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Extinção das EIRELIS

Trata-se de ensaio que analisa o contexto de surgimento e de extinção das EIRELIS no ordenamento jurídico brasileiro, tendo como norte a função jurídico-econômica dessa forma de exercício da atividade empresarial.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Atualizado às 13:50

1. Introdução

A Lei do Ambiente de Negócios ("LAN"), lei 14.195/21, publicada no DOU em 27/08/21, provocou inúmeras alterações em matéria empresarial, com reflexos para uma farta gama de legislações correlatas, dentre elas: Código Civil, Lei do Registro Público de Empresas Mercantis, Lei da REDESIM etc.

Entre as alterações promovidas pela LAN, ganhou destaque a extinção das empresas individuais de responsabilidade limitada ("EIRELIS"), que foram inseridas no ordenamento jurídico brasileiro para estimular a atividade empresária pela pessoa que não desejava ter um sócio, mas queria exercer a atividade empresarial com separação de patrimônio, a fim de obter a limitação de responsabilidade.

Este ensaio fará breves considerações sobre o contexto de surgimento e características das EIRELIS, bem como sobre os motivos e movimentos que impulsionaram a sua extinção, tendo como norte a compreensão de sua importância jurídico-econômica para o Direito Empresarial.

2. Surgimento e Características da EIRELIS

Tendo como base os pequenos e médios negócios, exercidos por apenas uma pessoa, as EIRELIS foram introduzidas no sistema jurídico brasileiro em 2011, por meio da lei 12.441/11, que incluiu o inciso VI do art. 44 do Código Civil, instituindo a EIRELI como pessoa jurídica de direito privado, e o art. 980-A, caput e parágrafos, do Código Civil, que definiu e determinou as características das EIRELIS.

Conforme aponta Gonçalves Neto, o legislador brasileiro optou por uma terceira via, de peculiar roupagem, que não englobou nem a sociedade limitada unipessoal e nem o empresário individual com responsabilidade limitada aos bens que afetar à sua empresa, aproximando-se as EIRELIS do "modelo português do estabelecimento comercial de responsabilidade limitada, com a diferença de o patrimônio destinado ao seu negócio pertencer a pessoa diversa, tanto do empresário quanto da sociedade empresária"1.

A EIRELI, portanto, não se caracterizou como uma sociedade empresária e nem se confundia com a pessoa do empresário, constituindo, em verdade, novo ente jurídico com personalidade própria2.

Pode-se apontar como principais características (i) a limitação de constituição de apenas uma EIRELI por uma mesma pessoa natural; (ii) a necessidade de integralização do capital social correspondente a pelo menos 100 (cem) salários-mínimos vigentes na data do protocolo do registro de constituição, (iii) a formação de uma pessoa jurídica cadastrada com um número de CNPJ, (iv) a separação patrimonial, sendo que apenas o patrimônio da EIRELI respondia pelas dívidas, excetuado o caso de fraude.

Das caraterísticas apontadas, duas delas dificultavam a utilização da EIRELI em maior escala. Primeiro, o valor vultoso do capital social exigido no ato da sua constituição3; segundo, a limitação de constituição de apenas uma EIRELI por uma mesma pessoa natural4.

Destaca-se, quanto ao primeiro limitador, que a justificativa seria uma maior proteção ao credor, como contraposição pela responsabilidade limitada. Vale dizer, por um lado, se a limitação de responsabilidade tinha como base o estímulo da atividade empresarial por uma pessoa que não desejasse ter um sócio, não se encontrando essa forma de separação patrimonial no empresário individual, por outro lado, a integralização do capital social com um valor vultoso permitia uma maior segurança e proteção aos credores da EIRELI.

O capital social mínimo e a limitação de constituição de uma EIRELI por uma mesma pessoa natural podem ser apontados como os principais elementos que impediram uma utilização em maior número das EIRELIS, notadamente porque outros tipos de empresa, como a sociedade empresária limitada, não exigem capital social mínimo, de modo que era muito mais fácil encontrar um sócio para criação de uma sociedade limitada, ainda que a participação de um deles fosse menor do que 5% das quotas representativas do capital social, do que constituir uma EIRELI. De igual maneira, não existe limitação para uma mesma pessoa natural participar de várias sociedades limitadas, o que tornava menos atraente ainda a constituição de uma EIRELI.

3. Criação da Sociedade Limitada Unipessoal

A sociedade limitada unipessoal ("SLU") teve o seu maior desenvolvimento doutrinário5 na Alemanha, sendo utilizada em vários outros países, a exemplo da França, Holanda e Bélgica6.

No Brasil, a SLU foi introduzida pela lei 13.874/19, Lei da Liberdade Econômica, passando a expressamente constar no Código Civil, no capítulo da sociedade limitada, a possibilidade de sua constituição por apenas 1 (uma) pessoa (art. 1.052, § 1º, do Código Civil)7.

Antes da SLU, já tinha previsão legal de outras duas sociedades unipessoais, mas que, no entanto, não têm a mesma função jurídico-econômica daquela: (i) uma para descentralização administrativa e exercício de atividade econômica em caráter subsidiário pelo próprio Estado (art. 5º, II, decreto-lei 200/67); e (ii) a segunda, para o exercício do controle societário, como forma de organização administrativa dos grupos (arts. 251 a 253, LSA)8.

Enquanto o decreto-lei 200/67 prevê a constituição de empresa pública tendo como único sócio um agente público, a lei 6.604/76 prevê a constituição da subsidiária integral. Nenhuma das duas hipóteses, no entanto, é direcionada à limitação da responsabilidade pessoal do pequeno/médio empresário, sendo essa a inovação trazida pela SLU.

Conforme Gonçalves Neto, a sociedade unipessoal de responsabilidade limitada e a empresa individual de responsabilidade limitada fazem parte de um mesmo fenômeno: "a utilidade jurídico-econômica de conter os riscos dos negócios da pessoa natural que atua no pequeno e no médio comércio sem parcerias"9.

Diante da mesma utilidade jurídico-econômica, e não apresentando os dois principais entraves da EIRELI (limitação de uma EIRELI por pessoa natural e capital social mínimo), a SLU, a partir de sua entrada no sistema jurídico brasileiro, assume o papel que antes era da EIRELI, de modo que esta segunda forma de exercício da atividade empresarial fica em segundo plano.

O mapa de empresas elaborado pelo Ministério da Economia demonstra que, em 2020, houve uma redução de -32,9% na constituição de EIRELIS se comparado com o ano de 2019, enquanto a sociedade empresária limitada teve um aumento de 39,5% se comparado ao ano de 201910.

Muito embora a sociedade empresária limitada englobe não apenas a unipessoal, constatou-se, já em 2020, um aumento no número de constituição dessas sociedades, sendo que, por outro lado, o número de novas EIRELIS reduziu significativamente.

Porém, se SLU e EIRELI possuem utilidade jurídico-econômica semelhante, tendo a primeira vantagens em relação a esta, de modo que a tendência era a SLU substituir gradativamente a EIRELI, fato é que esta continuou a existir no mundo jurídico, coexistindo as duas formas de exploração da atividade empresária.

4. Lei do Ambiente de Negócios

Apesar da SLU ter se apresentado como um prenúncio da extinção das EIRELIS, já que aquela resolvia as duas principais dificuldades para a criação destas (capital social mínimo e limitação de uma EIRELI por pessoa natural), não havia no ordenamento jurídico, de forma expressa, nenhum dispositivo extinguindo as EIRELIS.

Foi com a Lei do Ambiente de Negócios, cujos efeitos foram imediatos (art. 58, V) na data da entrada em vigor (26/08/21), que a EIRELI foi extinta. Com efeito, o art. 41 da LAN prevê que as EIRELIS existentes na data da entrada em vigor da Lei seriam transformadas em SLU, "independentemente de qualquer alteração em seu ato constitutivo". O parágrafo único deste mesmo artigo (art. 41), estabelece que caberia ao DREI disciplinar a transformação das EIRELIS em SLUs.

Em que pese os arts. 44, VI, e 980-A, ambos do Código Civil, tenham continuado vigentes mesmo após essa alteração legislativa, já se entendia pela revogação tácita dessas normas, considerando que o art. 41 da lei 14.195/21 é totalmente incompatível com a manutenção da EIRELI.

A LAN é oriunda do Projeto de Lei de Conversão da MP 1.040/21 (PLV 15, 2021), o qual tinha previsão expressa de revogação do art. 44, VI, e do art. 980-A, ambos do Código Civil, no art. 57, inciso XXIX, alíneas 'a' e 'e'. Porém, quando a Lei foi para a análise da presidência da República, o artigo contendo a revogação das referidas normas foi vetado, já que abordava outros assuntos do Código Civil que a Presidência entendia que deveriam ser vetados, como o registro das sociedades simples (art. 988) e a constituição de filial por sociedades simples (art. 1.000).

Como não é possível veto parcial de artigo e alínea11, todo o dispositivo foi vetado, podendo-se aferir, no entanto, que se desejava, de fato, extinguir as EIRELIS, tanto que o art. 41 foi mantido.

Considerando a insegurança jurídica na manutenção dos arts. 44, VI, e 980-A, ambos do Código Civil, bem como a redação do art. 41, parágrafo único, da LAN, o DREI apresentou proposta de MP para revogação expressa dos referidos artigos.

Para tanto, o DREI emitiu o Ofício Circular SEI 3510/21/ME, de 09/09/21, por meio do qual manifestou opinião sobre o art. 41 da lei 14.195/21, aduzindo ter ocorrido a revogação tácita dos arts. 44, VI, e 980-A, e parágrafos, ambos do Código Civil.

A revogação seria tácita por incompatibilidade do art. 41 da LAN com a manutenção dos artigos do Código Civil que disciplinavam as características e natureza da EIRELI. Isso porque o art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prevê que "a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior".

A controvérsia foi sanada em 27/12/21, data na qual foi publicada a MP 1.085/21, muito divulgada na parte que criou o sistema eletrônico dos registros públicos, mas pouco conhecida na parte que revogou expressamente os dispositivos do Código Civil que tratavam da EIRELI. Dessa forma, desde a publicação da MP 1.085/21, a EIRELI foi expressamente extinta de nosso ordenamento jurídico.

Cabe referir que, no Ofício Circular SEI 3510/21/ME, o DREI emitiu orientação para as Juntas Comerciais para que não arquivassem a constituição de novas EIRELIS, devendo ser informado ao usuário sobre a extinção desta forma de empresário individual e sobre a nova espécie de sociedade limitada com apenas um sócio.

A situação que se tem hoje é a existência de EIRELIS que foram constituídas antes de sua extinção no ordenamento jurídico, não sendo adequado o registro de novas EIRELIS, devendo-se optar, ao revés, pelo registro de uma SLU.

Sobre os números, os dados do mapa de empresas demonstram que, enquanto em 2019 tinham mais EIRELIS sendo constituídas do que sociedades limitadas, no percentual de 46% a mais, em 2020, o cenário mudou, tendo 98% mais SLUs constituídas do que EIRELIS. Já em 2021, considerando o período anterior à revogação tácita da EIRELI com a Lei do Ambiente de Negócios, a diferença chegou a 250%12.

5. Conclusão

Apesar de sua importância jurídico-econômica, a EIRELI sempre teve um impedimento considerável para sua utilização em larga escala, em decorrência da exigência de integralização de capital social mínimo correspondente a 100 (cem) salários-mínimos e da impossibilidade de uma mesma pessoa natural constituir mais de uma EIRELI.

Neste contexto, a Lei da Liberdade Econômica, quando da criação da SLU, já representou um movimento considerável para a extinção das EIRELIS, já que a SLU veio preencher o espaço antes destinado às EIRELIS, só que sem as exigências destas.

Pode-se dizer, assim, que a LAN apenas sedimentou o que já estava ocorrendo desde 2019: a diminuição da utilização da EIRELI como uma opção viável para o exercício da atividade empresária por uma pessoa natural que não queria ter um sócio.

Nada obstante a sua extinção expressa e formal do sistema jurídico, espera-se que a EIRELI não caia no esquecimento dos operadores do direito, uma vez que representou, nos dez anos de sua existência, importante solução para os pequenos e médios negócios.

_________

1 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.  p. 123.

2 Neste sentido, o Enunciado nº 468, aprovado na V Jornada de Direito Civil (2011), dispõe que "A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) não é sociedade, mas novo ente jurídico personificado". Também o Enunciado nº 3, aprovado na I Jornada de Direito Comercial (2012), prevê que "A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada- EIRELI não é sociedade unipessoal, mas um novo ente, distinto da pessoa do empresário e da sociedade empresária".

3 Cabe referir que o STF, ao julgar a ADI 4637 - DF, entendeu pela constitucionalidade da exigência de capital social mínimo, não tendo qualquer ofensa à livre iniciativa prevista no art. 170 da CF/88. A ADI foi julgada pela Corte Suprema em 27/11/2020.

4 Muito se discutiu sobre a possibilidade da titularidade da EIRELI pertencer a pessoas jurídicas. Esta controvérsia jurídica não é objeto deste ensaio. Importa dizer aqui, no entanto, que a vedação de mais de uma EIRELI por uma mesma pessoa natural é incontroversa. Inclusive, o DREI, na Instrução Normativa 81 de 10/06/2018, reforçou que "Quando o titular da EIRELI for pessoa natural deverá constar do corpo do ato constitutivo cláusula com a declaração de que o seu constituinte não figura em nenhuma outra empresa dessa modalidade" (item 1.2).

5 Calixto Salomão Filho ensina que: "Ainda que cronologicamente não tenha sido a primeira a reconhecê-la (na Europa, por exemplo, à parte a experiência do Lichtenstein, a Dinamarca passou a admitir a sociedade unipessoal em 1973), foi na Alemanha que o instituto teve a maior elaboração doutrinária" SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria crítico-estruturalista do direito comercial. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2015. p. 163. Nota de rodapé 26.

6 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 122.

7 O mesmo não acontece com o artigo que define o conceito de sociedade (art. 981), já que menciona "as pessoas": "Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados".

8 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 124.

9 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 122.

10 Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/mapa-de-empresas/boletins/mapa-de-empresas-boletim-do-3o-quadrimestre-de-2020.pdf. Acesso em: 18/05/2022.

11 O art. 66, § 2º, da CF/88 dispõe que "o veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea", de modo que palavras ou períodos não são passíveis de veto.

12 Disponível: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/mapa-de-empresas/boletins/mapa-de-empresas-boletim-do-3o-quadrimestre-de-2021.pdf. Acesso em 18/05/2022.

Andressa Garcia

Andressa Garcia

Mestre em Direito Privado pela UFRGS. Advogada sócia no Zugno e Peña Advogados, com atuação na área de Resolução de Disputas, notadamente em litígios envolvendo contratos empresariais, operações societárias (M&A), dissolução parcial de sociedades, anulação de assembleias gerais e recuperação judicial de empresas. Membro do Grupo Executivo da Câmara de Arbitragem da Federasul (CAF), do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) e da Comissão Especial de Arbitragem da OAB/RS.

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