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Direito transidividuais nas relações de consumo, o sistema de vulnerabilidade e sua aplicação

Perceba que os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dependem da relação conjunta do conceito de consumidor, demonstração da vulnerabilidade e aplicação dos princípios que regem a relação de consumo.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Atualizado às 09:02

(Imagem: Arte Migalhas)

Com a concretização da dignidade humana, que ocorreu pelo direcionamento defendido por Norberto Bobbio, houve a multiplicação e universalização dos direitos, e consequentemente, a sua constitucionalização, com as suas diversas previsões legais que corroboram e intensificam os direitos transidividuais no Brasil, tais como: produção; consumo; crédito; publicidade e contratação, onde ocorrem lesões em massa e que se exige a instrumentalização dos direitos difundidos em difusos, coletivos e individuais homogêneos.

No âmbito do direito do consumidor, o direito transidividual possui previsão em seu art. 81, do CDC, e é desse contexto que extraímos os vetores, os quais necessitam examinar o pedido concreto, tais como:

  • Difusos: natureza indivisível, com titulares indetermináveis e indeterminados (corpo social ou coletividade), possuindo nexo fático e pedido único. Numa relação de consumo as empresas devem não abusar das mesmas cláusulas contratuais para os futuros contratos, ou seja, tal instrumento negocial atinge a coletividade e pode resultar em consequências jurídicas diversas. Ex.: produtos perecíveis que foram vendidos fora do prazo de validade, causando um número desconhecido de pessoas lesadas.
  • Coletivos: natureza indivisível, com titulares determinados ou determináveis (grupo/categoria/classe de pessoas), possuindo liame e pedido único, cuja relação jurídica é a base entre os titulares com a parte contrária na Ação Civil Pública. Numa relação de consumo, cita-se como exemplo a cláusula contratual de serviços públicos essenciais, que pode atingir pessoas ligadas entre si. Ex.: Telefonia, abastecimento de água e de energia elétrica.
  • Individuais homogêneos: também conhecida como transidividualidade artificial ou coletiva, possui natureza divisível, com pessoas lesadas, possuindo nexo por um ato, fato ou contrato, com direito a indenização aos consumidores. Nesse sentido, o pedido é considerado divisível, com recebimento, por cada consumidor, pela lesão causada e que, principalmente, tenha origem comum, tal como, um contrato de adesão para reajuste de mensalidade de academias, sempre com o mesmo fato/ato. Ex.: a queda de um avião; um naufrágio.

Partindo desse cenário de proteção dentro das diretrizes dos direitos transidividuais é que se extrai a proteção subjetiva do consumidor, considerando a parte mais frágil (vulnerável) na relação de consumo. Portanto, o direito do consumidor à proteção estatal é inviolável e figura em nossa Carta Magna como cláusula pétrea (art. 5º XXXII, CF/88).

O Código de Defesa do Consumidor possui princípios que corroboram com essa proteção e extensão da aplicação mais árdua dos direitos transidividuais e são eles que facilitam sua aplicação, de modo a propiciar a todos os consumidores a segurança negocial e jurídica.

No sentido da vulnerabilidade nas relações de consumo é necessário ponderar que o objetivo é o atendimento das necessidades dos consumidores, respeitando a sua dignidade, saúde e segurança, bem como a transparência e a harmonia nas relações, porém, a vulnerabilidade está inserida de forma imperativa e é requisito obrigatório para a caraterização do consumidor, podendo ser técnica, jurídica, fática ou informal.

Os requisitos considerados para caracterização da vulnerabilidade do consumidor de forma individual ou coletiva já foram objeto de definição pelo STJ, de modo que a ministra Nancy Andrighi explicou no comentário publicado pelo Superior Tribunal de Justiça, oriundo dos precedentes Resp. 1.010.834 e o Resp. 914.384, que o conceito de consumidor é restrito e que alcança pessoas físicas ou jurídicas que adquirem o produto no mercado para consumir, e aquele que consome o bem ou serviço sem destiná-lo à revenda ou ao insumo de atividade econômica.

Porém, tal tema evoluiu a tal ponto que a jurisprudência do STJ flexibilizou o entendimento acima para considerar como destinatário final quem usa o bem em benefício próprio ou para servir diretamente a uma atividade profissional, ou seja, argumento tornou o conceito de consumidor mais amplo, sendo imprescindível a demonstração no caso concreto da vulnerabilidade técnica, jurídica, fática ou informal.

Ao mesmo tempo, alguns tribunais entendem o contrário, não há entendimento consolidado na distribuição do destinatário final do produto, isto porque, algumas empresas apenas adquirem ou utilizam o produto para fins de fomentar a sua atividade comercial. A título de exemplo, apontamos alguns julgados que afastam a aplicação do CDC:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL. COMPRA CANCELADA. ESTORNO DE VALORES. SENTENÇA REFORMADA. Na espécie se trata de ação indenizatória promovida por sociedade empresária em face de administradora de cartão de crédito, objetivando a condenação da mesma a valores relativos a compra cancelada. Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Empresa que não é destinatária final do produto, pois trata-se de aquisição de produto e/ou utilização de serviço para fins de incrementar atividade comercial. Relação das partes regida pela legislação civil. No mérito, ausência de comprovação das alegações autorais. Extratos carreados aos autos que não pertencem a sociedade empresária ou são ininteligíveis. Cópias de e-mails que não atestam qualquer irregularidade da empresa apelante. Ônus da prova do autor, nos precisos termos do artigo 373, I, do CPC. Recurso conhecido e provido, nos termos do voto do Desembargador Relator. (TJ-RJ. Apelação Cível 0042490-42.2018.8.19.0021. Relator: Desembargador CHERUBIN SCHWARTZ. Órgão Julgador: 12ª Câmara Cível)

E, ainda:

COMPETÊNCIA. RELAÇÃO DE CONSUMO. UTILIZAÇÃO DE EQUIPAMENTO E DE SERVIÇOS DE CRÉDITO PRESTADO POR EMPRESA ADMINISTRADORA DE CARTÃO DE CRÉDITO. DESTINAÇÃO FINAL INEXISTENTE. A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária. (g.n)

Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompetência absoluta da Vara Especializada de Defesa do Consumidor, para decretar a nulidade dos atos praticados e, por conseguinte, para determinar a remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca.

(REsp 541.867/BA, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro BARROS MONTEIRO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/11/2004, DJ 16/5/2005, p. 227)

Novamente, o STJ traçou um entendimento ao julgar o Resp. 1610821, interposto pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, reconhecendo que a violação de direitos individuais homogêneos, reconhecida em ação civil pública, não é causa para indenização por dano moral coletivo. Isto porque levou em consideração que os danos morais coletivos são aferíveis in re ipsa (presumido) e têm como destinação os interesses difusos e coletivos. Assim asseverou o ministro Salomão: "O dano moral coletivo é essencialmente transidividual, de natureza coletiva e típica".

Perceba que os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dependem da relação conjunta do conceito de consumidor, demonstração da vulnerabilidade e aplicação dos princípios que regem a relação de consumo para que assim possa ocorrer a defesa do direito de um consumidor ou de uma coletividade, sendo certo que o caso concreto e amplitude de pessoas - ou não - são o que fazem funcionar a máquina dentro do sistema coletivo, constitucional e legal.

Sendo assim, tais regras servem para uma proteção integral dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, em que o CDC se encontra em consonância com a Constituição Federal e representa a forma mais digna de defesa dos consumidores, sem agredir nenhuma norma legal já existente em nossa legislação brasileira.

Lindinéia Chama de Melo

Lindinéia Chama de Melo

Advogada no escritório Parada Advogados.

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