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Caso Danilo Gentili: quem ganha com as violações à liberdade de expressão no Brasil?

A ideia deste artigo não se limita sobre Danilo Gentili ou seu filme especificamente. É sobre um princípio constitucionalmente protegido que é constantemente violado pelo Estado brasileiro.

domingo, 3 de abril de 2022

Atualizado em 1 de abril de 2022 09:50

(Imagem: Arte Migalhas)

Recentemente repercutiu muito o caso do filme de Danilo Gentili, "Como se tornar o pior aluno da escola", em que o Ministério de Justiça, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor, proibiu cautelarmente a exibição do filme e estipulou uma multa de R$ 50.000,00 pelo descumprimento de referida determinação. De acordo com o despacho n. 625/2022, a justificativa é a "necessária proteção à criança e ao adolescente consumerista". 

O timing do despacho, que coíbe a exibição de uma obra de 2019, e a temperatura dos bastidores de Brasília sugere que a questão é muito mais política do que jurídica, mas é necessário colocar os "pingos nos is".

Em um ponto de vista prático, a própria Netflix, principal plataforma de acesso ao filme, permite que pais estipulem instrumentos próprios para que crianças acessem certas obras. Não só, a classificação indicativa, exercida com fundamento na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Portaria 502 de 2021 do próprio Ministério da Justiça, existe tão somente para abarcar a "necessária proteção à criança e ao adolescente consumerista". Isto é, a principal natureza de tal instrumento é esclarecer, informar e indicar aos pais a existência de conteúdo inadequado para as crianças e adolescentes. O despacho n. 625/2022 atropela tal instituto e sugere que a Secretaria Nacional do Consumidor é quem define o que pode ou o que não pode ser exibido para o público nacional.

 Na dimensão constitucional, ainda mais flagrante e preocupante é a violação ao artigo 5º, inciso IX. O Brasil, através da Constituição Federal e de diversos julgados do Supremo Tribunal Federal, já há algum tempo definiu que, como regra, não há reserva legal para o exercício da liberdade de expressão, sendo que intervenções só poderão ser excepcionalmente permitidas quando o exigir um bem constitucionalmente colidente. Alguns fatores possivelmente limitantes à liberdade de expressão são o discurso de ódio, o insulto intencional e o direito autoral.

Como princípio constitucionalmente assegurado, é importante ressaltar que a liberdade de expressão atinge seu ponto fundamental na complexidade da expressão humana, já que ninguém precisa evocá-la quando não há conflito ou desgosto. A própria essência da liberdade de expressão está na liberdade de ofender, o que se aplica tanto para formas heroicas de expressão como para as mau gosto. Inclusive, no caso do filme de Gentili, há mau gosto? Se sim, a critério de quem? O meu, o seu, o da maioria, o da minoria, do budismo ou do governo Bolsonaro? 

Apoiar a existência de obras controversas pode parecer difícil para alguns, mas é condição absoluta do regime democrático. Não pode ser de uma pessoa ou do Estado a tarefa de impor modelos de expressão ou comportamento que se adequem a determinado campo da moral e da ética, em especial quando relacionados à arte e à comunicação, áreas estas que se relacionam com as maiores profundezas da subjetividade e da singularidade humana.

 A ideia deste artigo não se limita sobre Danilo Gentili ou seu filme especificamente. É sobre um princípio constitucionalmente protegido que é constantemente violado pelo Estado brasileiro. Mundo afora, violações básicas e constantes à liberdade de expressão passam a imagem de um país atrasado e pouco democrático. Em resumo, é bom para quem? 

Por ser ato flagrantemente inconstitucional, tal despacho deve ser em breve assim considerada pelo Poder Judiciário. No entanto, do ponto de vista político, o mínimo a ser feito seria um encaminhamento das autoridades responsáveis do Ministério da Justiça e Segurança Pública e Secretaria Nacional do Consumidor para que respondam a processo administrativo perante a Comissão de Ética Pública da Presidência, com possível recomendação da exoneração de tais profissionais para afirmar o exemplo de que a bússola diária de tais autoridades deveria ser a Constituição Federal.

Arthur Deucher Figueiredo

Arthur Deucher Figueiredo

Advogado no Brasil e na Califórnia. Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP e em Direito e Política da Mídia, Entretenimento e Tecnologia pela UCLA (University of California, Los Angeles).

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