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EC 119/22 e o "indulto" concedido aos gestores públicos por insuficiência de alocação de recursos na educação

A partir de agora, os gestores deverão se planejar melhor para cumprirem adequadamente as metas fixadas de investimento na educação, de modo a compensar o evidente prejuízo sofrido no sistema de educação de nosso país.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Atualizado em 5 de maio de 2022 15:01

(Imagem: Arte Migalhas)

Conforme é do conhecimento de todos, a covid-19 ocasionou um problema de saúde pública mundial que perdurou mais de um exercício financeiro.

O status de "pandemia" foi declarado pela OMS em 11 de março de 2020 e persistiu, no Brasil, até 22 de abril de 2022, quando o Ministério da Saúde declarou encerrada a emergência em saúde pública de importância nacional em decorrência da covid-19, por meio da portaria GM/MS 913/22.

As medidas adotadas para a contenção do surto pandêmico, por implicarem rigoroso isolamento social, acabaram repercutindo nas atividades comerciais, profissionais, econômicas, educacionais, assistenciais, dentre outras, vindo a ocasionar reflexos também no campo do Direito, tendo em vista a necessidade de se proceder a alterações legislativas e interpretações corretivas, de modo a atender às situações geradas pela pandemia.

Dentre essas novas modificações legislativas, podemos mencionar (i) a lei 13.979/20, que possibilitou a adoção de medidas para o enfrentamento da pandemia, tais como o isolamento, a quarentena, o manejo de cadáver, a restrição excepcional e temporária de locomoção internacional, interestadual ou intermunicipal; (ii) a lei 14.019/20, que incluiu o uso obrigatório de máscaras de proteção individual; (iii) a EC 106/20, também conhecida como "Orçamento de Guerra", que, dentre outras medidas, facilitou os gastos do governo federal com a pandemia, por meio do regime extraordinário fiscal; e (iv) o julgamento da ADI 6357, em que o STF afastou as exigências da LRF e da LDO relativas à demonstração de adequação e compensação orçamentária em programas públicos destinados ao enfrentamento da covid-19; (v) as leis que prorrogaram a data de vencimento de documentos e/ou para o cumprimento de determinadas obrigações, inclusive as de natureza tributária.

Superado o surto pandêmico, alguns efeitos da covid-19 ainda são sentidos pelo Direito, dentre eles o modo de apreciar a legitimidade de determinadas condutas adotadas, quer pelo Poder Público, quer pela iniciativa privada.

Diante disto, recentemente, em 27 de abril de 2022, foi promulgada a EC 119/22, que acrescentou o art. 119 ao ADCT - ato das disposições constitucionais transitórias da Constituição da República, estabelecendo que, em decorrência do estado de calamidade pública provocado pela pandemia de covid-19, os Estados, o Distrito Federal, os municípios e os agentes públicos desses entes não poderão ser responsabilizados administrativa, civil ou criminalmente pela não aplicação de percentuais mínimos de gastos em educação, previstos no art. 212 da Constituição da República, nos anos de 2020 e 2021.

Trata-se de questão bem polêmica, diante da necessidade e importância no desenvolvimento da educação em nosso país, que já é tão precária.

Apenas a título de exemplo, os dados da PNAD - pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua -, realizada pelo IBGE e divulgada em 02/12/21, apontam que, no segundo trimestre de 2021, houve um aumento de 171% de crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos fora da escola em comparação com 2019, representado uma evasão escolar de cerca de 244 mil alunos1. 

Diante desse cenário, tolerar-se a não aplicação do mínimo exigido pela Constituição é sempre algo extremamente preocupante. Contudo, em uma situação de excepcionalidade, tal qual a que vivenciamos, não seria justo, muito menos razoável, responsabilizar os gestores públicos pela não aplicação do mínimo com a educação, tendo em vista a suspensão das atividades escolares no período. 

Ora, se a covid-19 acarretou a paralisação das atividades educativas, seria até mesmo de causar certa estranheza a inexistência de redução nos gastos com a educação, já que os entes públicos economizaram valores com "transporte escolar", "merenda",

"limpeza das unidades", "água", "energia elétrica", "telefone", "material de expediente", "combustível", dentre outros serviços que ficaram comprometidos com a suspensão das aulas presenciais nos exercícios financeiros de 2020 e 2021.

Apenas uma política pública muito bem planejada poderia assegurar a manutenção dos gastos com a educação sem desperdício de dinheiro público. Todavia, se já temos problemas de planejamento em épocas de normalidade, como exigir do gestor a manutenção dos gastos com a educação e de seu padrão de fornecimento em tempos de incerteza, de excepcionalidade? Seria certo exigir a utilização do percentual mínimo das verbas destinadas à educação apenas para fins de cumprimento de metas?

É evidente que o Direito não pode ordenar aos indivíduos comportamentos impossíveis de serem adotados. Não pode, ainda, exigir dos gestores a realização de despesas sem ganhos concretos para a educação, pois isto contraria o interesse público. 

Por estas razões, entendemos que a EC 119/22 veio em boa hora para garantir (i) o justo controle das condutas adotadas pelos gestores em época de excepcionalidade, considerando as circunstâncias próprias do momento; (ii) o investimento mínimo, exigido constitucionalmente em tempos de normalidade, ao dispor que os gestores terão a obrigação de investir na educação o que não foi aplicado nesses dois anos até o final de 2023; e (iii) o respeito ao dinheiro público, que não pode ser objeto de desperdício apenas para prestigiar metas formais.

A nova emenda determinou, ainda, que não poderão ser impostas aos entes quaisquer penalidades, sanções ou restrições para fins cadastrais, de aprovação ou de celebração de ajustes onerosos ou não, incluídas a contratação, a renovação ou a celebração de aditivos de quaisquer tipos, de ajustes, de convênios, e outros, inclusive em relação à possibilidade de recebimento de recursos do orçamento da União por meio de transferências voluntárias.

Da mesma forma, fica impossibilitada a intervenção estatal, prevista no artigo 35, II, da Constituição, pela não aplicação dos percentuais mínimos exigidos da receita municipal na manutenção e no desenvolvimento do ensino.

Conclui-se, portanto, que o teor da EC 119/22 é salutar para impedir que gestores públicos e os entes da federação venham a sofrer injustas punições em razão dos impactos provocados pela covid-19 na alocação de recursos na educação.

No entanto, a partir de agora, os gestores deverão se planejar melhor para cumprirem adequadamente as metas fixadas de investimento na educação, de modo a compensar o evidente prejuízo sofrido no sistema de educação de nosso país. 

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1 G1. Evasão escolar de crianças e adolescente aumenta 171% na pandemia, diz estudo. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/12/02/evasao-escolar-de-criancas-e-adolescenteaumenta-171percent-na-pandemia-diz-estudo.ghtml. 

2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.

3 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

4 FRITOLI, Fernanda Ghiuro Valentini; SANTANA, Fabio Paulo Reis. O papel dos municípios na garantia do mínimo existencial em tempos da covid-19. In: DAL POZZO, Augusto; CAMMAROSANO, Márcio (coord.). As implicações da covid-19 no direito administrativo. 1 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. pp. 31/41.

5 G1. Evasão escolar de crianças e adolescente aumenta 171% na pandemia, diz estudo. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/12/02/evasaoescolar-de-criancas-e-adolescente-aumenta-171percent-na-pandemia-diz-estudo.ghtml.

Fernanda Ghiuro Valentini Fritoli

Fernanda Ghiuro Valentini Fritoli

Doutoranda em Direito Administrativo e mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP. Professora (em estágio docente) na PUC-SP, no curso de graduação em Direito Administrativo. Professora de cursos de especialização. Sócia do escritório Fritoli & Moraes Advogados Associados.

Fábio Paulo Santana

Fábio Paulo Santana

Doutorando em direito pela PUC/SP. Membro Consultor da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB. Advogado.

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