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Um conto de dois juízes

O Direito é instrumento civilizado de realização da justiça - e, precisamente por isso, não pode ser bode expiatório de si mesmo, não estando à disposição para ser sacrificado em nome de noções maleáveis, idiossincráticas e discutíveis de "justiça".

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Atualizado às 14:55

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

"Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença; foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário - em suma, o período era em tal medida semelhante ao presente que algumas de suas mais ruidosas autoridades insistiram em seu recebimento, para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo de comparação." 

"A douta profissão da lei não estava certamente atrás de nenhuma douta profissão, no que se refere à propensão dionisíaca." 

(Charles Dickens) 

Começo este breve texto falando sobre a história de ascensão e queda de um juiz. Um juiz celebrado pela mídia e que, durante anos, foi convertido em um símbolo de superioridade moral e busca pela justiça. Um juiz que ganhou notoriedade por trabalhar em casos de grande repercussão, mas que veio a cair em desgraça por conta de atropelos ao devido processo legal e de violações a prerrogativas profissionais de advogados.

Neste momento, você - prezado(a) leitor(a) - possivelmente está formando em sua mente o nome e a imagem da pessoa a qual me refiro. Talvez o nome "Sérgio Moro" tenha sido o primeiro a surgir em seus pensamentos. Seria compreensível, não é mesmo? Mas não, não é a ele que faço referência no parágrafo acima, mas sim ao ex-magistrado espanhol Baltasar Garzón.

Durante muitos anos, Garzón atuou na principal corte criminal espanhola, a Audiencia Nacional. Trabalhou em casos de grande repercussão envolvendo crime organizado, lavagem de dinheiro e terrorismo. Foi internacionalmente celebrado pela sua atuação em casos graves de violações de direitos humanos, incluindo investigações sobre as vítimas da Operação Condor e da "Guerra Sucia" argentina. Minha geração, ainda na juventude, no final dos anos 1990, viu Garzón receber projeção global por conta do requerimento de detenção do ex-ditador chileno Augusto Pinochet.

Apesar de toda esta trajetória brilhante, em dado momento Garzón pode ter começado a acreditar que os fins justificavam os meios. Ele foi acusado de ter utilizado escutas ilegais em prisões, para registrar conversas entre investigados presos e seus advogados. Em 2012, a Suprema Corte espanhola julgou Garzón culpado pelas acusações. Ele foi condenado ao afastamento da magistratura por 11 anos, sendo altamente improvável que ele algum dia retorne à toga.

Quando comparamos a trajetória de Garzón com a história da ascensão e queda de Moro, três grandes diferenças saltam aos olhos. A primeira diz respeito à dimensão do personagem protagonista de cada uma das situações. Em termos de currículo, projeção internacional e realizações, não existe comparação possível entre os dois ex-magistrados. Sua extensa lista de realizações torna Garzón um ator público de estatura muito superior, sendo internacionalmente reconhecido por conta da envergadura de seu trabalho - inclusive como advogado, na defesa de direitos fundamentais, após a condenação que lhe foi imposta1. Não se trata de alguém que foi artificialmente projetado pela mídia de seu próprio país, por interesses imediatos de agenda político-partidária, como ocorreu no episódio brasileiro. Neste quesito, ponto para Garzón.

A segunda distinção diz respeito à gravidade e alcance das ilicitudes cometidas. Garzón foi condenado por "grampear" ilegalmente investigados e advogados. Se por um lado tal conduta é manifestamente indefensável em um Estado Democrático de Direito, por outro é preciso recordar que, no caso brasileiro, tal ilícito representa apenas uma pequena fração das irregularidades praticadas por Moro em prejuízo do devido processo legal, das prerrogativas da advocacia, da ética e da moralidade pública.

Sim, todos sabemos que Moro também grampeou advogados ilegalmente2. Mas ele foi além: grampeou ilegalmente a Presidente da República e vazou o conteúdo da conversa para a mídia (tendo, posteriormente, se desculpado perante o STF3); estribou-se na imparcialidade, desfigurando o papel próprio do juiz em nosso ordenamento jurídico, ao atuar em processos em estreita combinação de estratégias com a acusação4; levou à prisão o candidato que era líder da oposição e primeiro colocado nas intenções de voto, em pleno ano eleitoral, para depois pedir exoneração da magistratura e assumir cargo no governo do candidato que foi favorecido pela sua atuação como juiz5; e - last but not least - deixou posteriormente o governo para trabalhar como "consultor" em empresa norte-americana que atendia precisamente as corporações que foram profundamente afetadas por seu trabalho enquanto juiz (por um "modesto" salário em torno de R$ 241.000,00 mensais, ao longo de aproximadamente um ano)6. Neste quesito, como se vê, Moro ganha de lavada, fazendo o ilícito praticado por Garzón parecer café pequeno na comparação.

A terceira distinção diz respeito às respostas institucionais dadas pelo Brasil e pela Espanha nestes dois diferentes casos. Garzón, derrubado de seu pedestal, foi julgado e condenado por suas violações à lei. Em consequência disso, foi - de forma bastante desonrosa - afastado da magistratura. Por seus ilícitos, manchou irreversivelmente o seu longo e admirável currículo profissional e pagou com a perda do seu cargo e irreversível desgaste de sua imagem pública, outrora imaculada.

Já no caso brasileiro, Moro até hoje não respondeu - nem sequer administrativamente - pelos ilícitos que cometeu. Retirou-se da magistratura por vontade própria e iniciativa sua, para assumir cargo de Ministro de Estado (com proventos ainda maiores do que de juiz federal). Após o rompimento com o governo, lançou-se à carreira político-partidária. Hoje ostenta em torno de 8% da preferência do eleitorado para as próximas eleições presidenciais e ainda goza de apoio significativo de grandes veículos de mídia. É verdade que os seus atos contribuíram para uma erosão parcial do prestígio que ele teve perante a sociedade brasileira em outras épocas7, mas persiste o fato de que, pelo menos até o momento, os malfeitos de Moro não acarretaram a ele qualquer espécie de punição jurídica.

Este pequeno conto de dois juízes nos leva a algumas conclusões, que poderíamos resumir da seguinte forma: juízes "heróis" não são exclusividade brasileira. Juízes idealizados, convertidos em celebridades, podem ser politicamente de esquerda, de direita, progressistas ou conservadores. Podem ser celebrados pela mídia com maior ou menor grau de merecimento. Suas intenções até podem ser boas e suas motivações até podem ser honestas, assim como também podem se deteriorar com o tempo - ou ser artificiais desde o início. O compromisso com a justiça que alardeiam pode ser autêntico ou não. Independentemente de quaisquer destas variáveis, o certo é que não há espaço, na democracia contemporânea, para protagonismos baseados na violação a princípios constitucionais, na subversão do devido processo legal, em "atalhos pragmáticos" antijurídicos ou na criminalização da advocacia8. O desprezo ao direito de defesa e às prerrogativas da advocacia não é outra coisa senão desprezo ao próprio Direito, perversamente disfarçado de "sede de justiça".

O Direito é instrumento civilizado de realização da justiça - e, precisamente por isso, não pode ser bode expiatório de si mesmo, não estando à disposição para ser sacrificado em nome de noções maleáveis, idiossincráticas e discutíveis de "justiça". Tudo isso nos leva, por fim, a uma última conclusão inescapável, qual seja: a qualidade das respostas institucionais, dadas aos casos de autoridades que se convertem em predadores do Direito, diz muito sobre a qualidade da democracia - e das próprias instituições - de um determinado ordenamento jurídico.

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https://www.theguardian.com/world/shortcuts/2013/jun/25/wikileaks-baltasar-garzon-edward-snowden

2 Procuradores sabiam que estavam grampeando advogados de Lula, mostra diálogo.

3 https://www.migalhas.com.br/quentes/236724/moro-pede-desculpas-ao-stf-e-diz-que-liberacao-de-grampos-nao-teve-cunho-politico

Plenário do STF forma maioria para manter suspeição de Moro para julgar Lula.

5 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/24/juiz-da-lava-jato-moro-deixou-a-magistratura-para-assumir-ministerio-da-justica-no-governo-bolsonaro-veja-perfil.ghtml

6 https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/01/4981037-moro-recebeu-rs-35-milhoes-por-um-ano-de-trabalho-na-alvarez-marsal.html

7 https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2021/12/08/moro-e-o-segundo-mais-rejeitado-61-dizem-que-o-conhecem-e-nao-votam-nele.htm

8 "Ao enfrentar odiosas injustiças e deslealdades, deve-se manter a vigília para não reagir com novas injustiças e deslealdades. Ao devolver uma grosseria com outra, ao contra-atacar com a mesma arma vil, o homem apenas contribui para legitimar o mal. A besta nunca morre definitivamente se quem a abate é outra besta. Para morrer, a besta deve sucumbir à civilidade." NEVES, José Roberto de Castro. Como os advogados salvaram o mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p. 300.

Henrique Abel

Henrique Abel

Mestre e Doutor em Direito pela UNISINOS/RS, com estágio doutoral na School of Law of Birkbeck, University of London. Autor. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Advogado.

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