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Não recepção constitucional dos crimes de charlatanismo e curandeirismo

A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Atualizado às 14:40

Os crimes de charlatanismo e curandeirismo estão insculpidos nos arts. 283, parágrafo único; e, 284, incisos I, II e III e parágrafo único, do CP brasileiro, in verbis:

Art. 283 - Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

Art. 284 - Exercer o curandeirismo:

- prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;

II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III - fazendo diagnósticos:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos.

Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.

Os crimes ora em debate encontram em seu cerne inúmeros problemas que culminam, na prática, em inconstitucionalidade, bem como demonstram total incompatibilidade com o regime constitucional instituído em 1988.

Tratam-se de tipos penais formulados pelo legislador brasileiro dos idos de 1940, demasiadamente abertos, que não conceituam, na prática, o que seria o charlatanismo e o curandeirismo, porém, pune determinadas condutas.

O problema é maior do que podemos imaginar!

A pratica de medicina chinesa (acupuntura, por exemplo) e tratamentos holísticos alternativos se enquadrariam neste conceito?

Seriam os famosos Florais de Bach, prática de curandeirismo?

E a prática de manipulação de substâncias por farmácias destinadas apenas a este fim, estariam sujeitos os donos destes estabelecimentos ao crime de curandeirismo?

Coaches, psicólogos e psiquiatras que aplicam hipnose e regressão, seriam curandeiros ou charlatões?

Inserido no capítulo dos crimes contra a saúde, o leitor desatento pode ser levado a entender que os verbos descritos no tipo penal buscam punir aquele que exerce ilegalmente a medicina, porém, é possível verificar que o tipo penal do art. 282, do CP já atende a esta finalidade.

Se por outro lado, falar-se em punir o engodo, o art. 171, do CP, que tipifica o crime de estelionato, vemos que já está atendido o anseio punitivo estatal.

A bem da realidade, os crimes de charlatanismo e curandeirismo são resquícios abomináveis do CP/90, que incriminava não só o curandeiro, mas também o feiticeiro, juntamente com espiritas e cartomantes.

Vejamos:

Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria, a pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos.

Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica.

Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do denominado curandeiro.

A sociedade brasileira de 1940, não era tão diferente da sociedade de 1890, por tais razões, fez-se inserir os crimes de curandeirismo e charlatanismo no CP e que até hoje estão em vigência.

Para aquela época, vamos imaginar, por mero exercício retórico, que estas condutas até poderiam, de fato, ser reprováveis, porém, com a evolução da sociedade, do pensamento, da filosofia, da religião, da politica, da ciência, dos costumes e dos valores, não são mais aceitáveis tais pretensões punitivas.

Hoje ainda enfrentamos diversos problemas relacionados à intolerância religiosa, desde piadas desagradáveis até injúrias, ameaças, agressões físicas e destruição de terreiros (locais destinados à prática religiosa) e imagens sagradas.

Mesmo que o preconceito ainda continue enraizado em alguns rincões da sociedade brasileira, não devemos nos manter inertes diante de uma previsão legal que nos remete a um pensamento retrógrado, inquisitivo (sim, que remonta à Santa

Inquisição), preconceituoso e racista, pois acima de tudo, hoje em dia, os mais afetados pela indevida criminalização são os praticantes de religiões de matrizes africanas, como Umbanda e Candomblé.

Racista sim, pois não se vê a aplicação de tais condutas penais a praticantes de religiões de matrizes europeias ou asiáticas, como o Cristianismo, Catolicismo, Budismo e Hinduísmo, que através da fé também praticam tratamentos, curas e milagres, e mesmo que se aplicasse, seria uma pratica igualmente não recepcionada pela Constituição.

A CF/88, no art. 5º, VI, estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.

O inciso VII afirma ser assegurado, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.

O inciso VII do art. 5º, estipula que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Portanto, diante das previsões constitucionais, verifica-se que os arts. 283 e 284, do CP, não foram recepcionados pela CF/88, justamente por adotarem em seu pano de fundo, tratamento penal discriminatório em razão de crença e religião.

Ferem, outrossim, o princípio da intervenção mínima do Estado, afinal, quem é o Estado para dizer ou não que tal ou qual crença tem ou não credibilidade ou que a fé não tem poder?

Pessoas que abusam da bondade e/ou da fragilidade de outrem, não só podem, como devem ser punidas com rigor, para isto já existem tipos penais próprios em nosso ordenamento, no entanto, não se pode manter criminalizada, indiscriminadamente, práticas religiosas, espirituais e ritualísticas, pelo simples fato de existirem e/ou de serem praticadas.

O meu Deus não é melhor que o seu Deus e vice-versa

Já passou da hora de nossa Suprema Corte se manifestar a respeito da não recepção de tais práticas delitivas em nosso ordenamento jurídico e interromper, imediatamente o constrangimento ilegal que algumas pessoas vivem diariamente somente pelo exercício da fé.

É necessário o poder Público se preocupar mais em efetivar políticas públicas, sociais, educativas e inclusivas, com o escopo de melhor informar a população que a prática de uma religião não pode ser criminalizada, nem seus praticantes

discriminados, pois a essência de toda e qualquer religião conhecida e bem praticada é o amor universal.

Por fim, encerro o presente artigo citando um dos patronos do espiritismo no Brasil, Chico Xavier:

"O Cristo não pediu muita coisa, não exigiu que as pessoas escalassem o Everest ou fizessem grandes sacrifícios. Ele só pediu que nos amássemos uns aos outros".

Charles dos Santos Cabral Rocha

VIP Charles dos Santos Cabral Rocha

Advogado em São Paulo, Pós-Graduando em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS, em Direito Tributário pela PUC/RS e em Direito Empresarial pela FGV/SP.

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