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A contribuição do direito empresarial para a densificação do "erro" na gestão pública

Apesar dos esforços da literatura administrativista especializada e dos quatro anos de vigência das novas normas da LINDB, o conceito de "erro" trazido pelo novo artigo 28 segue tormentoso. Defende-se a ideia de que o direito empresarial, com suas normas de gestão e governança, pode auxiliar na concretização desse conceito.

terça-feira, 17 de maio de 2022

Atualizado às 12:44

Na última semana, em 26 de abril de 2022, completou-se quatro anos de vigência das alterações trazidas pela lei 13.655/18 na LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. À época da sua edição e ainda hoje, a maioria dos professores de direito administrativo saudaram a nova legislação como um avanço para racionalizar a gestão pública e coibir possíveis excessos dos órgãos de controle.

Porém, passada a "primeira infância" da nova legislação, nota-se que ainda existe um grande caminho a percorrer. José Vicente Santos de Mendonça, em artigo publicado neste mesmo site1, aponta, a partir de análise quantitativa das citações da LINDB em decisões judiciais do STF e do STJ, que a LINDB "começa a ganhar tração, mas ainda é cedo para comemorar".

Um dispositivo muito debatido e comentado foi o novo art. 282, que, segundo Gustavo Binenbojm e André Cyrino3, instituiu uma verdadeira "cláusula geral do erro administrativo", com o escopo de dar segurança jurídica ao gestor bem-intencionado e diligente, reservando a punição apenas aos casos de atuação dolosa e erro grosseiro.

A experiência vem demonstrando que o art. 28 está distante de todo o seu potencial. Por exemplo, pesquisa conduzida pela sociedade brasileira de direito público (SBDP)4 a partir do exame dos julgados do Tribunal de Contas da União, concluiu que a Corte de Contas vem se esquivando de enfrentar e sistematizar as circunstâncias subjetivas do agente que configurariam erro grosseiro passível de punição.

Assim, remanesce a insegurança do gestor público, que não possui parâmetros nítidos sobre o que seria um erro passível de punição e qualificado como grosseiro pela jurisprudência ou pelos órgãos de controle. A densificação do conceito de erro pode ajudar a combater o que vem sendo denominado de "direito administrativo do medo5", contribuindo para uma gestão pública mais eficiente.

INFLUXOS DAS BOAS PRÁTICAS DO DIREITO PRIVADO NA FORMULAÇÃO DE UM CONCEITO ADEQUADO DE ERRO E BOA GESTÃO

A tradicional dicotomia entre direito público e privado reflete, cada vez menos, a realidade da prática jurídica. Se, de um lado, os objetivos sociais da Constituição da República impõem aos particulares a observância de uma série de normas nas suas atividades, também a gestão pública deve manejar institutos tradicionalmente associados com o direito privado para exercer da maneira mais eficiente o múnus público.

A definição de boa gestão, governança e, por que não, de erro na gestão não deve prescindir do conhecimento acumulado em outros searas, especialmente das regras de boa administração aplicadas nas companhias privadas e nas melhores práticas de administração financeira. A literatura especializada aponto que o objetivo de um administrador é tomar boas decisões que, por conseguinte, vão gerar dividendos e, em caso de companhias abertas, maximização do valor unitário das ações6.

Assim, é dever do administrador privado, atuar em prol da sociedade empresária e, por conseguinte, tomar boas decisões para a saúde desta, no curto, médio e longo prazos.

Ocorre que, não raras vezes, a remuneração dos administradores costumeiramente está atrelada ao desempenho anual (o que, sob o prisma contábil, caracteriza-se por curto prazo), com incentivos generosos ("bônus"), se galgados resultados virtuosos.

Entretanto, maximizar valor a curto prazo - leia-se altos lucros num universo de 1 (um) ano -, não necessariamente é uma boa tomada de decisão empresarial pois, a depender de como é realizada, pode derivar em colapso futuro da instituição financeira.

Note-se que o hipotético gestor privado, se estiver ávido por resultados de curto prazo, com o objetivo de receber o bônus contratual, poderá tomar medidas nocivas no longo prazo, em desalinho com as normas de boa governança corporativa, cujo conteúdo indica que a gestão deve balizar-se no crescimento empresarial sustentado de longo prazo.

Por outro lado, mesmo um gestor diligente e cuidadoso, voltando ao crescimento sustentável da empresa, pode tomar decisões que se revelam infrutíferas. O fenômeno é muito frequente, por exemplo, em setores dependentes de fatores externos.

Logo, em grande medida existem dificuldades equivalentes em delimitar o que seria um erro aceitável tanto na gestão pública, quanto na gestão privada. À luz do direito comparado, podemos trazer alguns standards usualmente preconizados pela literatura especializada.

A doutrina norte-americana adotou o business judgement rule que, em linhas gerais, preleciona que o controle judiciário não deve aplicar o jus puniendi ao administrador que tomou a decisão de forma independente, desinteressada, com os estudos adequados, de boa-fé, e primando pelo interesse social, ainda que cause prejuízos à sociedade empresária.

Isto deve-se às seguintes premissas:

(i) é mais fácil ser "profeta do passado", do que tomador de decisão no calor do momento;

(ii) a administração da sociedade empresária é uma atividade de meio, e não de fim, haja vista que risco é inerente à atividade empresarial;

e, mais importante, (iii) a própria entidade seria prejudicada caso as decisões de seus administradores fossem constantemente revisitadas e contestadas pelos Tribunais.

A leitura atenta do art. 28 da LINDB e do cotejo dos deveres dos administradores públicos e privados, observa-se a elevada compatibilidade entre a regra fixada na nova LINDB e a doutrina do business judgement rule.

Em reforço ao defendido, rememore-se que, consoante dicção dos artigos 207 e 228 da LINDB, há que se valorar as consequências práticas da decisão do gestor público, considerando as dificuldades por ele enfrentadas, analisando a existência de dolo ou erro grosseiro; e, paralelamente motivando a decisão final.

Ou seja, devem os Tribunais, em âmbito judicial ou administrativo, mensurar se, à ocasião da tomada de decisão, ele atuou de forma proba, independente, desinteressada, com conhecimento adequado, de boa fé e primando pelo interesse social; ora, em sistemática muito próxima a do direito empresarial.

CONCLUSÃO:

Os órgãos de controle, na sua fundamental e imprescindível atividade de controle de malfeitos, devem manejar e atentar para o conhecimento multidisciplinar de distintas searas do Direito. O desenvolvimento teórico das práticas de boa gestão privada, em especial do business judgement rule, podem e devem auxiliar na exploração da totalidade do potencial do art. 28 da LINDB.

_________

1 MENDONÇA, José Vicente Santos de. Aplicação da LINDB pelo Supremo e pelo STJ: o que os

dados falam? Jota, 05 de out. de 2021. Acesso em 02.05.2022.

2 Art. 28.  O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

3 Binenbojm, G., & Cyrino, A. (2018). O Art. 28 da LINDB - A cláusula geral do erro administrativo. Revista De Direito Administrativo, 203-224. https://doi.org/10.12660/rda.v0.2018.77655

4 Aplicação dos novos dispositivos da LINDB pelo TCU - sumário executivo. 27.09.2021. Acesso em: 02.05.2022. Disponível em https://sbdp.org.br/research/aplicacao-dos-novos-dispositivos-da-lindb-pelo-tcu-sumario-executivo/

5 SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. São Paulo: Thomson Reuters, Revista dos Tribunais. 2020.

6 Stephen A. Ross; Randolph W. Westerfield; Bradford D. Jordan; Roberto Lamb. In: Fundamentos da Administração Financeira. 9ª Edição, 2017. Ed. AMGH. p-12.

7Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

8 Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

Dante Tomaz

Dante Tomaz

Mestre em Direito Público pela UERJ. LL.M em Direito do Estado e da Regulação pela FGV-RIO. Advogado associado ao escritório GBA Advogados. Procurador da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Daniel Figueira Borges

Daniel Figueira Borges

Master of Laws em Societário e Mercado de Capitais pela FGV-RIO. Sócio fundador do escritório Borges e Castro Advogados.

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