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O tratamento da liberdade de expressão e do discurso de ódio no direito comparado

Nota-se que o Brasil tem se dirigido na seara legislativa ao combate do discurso de ódio, o que demanda o estabelecimento de limites mais claros pela jurisprudência, a fim de promover a segurança jurídica sobre tão relevante tema.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Atualizado às 11:29

(Imagem: Arte Migalhas)

A liberdade de expressão, certamente, é um dos grandes temas da dogmática dos direitos fundamentais, assumindo cada vez mais importância na seara jurídica. Isso porque têm proliferado os casos, não apenas no Brasil, de seu abuso, o que leva à necessidade de serem traçados alguns limites para seu exercício. Uma das causas para o aumento no número de casos de abuso na liberdade de expressão está conectada à difusão das redes sociais e na sua facilidade de produção de conteúdo. Além disso, colabora a polarização dos discursos das mais variadas searas, aliada à crescente intolerância das ideias divergentes. Este quadro acaba por não se restringir ao mundo digital, sendo transportado para o mundo offline.

Se, no passado, a publicação de informações se dava através de veículos de comunicação tradicionais, sob a supervisão de seus editores, atualmente, pode-se afirmar que cada cidadão pode se tornar um produtor de conteúdo, de forma instantânea. Os filtros tradicionais perdem espaço nas redes sociais, com inúmeros casos de violação ao direito de honra, que acabam por ser decididos pelo Poder Judiciário. Essa constatação se aplica tanto ao discurso de ódio como também ao fenômeno da desinformação, ou das chamadas fake news, o que assume especial importância no contexto da pandemia de Covid-19. Neste quadro, as redes sociais passaram a ser inundadas com notícias falsas em questões de extrema relevância, como a saúde pública.

Assim, surgem questionamentos como "a liberdade de expressão pode ser exercida livremente a pretexto de se estar emitindo uma opinião? É possível distorcer os fatos e receber proteção constitucional?" Essas perguntas são enfrentadas pelos mais diversos ordenamentos jurídicos e se aplicam em nível global. Fala-se então da necessidade de estudo e aprofundamento da temática dos discursos ilícitos, e especialmente do discurso de ódio. Seu conceito certamente não é fechado, mas algumas linhas têm sido traçadas pela doutrina constitucionalista. Assim, podem ser definidos como proferimentos dirigidos a grupos vulneráveis e historicamente discriminados, em virtude de suas características, como raça, religião, etnia, idade, nacionalidade, dentre outros. Quando aqui é referido grupos, não deve ser excluída a possibilidade de apenas uma pessoa ser atingida, em virtude de seu pertencimento a determinado grupo.

Feitos estes primeiros esclarecimentos, importa expor os dois principais sistemas de tratamento da liberdade de expressão e do discurso de ódio, qual sejam, os Estados Unidos e a Alemanha. Estes são os dois principais modelos estudados, porque, além de serem antagônicos no estudo desta liberdade fundamental, são democracias consolidadas e contam com uma Constituição e direitos fundamentais1. Nesses dois sistemas podemos encontrar fundamentos para o tratamento do discurso de ódio no direito brasileiro.

O modelo adotado pelos Estados Unidos é conhecido pelo seu excepcionalismo, em razão de assegurar de forma quase absoluta a liberdade de expressão, com poucas exceções construídas pela jurisprudência da Suprema Corte, como as fighting words. Assim, predomina a noção de livre mercado de ideias, em muito influenciado pelas ideias de John Stuart Mill, filósofo que pregava que a livre expressão era condição para que não se formassem dogmas, além de afirmar que reprimir ideias seria como supor a infalibilidade humana. Nessa senda, basta observar que a Primeira Emenda do Bill of Rights é justamente a liberdade de expressão, a qual prevê que o Congresso não legislará com vistas a limitá-la. Baseado neste entendimento, a doutrina constitucionalista norte-americana, bem como sua jurisprudência, tem adotado o entendimento de que as ideias devem circular livremente neste mercado, sem que haja a intervenção governamental, que sempre é vista com muita desconfiança. Seu funcionamento seria assegurado através do contradiscurso (counterspeech), pois as más ideias devem ser combatidas com boas ideias, ou seja, com mais discurso. Contudo, este excepcionalismo tem levado a situações que não seriam admitidas em outras democracias, como as manifestações de Charlottesville, no Estado da Virgínia, que reuniram supremacistas brancos e grupos neonazistas. Com base nesse quadro, os Estados Unidos conferem à liberdade de expressão uma posição preferencial (preferred position) em relação aos demais direitos, prevalecendo sobre valores como igualdade, privacidade e a própria dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, não são admitidas leis que discriminem em razão do ponto de vista (viewpoint-based) ou que sejam baseadas em conteúdo (content based). Exemplo deste entendimento se deu no caso RAV v. City of Saint Paul. O caso envolvia adolescentes que haviam incendiado uma cruz na casa de uma família afrodescendente que residia perto de suas casas. Estes foram processados com base em uma lei (Bias-motivated crime Ordinance) que previa que aquele que colocasse cruzes em chamas com base em raça, cor, credo, religião ou gênero cometeria um ilícito penal. A Suprema Corte julgou que a lei em comento era inconstitucional em virtude de discriminar em razão do ponto de vista e ser baseada em conteúdo. Este caso é exemplificativo da amplitude que assume esta liberdade, que se assenta na noção de livre mercado de ideias, com intervenção governamental mínima, a qual se faz necessária, em regra, quando se está diante de uma ameaça à paz ou ordem pública. Esse pensamento se contrapõe não só ao tratamento alemão, conforme se verá, mas também ao brasileiro, que prevê o resguardo da dignidade da pessoa humana e de direitos fundamentais e repudia o racismo em todas as suas formas.

Por mais que se procure proteger a liberdade de pensamento e de expressão, discursos racistas e queimas de cruzes, que podem também ser considerados discursos de ódio, revelam-se inadmissíveis por afrontarem, notadamente, a dignidade da pessoa humana. Embora se proteja o discurso de seus agentes, as manifestações causam a intimidação das minorias atingidas e seu silenciamento. É necessário que sejam impostos limites a tais discursos que frequentemente são definidos como opinião constitucionalmente protegida. Uma interpretação constitucionalmente adequada não pode deixar de conjugar os diversos dispositivos constitucionais, uma vez que além de proteger a liberdade de expressão, há a vedação ao racismo. Essa constatação leva à conclusão de que o discurso de ódio opera uma tensão constante entre direitos fundamentais.

Por outro lado, a Alemanha possui um sistema que diverge em grande medida do americano, dado que resguarda em primeiro lugar a dignidade da pessoa humana, esculpido art. 1º da lei fundamental (LF). Embora seja valor de especial importância, não se podendo falar em uma posição preferencial em si, a liberdade de expressão vem elencada no art. 5º da LF, o que já demonstra seu distanciamento em termos axiológicos dos Estados Unidos. Esta valorização da dignidade da pessoa humana na Alemanha possui relação com as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. A título comparativo, cabe lembrar que a Constituição americana, além de não prever nenhum limite para a liberdade de expressão, proíbe leis que os estabeleçam, ao passo que a LF os prescreve expressamente: a proteção da juventude, o direito à honra e as disposições das leis gerais.

Uma das principais características que marcam a diferença do sistema alemão para o americano é a existência do instituto da democracia militante, o qual prevê que a democracia deve se defender daqueles que se valem de institutos democráticos, de maneira especial dos direitos fundamentais, para promover a sua própria destruição. Este, aliás, pode ser apontado como uma das razões para a previsão, na LF, de declaração de inconstitucionalidade de partidos políticos pelo Tribunal Constitucional Federal (TCF).

Como exemplificativo das disposições sobre discurso de ódio, pode-se mencionar o art. 130 do Código Penal Alemão (Strafgesetzbuch) que proíbe a negação do holocausto, bem como todo ato de aprovação de atos cometidos durante o período do Nacional Socialismo. Com base nesta disposição, uma cidadã alemã de 80 anos foi condenada por negar o holocausto. Em reclamação constitucional perante o TCF (BvR 673/18), sustentou seu direito de pesquisa e ensino, previstos no art. 5º da LF. Conforme o Tribunal, as declarações da reclamante eram notadamente falsas, as quais não podem contribuir para o processo de formação de opinião. Em relação a outro argumento trazido pela reclamante, de que haveria a necessidade de leis gerais para a limitação da liberdade de expressão, o Tribunal afirmou que as leis que impedem a negação do holocausto constituem exceção à regra, pelo seu impacto na história alemã. Por fim, as afirmações da reclamante têm o condão de ameaçar a paz pública, havendo uma transição para agressão, pelo que entendeu como adequada a sua condenação, pelo que sua reclamação não foi admitida.

Em uma ação que visa a combater o antissemitismo, foi aprovado no dia 20/01/2022 pela Assembleia Geral da ONU resolução que condena a negação do holocausto, o que inclui a minimização do número de vítimas, as tentativas de culpar os judeus por causarem o genocídio, afirmações do holocausto como um evento histórico positivo e tentativa de culpar outras nações ou grupos étnicos pelo extermínio planejado e operado pela Alemanha nazista2. Esta resolução foi proposta precisamente por Israel e Alemanha, o que deixa transparecer seu entendimento consolidado sobre a total proibição de tais manifestações.

Em relação ao discurso de ódio nas redes sociais, a Alemanha aprovou a lei de aplicação na Rede Netzwerkdurchsetzungsgesetz (NetzDG), tendo entrado em vigor em 2018.  A lei tem como escopo combater o discurso de ódio nas redes sociais e se aplica aos provedores de redes sociais com dois milhões de usuários ou mais na Alemanha.  A lei não cria novas categorias de discursos ilegais, mas se remete às disposições do Código Penal. Em caso de postagens que se mostrem manifestamente ilegais, deve haver a remoção ou bloqueio de acesso ao conteúdo no prazo de 24 horas, após sua notificação. Se o conteúdo notificado for tido como ilegal, o prazo para tal procedimentos é de sete dias. Essa previsão não permaneceu ilesa às críticas, uma vez que não remanesce um espaço aberto à interpretação de conceitos como manifestamente ilegal ou ilegal.

Em caso de descumprimento dos prazos estipulados, poderá haver a aplicação de multas que podem alcançar cinco milhões de euros. Uma das críticas à lei repousava na quantidade de conteúdos que poderiam ser removidos, de modo que pudesse apresentar um risco à liberdade de expressão online (overblocking) contudo, em recente relatório produzido para o Ministério da Justiça alemão, este efeito não foi constatado.3 Para que haja maior transparência quanto aos procedimentos de remoção de bloqueio de acesso de conteúdo levados a cabo pelas redes sociais, há a previsão de produção de relatórios semestrais. Recentemente a lei foi alterada para contemplar a possibilidade de pedido de revisão da decisão da plataforma quanto à remoção ou não do conteúdo denunciado, o que contribui para uma maior permeabilidade dos direitos fundamentais dos envolvidos em uma relação notadamente entre privados4.

Estes delineamentos trazem à tona diferentes modelos em muitos pontos divergentes, que vigem nas democracias modernas. A Alemanha, que inclusive tem grande influência entre juristas brasileiros, tanto na seara do direito civil, como do direito constitucional, privilegia a dignidade da pessoa humana e direitos como a honra e o direito à intimidade. Por sua vez, os Estados Unidos, através de seu conhecido excepcionalismo, adota um modelo de mínima intervenção estatal, apoiando-se na ideia já consagrada de livre mercado de ideias e de contradiscurso. Contudo, também é certo que os recentes acontecimentos em solo americano, como o ataque ao Capitólio, podem surtir efeitos na manutenção de seus institutos. Também não se pode desconsiderar que as recentes regulações na União Europeia incidentes sobre a liberdade de expressão podem repercutir na discussão de um modelo quase absolutista.

Entre nós, pode-se afirmar que não há uma orientação concreta em termos de jurisprudência para o tema, sendo que em alguns casos tem sido privilegiada a liberdade de expressão em detrimento de direitos contrapostos, mormente quando está em jogo a imunidade parlamentar,5 o que nos aproxima em maior medida da experiência americana. O leading case do discurso de ódio se situa no HC 82.424 (caso Ellwanger), em que o STF, por maioria, considerou o antissemitismo como um caso de racismo, impondo limites à liberdade de expressão. In casu, um editor de livros comercializava obras com conteúdo discriminatório contra a comunidade judaica. O fato é que o Brasil, através de diversas disposições constitucionais, repudia o discurso de ódio e o racismo em todas as suas formas.

Embora se trate de um caso de discriminação contra os judeus, a orientação do caso Ellwanger se aplica aos demais casos de racismo e de discriminação: o discurso de ódio não pode ser protegido sob o manto da liberdade de expressão. Em data recente, houve a edição do Decreto 10.932, de 10 de janeiro de 2022, que promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, trazendo também importantes previsões para o combate ao racismo e intolerância. Tecidas estas considerações, nota-se que o Brasil tem se dirigido na seara legislativa ao combate do discurso de ódio, o que demanda o estabelecimento de limites mais claros pela jurisprudência, a fim de promover a segurança jurídica sobre tão relevante tema.

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1 KOMMERS, Donald P. The jurisprudence of free speech in the United States and the Federal Republic of Germany, Southern California Law Review, v. 53, n. 2, jan./1980, p. 658. 

2 Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/169088-assembleia-geral-aprova-resolucao-condenando-negacao-do-holocausto

3 Disponível em: https://www.bmj.de/SharedDocs/Downloads/DE/News/PM/090920_Juristisches_Gutachten_Netz.pdf?__blob=publicationFile&v=1.

4 Disponível em: https://www.bmj.de/DE/Themen/FokusThemen/NetzDG/NetzDG_node.html.

5 Nesse sentido: BRASIL. STF. Inquérito 4.694. Relator Min. Marco Aurélio. Autor: Ministério Público Federal. Investigado: Jair Messias Bolsonaro. Julgado em 11.09.2018; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito 3.590. Relator Min. Marco Aurélio. Autor: Ministério Público Federal. Investigado: Marco Antônio Feliciano. Julgado em 12.08.2014. 

Graziela Harff

Graziela Harff

Professora.

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