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Samarco e a responsabilidade do credor que apresentar e aprovar plano alternativo

Análise a respeito do primeiro caso de aprovação de apresentação de Plano de Recuperação Judicial alternativo no caso Samarco e a responsabilidade dos credores, com analogia com os acionistas controladores da Lei das sociedades anônimas.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Atualizado às 13:50

(Imagem: Arte Migalhas)

No último dia 18 ocorreu a Assembleia Geral de Credores da Recuperação Judicial da Samarco Mineração S.A. - Em Recuperação Judicial, tendo sido colocado em votação seu Plano de Recuperação Judicial (PRJ)1.

O resultado da votação foi pela rejeição do plano, pois a empresa não obteve aprovação da proposta pela maioria por valor dos credores da Classe III - Quirografários, basicamente pela recusa dos credores financeiros, apesar de aprovado nas Classes I - Credores Trabalhistas e IV - Credores ME e EPP.

Com a rejeição do PRJ, o que ensejaria a decretação da falência da empresa, foi colocado em votação e aprovado a apresentação de PRJ alternativo pelos credores no prazo de 30 (trinta) dias, utilizado instrumento legal inserido recentemente na Lei de Recuperação Judicial (LRE), previsto no §§4º, 5º, 6º e 7º do art. 56.

Nesse momento, de um lado a Samarco busca junto ao Juízo Recuperacional a nulidade dos votos dos credores financeiros, com fundamento no voto abusivo, afirmando irracionalidade econômica no voto contrário a aprovação. De outro, o representante dos credores financeiros informa que será apresentado um PRJ muito melhor a empresa e aos credores.2

Esse é o primeiro caso de aprovação pelos credores de apresentação de PRJ alternativo, com base na reforma da LRE.

Recentemente publiquei um artigo3 sobre a responsabilidade dos credores que apresentarem e aprovarem PRJ alternativo, em analogia com os acionistas controladores da Lei das sociedades anônimas, pois nas mudanças da LRE não houve previsão expressa nesse sentido.

Essa discussão veste maior relevância nesse momento com primeiro caso de apresentação do PRJ pelos credores, com palco na Recuperação Judicial da Samarco.

Como se sabe, o PRJ é peça de fundamental importância para a recuperação de uma empresa, pois trata-se de uma concatenação de ideias, princípios jurídicos, financeiros e econômicos. O plano é um verdadeiro cruzamento de interesses, não sendo analisado somente sob a ótica de satisfação do crédito no processo recuperacional.

Assim, não se trata de uma peça exclusivamente jurídica, mas, obviamente, multidisciplinar, pois para que a empresa seja economicamente viável, e, assim, cumpra sua função social, obrigatoriamente, deve-se pautar em medidas econômicas-financeiras, que, acopladas a um fluxo de caixa, possam ser aplicadas à recuperação da empresa.

Nesse raciocínio, a apresentação do plano pelo credor não é somente uma apresentação alternativa de pagamento, haja vista que o credor reúne a concordância da maioria dos credores, apresenta laudos técnicos de viabilidade do negócio, apresenta os meios de recuperação do negócio e define as medidas de soerguimento do negócio, devendo, obviamente, ter vínculo direto sobre eventual insucesso do PRJ e consequente falência do devedor.

Para corroborar com tal entendimento, o ilustre Professor Manoel Justino Bezerra Filho, em análise ao tema, esclareceu que:

Em tal caso, em tese, aqueles que apresentaram o plano alternativo poderão vir a ser responsabilizados pelo insucesso e deverão responder pelos prejuízos causados. Essa possibilidade de responsabilização do apresentante do plano e, eventualmente, daqueles que votaram favoravelmente, torna-se ainda mais presente no caso de ter havido oposição do devedor ao novo plano.4

Contudo, nas mudanças da LRE não houve previsão expressa acerca de responsabilização dos credores que apresentaram e aprovaram o PRJ alternativo, assim como daqueles credores que o apoiaram. No entanto, concluir-se que pelo simples fato de a norma não tratar de tal ponto de forma expressa inexistiria qualquer responsabilidade a tais credores, seria negar a importância do PRJ como instrumento do soerguimento da empresa.  

Dada a inexistência de previsão expressa na LRE, tem-se duas frentes de responsabilização, uma sob a ótica da responsabilidade contratual, que, apesar de não ser o foco do presente estudo, nada mais é do que a consequência do inadimplemento de uma obrigação estabelecida contratualmente (aquelas contidas no PRJ alternativo), em que descumpridas há a incidência de ato ilícito, gerando ilícito contratual passível de reparação.

A segunda faz-se por meio de analogia5 à Lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/76), que em seu artigo 1166 define que para configuração do acionista controlador são necessários dois requisitos, um de natureza objetiva - percentual do capital votante que confira maioria na assembleia e possibilidade de eleição da maioria dos administradores - e outro de natureza subjetiva - uso efetivo do percentual do capital votante para comandar a gestão dos negócios sociais.

Conjugando os requisitos objetivos e subjetivos acima que definem o conceito de acionista controlador com a previsão do credor em apresentar PRJ alternativo, tem-se que aquele credor que utiliza o referido direito e cumprindo todos os requisitos estabelecidos da LRE, tem de fato (i) maioria nas deliberações em assembleia, mesmo que não seja o credor com maior crédito, (ii) poder de eleger novos administradores a empresa em recuperação judicial7, (iii) usa de maneira efetiva seu poder de dirigir as atividades da empresa em recuperação judicial, uma vez que foram estes credores que elaboraram e aprovaram o PRJ do devedor com todas suas exigências legais.

Frente aos dispositivos apresentados, além da responsabilidade civil contratual, é nitidamente cabível a equiparação por analogia do poder do acionista controlador previsto na Lei das Sociedades Anônimas com o credor controlador na recuperação judicial.

O parágrafo único do art. 116 da Lei das Sociedades Anônimas também estabeleceu que o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.

Sem dúvidas o artigo acima mencionado não está destoado do  espírito que norteia a recuperação judicial previsto no artigo 47 da LRE, que busca o interesse coletivo, o valor social da empresa, evidenciada pela ordem de prioridades adotada, no qual o primeiro deles é a busca em manter a própria atividade empresarial, com a consequente possibilidade de manter o emprego dos trabalhadores, e, com a união destas duas prioridades, possibilitará a proteção dos interesses dos credores.8

Além das regras de conduta do controlador, a Lei das Sociedades Anônimas se preocupou também em disciplinar regras de responsabilização daquele que usa seu poder de forma abusiva, o qual segundo o art. 117 o acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder.

Para completar a regra em questão, dispõe o seu § 1º que as modalidades do exercício abusivo de poder, estando entre diversas previsões, as seguintes: a) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional; b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação, incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas, dos que trabalham na empresa ou dos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia; (...) d) eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente.

Nessa linha, verifica-se que as previsões acima podem ser aproveitadas ao credor controlador que apresentar PRJ alternativo destoado da realidade da empresa em recuperação judicial, destoado da sua capacidade financeira, das possibilidades de reestruturação, contrário aos interesses da empresa, pois não poderá agir com o único objetivo de se beneficiar pessoalmente da situação, deixando que tal objetivo superasse o seu interesse na qualidade de credor na recuperação judicial, sendo que a sua conduta precisa  também estar sob à luz aos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim econômico e social do direito.

Por este ângulo, apesar de já existir previsão na LRE sobre ilegalidade do voto abusivo9, o que inclusive a Samarco busca nesse momento, o comportamento abusivo do credor não possui expressa previsão na referida legislação.

Daí porque o exercício do direito de apresentação do PRJ alternativo pelo credor e sua aprovação que gerar dano ao devedor e aos demais credores, ou ainda, o seu insucesso futuro se enquadra analogicamente nas previsões dos acionistas controladores da Lei das Sociedades Anônimas, assim como na hipótese do art. 187 do Código Civil e, em consequência disso, gera do dever de repará-lo, nos termos do art. 927 também do Código Civil.

Feito a referida analogia, temos ainda que a própria LRE não ignorou a necessidade de apuração das responsabilidades dos controladores da empresa falida prevendo em seu art. 82 que a apuração da responsabilidade daqueles será realizada no próprio juízo falimentar, destacando, ainda, que "independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo".

Tal raciocínio reafirma os preceitos da responsabilidade dos controladores no procedimento da LRE, mas para isso acontecer deverá ocorrer um ato lesivo, sendo que, se o PRJ alternativo, mesmo que contrário aos interesses da empresa, não causou efeitos reais, não se poderá elencar qualquer responsabilização advinda deste.

Assim, aqueles credores que, pelo instrumento legal, estabelecerem as maiores batalhas pelo poder de controle do processo recuperacional, da empresa e da aprovação do PRJ, construindo os meios de soerguimento do negócio, como os credores financeiros no caso Samarco, não se poderá ignorar suas responsabilidades, de modo a definir seus deveres e as obrigações, sem descuidar de seus naturais e imperiosos direitos.

Podemos extrair de todo acima exposto, que as recentes mudanças da LRE representaram uma enorme evolução, mas se tratando o PRJ de uma peça fundamental na busca da superação da crise econômico-financeira que atravessa o devedor, o caminho alternativo eventualmente proposto pelo credor deverá assegurar a sua responsabilidade em eventual insucesso das medidas adotadas.

Nessa linha, se a LRE deu o poder dos credores discordarem do PRJ apresentado pelo devedor, o que já era possível anteriormente, mas ao invés de preferir a falência preferirem estes a apresentação de um PRJ alternativo que entendem adequado, obviamente tal credor e os credores apoiaram responderão pelo insucesso das premissas e dos fundamentos que levaram a construção do PRJ, até porque assumiu a posição de controle, não somente em relação a aprovação da proposta apresentada, mas, principalmente, em relação a própria empresa, ao sucesso das premissas de soerguimento defendidas.

Portanto, a ausência de previsão da LRE não poderá ser motivo para não responsabilizar tais credores que assumem o poder de credores controladores, assim como é a figura do acionista controlador na Lei das Sociedades Anônimas, de modo punir as condutas lesivas, abusivas e contrárias aos princípios norteadores do processo de recuperação judicial das empresas.

Diante da omissão legislativa a respeito desse tema, caberá a jurisprudência acomodar o melhor entendimento para que a LRE possa atingir seus objetivos, muito bem definidos em seu art. 47.

É o que já veremos nesse primeiro e relevante caso da Recuperação Judicial da Samarco.

__________

BRASIL. Lei 11.101, de 09 de Fevereiro de 2005. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm.  Acesso em 02 ago. 2021.

BRASIL. Lei 14.112, de 24 de Dezembro de 2020. Altera as Leis 11.101/2005, 10.522/2002 e 8.929/1994. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14112.htm.  Acesso em 02 ago. 2021.

BRASIL. Lei 6.404/76, de 15 de Dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404compilada.htm.  Acesso em 02 ago. 2021.

BRASIL. Lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm Acesso em 02 ago. 2021.

BEZZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e falências: Lei 11.101/2005. 15ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021

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1 Processo  5046520-86.2021.8.13.0024, 2ª Vara Empresarial da Comarca de Belo Horizonte/ MG

2 https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/04/18/maioria-dos-credores-reprova-plano-de-recuperacao-judicial-da-samarco.ghtml

3 Serrano, Camila. A responsabilidade do credor que apresentar e aprovar plano alternativo - analogia com os acionistas controladores da Lei das Sociedades Anônimas. Página 57. Mulheres da Insolvência #porElas- organizado pelo IBAJUD (instituto Brasileiro da Insolvência), 1.ed. - São Paulo: Inbook Editora, 2021.

4 Bezerra Filho, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e falências: Lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo; Eronides A. Rodrigues dos Santos. 15ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. Página 288.

5 A interpretação analógica tem previsão expressa na Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro - LINDB, conforme se verifica de seu art. 4º.

6 Art. 116 - Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e

b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia."

7 Art. 56, §7º e art. 50, III da LRE.

8 Bezerra Filho, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo. Pg. 134.

9 Artigo 39, §6º da LRE.

Camila Serrano

Camila Serrano

Advogada especialista em Insolvência, Recuperação Judicial e Reestruturação de Empresas, Renegociações e Reestruturações de Passivos e Ativos. Bacharel em Direito na PUC Campinas; MBA em Direito Empresarial pela FGV.

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