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Gratuidade da justiça, entrave a jurisdição

Gratuidade da justiça, usurpação legislativa, limitação, obstrução do acesso à justiça - ofensa à CF, art. 5º, XXXV, CPC, art. 3º, dentre outros.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Atualizado às 08:50

(Imagem: Arte Migalhas)

O artigo: "Juíza nega gratuidade a desempregada: 'não comprovou padrão de vida'" publicado no sitio Migalhas, assinado por Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados, instigou a produção deste.

A Constituição Federal de 1988, inciso II do art. 5º, assevera que: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de Lei". Veda o Poder Judiciário a legislar, em respeito ao princípio da harmonia entre os poderes - CF, art. 2º. É dever do juiz cumprir, com EXATIDÃO as disposições legais - LOMAN, art. 35, I. Por óbvio, a interpretação não pode criar, limitar ou dizimar direitos, remete o brocardo: "Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus"1. Destarte, a decisão é ilegal, arbitrária e abusiva.

O CPC, regendo a matéria desde 2015, no art. 98 assegura que: "a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios TEM DIREITO À GRATUIDADE DE JUSTIÇA, na forma da Lei." - na forma dele próprio.

Sintetizando o art. 99 e parágrafos, é aceito pedido a qualquer tempo por simples petição nos autos, sendo dado ao juiz indeferir, SOMENTE "SE HOUVER NOS AUTOS elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão", não sem ANTES "determinar à parte que comprove o preenchimento dos referidos pressupostos" - § 2º. Note a EXCEÇÃO e EXCLUSIVIDADE da hipótese. O § 3º reveste "a alegação deduzida exclusivamente por pessoa natural", de presunção de veracidade, até prova insofismável em contrário apresentada pela parte adversa (CPC, art. 100) e mediante decisão motivada baseada em provas dos autos, vinculado o juiz a estas (CPC, art. 371)2. Complementando, o art. 374, inc. IV, garante não depender de prova os fatos em "cujo favor milita presunção legal de existência ou veracidade". Portanto, a Lei não deixa dúvida, inexistindo nos autos provas em contrário, o ato é vinculado, impondo o deferimento porque, indubitavelmente, não prevê persecução de prova da insuficiência de recursos.

Quanto ao inc. LXXIV do art. 5º, CF, que "o Estado prestará assistência JURÍDICA integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.", o STF se posicionou - RE 205.746, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, j. 26/11/96, 2ª Turma, DJ de 28/02/97, REAFIRMANDO bastar a declaração do interessado. Veja:

"A garantia do art. 5º, LXXIV - assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos -, não revogou a de assistência judiciária gratuita da lei 1.060/50, aos necessitados, certo que, para obtenção desta, basta a declaração, feita pelo próprio interessado, de que a sua situação econômica não permite vir a juízo sem prejuízo da sua manutenção ou de sua família. Essa norma infraconstitucional põe--se, ademais, dentro do espírito da Constituição, que deseja que seja facilitado o acesso de todos à justiça (CF, art. 5º, XXXV).

Vale destacar ainda, a lição do eminente processualista civil Alexandre Câmara: "Trata-se, evidentemente, de uma presunção relativa, iuris tantum, que pode ser afastada por prova em contrário (mas é importante notar o seguinte: ao juiz não é dado determinar à pessoa natural que produza prova que confirme a presunção, determinação esta que contrariaria o disposto no art. 374, IV)." Câmara, A. F. (2017). O Novo Processo Civil Brasileiro (3ª ed.). São Paulo: Atlas.

Embora o tenha revogado, frisa-se que o CPC se mantém fiel as premissas do art. 4º da lei 1.060/50 e do art. 1º da lei 7.115/83, ao incorporar a presunção de veracidade independente de qualquer prova.

O STJ consolida o entendimento:

"[...]

4. O benefício tem como principal escopo assegurar a plena fruição da garantia constitucional de acesso à justiça, não comportando interpretação que impeça ou dificulte o exercício do direito de ação ou de defesa.

5. O direito à gratuidade de justiça está diretamente relacionado à situação financeira deficitária do litigante que não o permita arcar com as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios, o que não significa que peremptoriamente será descabido se o interessado for proprietário de algum bem.

6. Se não verificar a presença dos pressupostos legais, pode o julgador indeferir o pedido de gratuidade, após dispensar à parte oportunidade de apresentação de documentos comprobatórios (art. 99, § 2º, do CPC/15).

[...]

8. Recurso especial conhecido e provido."

(REsp 1837398/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/05/21, DJe 31/05/21)

"[...]

2. A concessão do benefício da gratuidade de justiça à pessoa jurídica está condicionada à prova da hipossuficiência, conforme o preceito da Súmula 481 deste Superior Tribunal. No caso, o Tribunal de origem entendeu que a pessoa jurídica (devedora principal) não comprovou sua incapacidade financeira de arcar com as despesas do processo.

3. Para as pessoas físicas, a simples declaração de pobreza tem presunção juris tantum, bastando, a princípio, o simples requerimento, sem nenhuma comprovação prévia, para que lhes seja concedida a assistência judiciária gratuita. Na hipótese, a Corte estadual não apresentou justificativa concreta para afastar a presunção de hipossuficiência alegada pelos sócios/garantidores da devedora principal.

[...]"

(AgInt no AREsp 1647231/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 08/06/20, DJe 25/06/20)

Não olvide que, em caso de má-fé, sujeita-se ao pagamento de até o décuplo do valor que deixou de adiantar - parágrafo único do art. 100.

Quanto a taxa judiciária, o legislador, respeitando os princípios da inafastabilidade da jurisdição (art. 3º); boa-fé (art. 5º); isonomia - paridade de armas (art. 7º); dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, razoabilidade, legalidade e eficiência (art. 8º), assegurou a gratuidade a quem afirme insuficiência de recursos para pagar as custas, despesas e honorários advocatícios, independente de prova (CPC, art. 99, § 3º, c.c. art. 374, IV), sendo vedado impedir, dificultar ou limitar acesso à justiça em razão dela.

No caso analisado, trata-se de uma mãe solo de 5 crianças, faxineira desempregada, a quem é compelido o recolhimento de R$ 326,29 mais despesas de postagem de R$ 27,10. Falta empatia, senso comum para discernir o quanto estes valores representam no seio familiar. Embora pareça irrisório para uns, para outros representa a sobrevivência. Foge da "mens legis" exigir sacrifícios à subsistência própria ou da família, preterir credores ou dissipar patrimônio para saciar o fisco.

Constranger alguém, inaugurar uma "fase de comprovação" e induzir a produzir prova contra si mesmo, afronta a Constituição (CF, art. 5º, XXXIV, "a"; XXXV, LXIII, LXXIII, LXXIV, LXXXVI, LXXVII) e o CPC que zelam por amplo, irrestrito e gratuito acesso à justiça, enxerga-se como quebra ilegal do sigilo fiscal, produção de prova sem pedido prévio (CPC, art. 141), violação da intimidade, vida privada, honra, dados - CF, art. 5º, X e XII; os direitos básicos do usuário do serviço público (art. 6º, IV, L. 13.460/17), de não produzir provas contra si mesmo (CF, art. 5º, LXIII e CPC, art. 379). Tais práticas constituem, ao menos em tese, crimes de abuso de autoridade previstos nos arts. 25, 30, 31 e 33 da lei 13.869/19.

Arrematando, pode-se afirmar que a legislação vigente assegura a quem alegue insuficiência de recursos para pagar as custas e despesas do processo e os honorários de advogado, o direito à gratuidade da justiça, tendo como único critério objetivo a alegação da parte; que só a pessoa natural goza da presunção de veracidade independentemente de prova, não aproveitando a pessoa jurídica; que a lei não exige estado de pobreza ou miséria, temporária ou definitiva; que não vincula à renda (teto ou piso); nem a existência ou não de bens de qualquer espécie ou valor; não exige demonstração do padrão de vida; que a comprovação só pode ser exigida excepcionalmente  antes do indeferimento se houver, nos autos, elemento capaz de pôr em dúvida a alegação da parte; que não cabe ao intérprete impor limite onde a Lei não impôs.

Conclui-se mais que, indubitavelmente, o espírito da Lei é de assegurar à pessoa natural o direito de perseguir em juízo direito ameaçado ou violado, sem prejuízo de seu próprio sustento ou de sua família a isenção das custas, despesas do processo e honorários advocatícios, prestigiando assim, a gratuidade e o acesso incondicional e ilimitado à jurisdição. E que, não havendo nos autos elemento real capaz de refutar a presunção relativa de veracidade, esta prevalece e o deferimento se impõe como forma de ato VINCULADO.

Logo, por qualquer ângulo que se olhe, a decisão é arbitrária, abusiva e ilegal.

___________

1 não cabe ao intérprete da lei restringir o que a lei não restringe.

2 "Quod non est in actis non est in mundo" - o que não está nos autos não está no mundo.

Claudimir Couto

Claudimir Couto

Advogado militante no Estado de São Paulo, formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo/SP - 27ª Turma - 1996 - Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Candido Mendes/RJ - 2021 - Pós-graduando em Direito Administrativo - 2022.

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