma regra necessariamente haverá (alg)um princípio. Se acreditarmos que existem princípios sem regras, acreditaremos também que há normas sem textos. Logo, haveria o como hermenêutico (als) sem o como apofântico (wie); o ontológico sem o ôntico. O princípio é, pois, o elemento compreensivo que vai além da regra, ou seja, transcende à onticidade da regra. Nestes termos, os princípios jurídicos devem ser compreendidos a partir da tese da descontinuidade como normas que possuem imperatividade e que instituem o mundo prático ao Direito no atravessamento da porosidade das regras (transcendência). Assim, servem como um "fechamento" interpretativo, sendo, portanto, um entrave à discricionariedade judicial. As regras, devido a sua generalidade e abstração, procuram antecipar as ocorrências fáticas num plano ideal que carece, por óbvio, de historicidade. Ao serem interpretadas à luz dos princípios há um reingresso da facticidade e de uma dimensão justificativa. Os princípios não são ornamentos e nem conceitos vazios que apontam para a direção que aprouver ao intérprete. Diferentemente, sua normatividade direciona sentidos que espelham a comum-unidade a que pertencem.8 

Apesar do evento déficit jurídico-político que se verifica nas respostas das instituições pátrias a este avanço do uso indiscriminado do segredo como política pública, é importante destacar que o STF, há alguns anos, já consagrou que o interesse coletivo no acesso a dados e informações de caráter público se sobrepõe ao interesse individual de sigilo, por partes de agentes ou servidores públicos. No julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo - ARE 652777 SP, em abril de 2015, a corte decidiu, por unanimidade, que "é legítima a publicação, inclusive em sítio eletrônico mantido pela Administração Pública, dos nomes dos seus servidores e do valor dos correspondentes vencimentos e vantagens pecuniárias".9

Naquele julgamento, o saudoso Ministro Teori Zavascki, então relator do feito, destacou que "a controvérsia constitucional objeto do recurso não é nova para o Tribunal", na medida em que o Plenário do STF já havia decidido da seguinte forma em caso anterior (Agravo Regimental na Suspensão de Segurança 3.902 - DJe de 03/10/2011):

Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo "nessa qualidade" (§ 7º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O "como" se administra a coisa pública a preponderar sobre o "quem" administra - falaria Norberto Bobbio -, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 

Conclui-se que, à toda evidência, já passou da hora de as instituições e da sociedade civil iniciarem em nosso país - em nome da democracia, da Constituição e da legalidade - um firme movimento de resposta a esta escalada autoritária, marcada pela absurda e antijurídica naturalização do sigilo em informações de interesse público por parte da administração federal. Não se trata, aqui, de meras formalidades legais, mas sim da própria substância do Estado Democrático de Direito, paradigma político-jurídico incompatível com a atuação política exercida nas sombras, às custas da alienação e da desinformação do cidadão.

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1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Msg/VEP/VEP-288.htm 

2 Restrição à Lei de Acesso é solução para problema que não existe, diz STF. 

3 https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/08/09/interna_politica,1294105/ministerio-da-saude-impoe-sigilo-a-documentos-sobre-compra-da-covaxin.shtml

4 https://brasil.elpais.com/brasil/2021-08-08/cem-anos-de-protecao-a-bolsonaro.html

5 https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/governo-federal-aumenta-decretacao-de-sigilos-em-desrespeito-a-lai

6 Para aprofundamento nesta questão, remeto à leitura do capítulo 4 em: ABEL, Henrique. Positivismo jurídico e discricionariedade judicial: a filosofia do Direito na encruzilhada do Constitucionalismo Contemporâneo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. 

7 Sobre os princípios da Administração Pública consagrados no art. 37 da nossa Constituição Federal, o ex-ministro Carlos Ayres Britto observa o seguinte: "Ora, dizer que a lei é o primeiro dos princípios regentes da administração pública, mas não o único (óbvio), é também dizer que o Direito especificamente aplicável a esse tipo de administração começa com a lei, mas não termina com ela. O Direito ainda se manifesta em cada qual dos modos obrigatórios de aplicar a lei, que são os princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Princípios, então, de rigorosa compostura jurídico-positiva, e, nessa medida, também expressionais do Direito como sistema normativo. O chamado Direito Objetivo. Cuida-se, em rigor de apreensão cognitiva, de uma nova dualidade básica. Dualidade expressa no princípio-continente da legitimidade administrativa e nos princípios-conteúdos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. É como dizer: a administração pública somente alcança o patamar da legitimidade plena quanto aos seus meios ou meios de de atuação, se, impulsionada pela lei, a esta consegue imprimir o selo dos outros quatro princípios. Operando, estes, como fatores de legitimação conjunta da própria lei, do Direito como um todo e da atividade administrativa em especial". Ver: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coordenadores). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

8 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento : Casa do Direito, 2017. p. 244.

9 Inteiro teor do acórdão disponível para consulta no seguinte endereço eletrônico:

https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=8831570

Henrique Abel

VIP Henrique Abel

Mestre e Doutor em Direito pela UNISINOS/RS, com estágio doutoral na School of Law of Birkbeck, University of London. Autor. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Advogado.

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