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Estupro. Aborto. Barbárie. Dilemas de uma sociedade desacostumada com a lei

O aborto decorrente do estupro. Como fazer cumprir a Lei em uma sociedade que não está se acostumando a não cumpri-la?

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Atualizado em 24 de junho de 2022 14:13

Segundo o art. 128, II, do Código Penal brasileiro: 

"Não se pune o aborto praticado por médico:

[...]

II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal." 

A lei penal, de 1940, assim decidiu. Não é uma escolha minha, não é uma escolha sua, mas da lei.

Através do chamado 'princípio da investidura', cabe ao Estado, por intermédio do Juiz, uma vez investido no cargo, em seu exercício pleno, empreender a chamada "função jurisdicional", sempre de acordo com o que o a lei prescreve, indica, determina, nunca fora de tais limites. 

Quando um Magistrado, investido de tal Poder Estatal, decide simplesmente desobedecer a lei, impõe-se uma imediata insegurança jurídica, sobrepondo conceitos individuais - morais, religiosos, pessoais -à norma posta e legítima. 

Tal percurso é perigoso sob o ponto de vista da nossa Carta Republicana, que estrutura a nação brasileira por intermédio dos pilares calcados a partir de um Estado Democrático regido por normas de Direito. 

No caso recente, envolvendo a importante Magistratura do Estado de Santa Catarina, não muito diferente do que ocorreu no Espírito Santo/Recife há exatos dois anos atrás , vivenciamos uma barbárie contra quem não tem capacidade de defesa. E isso, em um Estado Democrático de Direito é inadmissível. 

O retratado diálogo da magistrada com a criança  é absolutamente surreal e manipulador. Uma tentativa de convencimento de que a vítima não é "tão vítima" assim, chegando ao absurdo de mencionar a palavra "pai". Mas, retornar à lei é necessário. 

O Código Penal não exige qualquer autorização judicial. Já há um salvo conduto na própria lei para que o médico - exclusivamente este - pratique o ato. 

O Ministério da Saúde , em importante publicação a respeito, assim destaca:

"Nessa hipótese, o abortamento é um fato típico, ou seja, está previsto no tipo penal, mas não é criminoso, porque não é antijurídico. Trata-se do chamado "aborto sentimental" ou "aborto e'tico" ou "aborto humanitário", uma das duas hipóteses de "aborto legal", ou seja, de "aborto não criminoso". Nesse caso, exige-se o consentimento da mulher que foi estuprada ou, quando incapaz, de seu representante legal. E, como o sistema penal considera lícita e não criminosa a prática do abortamento nessa situação, é direito da mulher interromper a gestação decorrente de estupro.

[...]

Por conseguinte, se o nosso sistema jurídico permite a prática do abortamento ético, considerando-o absolutamente lícito, seria um absurdo incompreensível negar assistência médica à mulher que pretende interromper uma gravidez decorrente de crime sexual, punindo o médico que pratica o abortamento a pedido dessa mulher e obrigando-a a suportar os riscos, inclusive de morte, de um abortamento clandestino, marginal e inseguro, praticado em local inadequado, sem as necessárias e imprescindíveis condições técnicas, em condições precárias de higiene, sem assistência psicológica, sem acompanhamento profissional e sem qualquer respeito à dignidade humana.

[...]

Não se pode permitir o abortamento legal, sentimental, ético ou humanitário, considerando-o lícito, e, ao mesmo tempo, abandonar a mulher que deseja praticá-lo. O aborto pós-estupro é um direito da mulher garantido pelas normas internacionais de direitos humanos, pela Constituição Federal e, especificamente, pela legislação penal. Aliás, vários documentos internacionais de Direitos Humanos, que tem natureza constitucional, de acordo com o nosso ordenamento juri'dico, afirmam que a mulher tem o direito de assistência médica para a prática do abortamento não criminoso." (sem destaques no original).

Não cabe, dentro da norma técnico-jurídica, avaliar a moralidade ou a eticidade do aborto nas condições em que o Código Penal prevê. A não aceitação pessoal quanto ao texto de uma lei não concede o direito ao seu descumprimento. 

O processo legislativo ocorre no parlamento, e não no Judiciário ou, ainda, na moral individual de cada cidadão, mas da coletividade. 

Segundo dados do Ministério Público do Estado do Paraná referentes ao ano de 2022 , o Brasil registrou 66 mil vítimas de estupro, maior índice desde que o estudo começou a ser feito em 2007, sendo que a "a maioria das vítimas (53,8%) foram meninas de até 13 anos." 

Esse número, representativo da violência contra a criança, clama por medidas efetivas, concretas e reais no campo penal, socioeducacional, cultural, familiar, estrutural e, por óbvio, da saúde pública. 

Não é crível que, sob o ponto de vista da saúde pública, em pleno século XXI, um ato estatal possa impingir tamanho sofrimento a uma criança, quando esta necessita, em caráter imediato, ingressar em um programa de acolhimento multiprofissional e dentro das mais diversas especialidades, envolvendo atendimento obstétrico, pediátrico, psiquiátrico, psicológico e social. 

No campo de estudo do Direito Médico, resolver-se-ia a questão de forma bastante simples, legal e humanizada - dentro do possível para um assunto, diante da própria natureza, indigesto - sem nos afastarmos da origem do problema: o estupro, a violência, a brutalidade.

Neste contexto, cabe trazer à baila importante parecer proferido pelo culto Departamento Jurídico do Egrégio Conselho Federal de Medicina  a respeito do tema, cujas conclusões assim expressam, de forma bastante incisiva: 

"A exigência de autorização judicial ou de registro de ocorrência (RO) em delegacia, para a prática de aborto em caso de estupro, não compõe o tipo penal permissivo contido no inciso II do art. 128 do Código Penal Brasileiro, conforme precedentes do Superior Tribunal Federal acima apontados. Isso significa que o STF tem decisões no sentido de que não configurará o crime de aborto para o médico que realiza o ato sem a apresentação do Boletim de Ocorrência.

[...]

Ademais, o médico e os outros profissionais de saúde não devem temer possíveis consequências jurídicas caso revele-se, posteriormente, que a gravidez não foi resultado de violência sexual.

Segundo o Código Penal, art. 20, § 1º, 'é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima'." (sem destaques no original). 

Portanto, duas são as considerações necessárias neste tema: a primeira quanto a competência para a realização do aborto que, segundo a própria norma penal, é exclusiva do profissional médico. Noutro giro, o órgão máximo da ética médica já se manifestou quanto a licitude da realização do procedimento, quando decorrente de estupro, independentemente do registro da ocorrência policial, licença ou alvará judicial. 

O próprio Código de Ética Médica, instituído pela Resolução 2217/18 do E. Conselho Federal de Medicina, atribui como conduta proibitiva profissional: 

"Art. 15. Descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos ou de tecidos, esterilização, fecundação artificial, abortamento, manipulação ou terapia genética." (sem destaques no original). 

Portanto, antes da vítima ter que submeter a enfrentamentos judiciais e inquirições que beiram a surrealidade diante da brutalidade do estupro e da consequente gravidez, a norma indica como sendo uma responsabilidade médica realizar o aborto, de acordo com as regras de conduta ético-profissionais. 

Não é exagero destacar que, quando do contexto do julgamento envolvendo a ADPF 54 pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, em que houve - em apertada síntese - o reconhecimento da anencefalia como uma síndrome incompatível com a vida e, portanto, autorizativa do aborto, o próprio E. Conselho Federal de Medicina editou a resolução 1989/12, cujo art. 3º, parágrafos 5º e 6º assim dispõem, in verbis: 

"Art. 3º.[omissis]

[...]

§5º Tanto a gestante que optar pela manutenção da gravidez quanto a que optar por sua interrupção receberão, se assim o desejarem, assistência de equipe multiprofissional nos locais onde houver disponibilidade.

§6º A antecipação terapêutica do parto pode ser realizada apenas em hospital que disponha de estrutura adequada ao tratamento de complicações eventuais, inerentes aos respectivos procedimentos." (sem destaques no original). 

Veja-se que a humanização de tal atendimento, naturalmente complexo, se inicia pela sutil nomenclatura utilizada pelo órgão ético: "antecipação terapêutica do parto". 

Por fim, cabe o destaque, ainda, quanto ao fato de que, aos médicos, há possibilidades que resguardam a sua própria convicção diante de situações como a ora em debate. 

A Resolução 2232/19 do E. Conselho Federal de Medicina possibilita a adoção da chamada "objeção de consciência", em que o médico, diante de situações conflitantes internas, como a realização de um aborto em uma criança, possa deixar de realizar o ato que a Lei assim o designa, transferindo-a aos cuidados de outro profissional, sempre com a atenção, o carinho e a humanização devidas.

Como posto, não se insere nas competências do E. Poder Judiciário "autorizar" ou "não autorizar" previamente o aborto quando inserido nas devidas condições legais. A norma já informa como, quando e por quem isso deve ser feito. 

Aliás, cabe destacar que, diante das condições biológicas da criança, poder-se-ia, inclusive subsumir a situação ao permissivo legal contido no inciso I do art. 128 do Código Penal, quando "não há outro meio de salvar a vida da gestante", conhecido como "aborto terapêutico". 

É inimaginável o sofrimento impingido à pequena menina que teve a sua vida roubada, e depois inquirida por uma Magistrada com visão, digamos, "utilitarista": "e tu consegue se imaginar ficar até o final da gestação? Você acha que o pai do bebê concordaria com a entrega pra adoção?" A resposta é: não, o útero da pequena criança não pode servir de criadouro a um bebê para adoção, e isso não é uma questão a ser resolvida pela moral, mas pela lei e pela medicina. Simples assim. 

À pequena menina, nos cabe pedir perdão, na medida em falhamos com ela em duas oportunidades, enquanto sociedade. 

Mas, tentemos voltar à lei. Simplesmente à lei... e muito se resolverá.

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https://www.migalhas.com.br/quentes/368253/juiza-e-mp-induzem-menina-de-11-anos-estuprada-a-manter-gestacao [acesso em 22 de junho de 2022

https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2022/06/21/aborto-legal-ha-2-anos-caso-de-menina-de-10-anos-gravida-apos-estupro-pelo-tio-chocou-o-pais.ghtml [acesso em 22 de junho de 2022

https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/ [acesso em 21 de junho de 2022

https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/aspectos_juridicos_atendimento_vitimas_violencia_2ed.pdf [acesso em 22 de junho de 2022

https://crianca.mppr.mp.br/2020/03/233/ESTATISTICAS-Estupro-bate-recorde-e-maioria-das-vitimas-sao-meninas-de-ate-13-anos.html [acesso em 21 de junho de 2022.

https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/despachos/BR/2017/790_2017.pdf [acesso em 22 de junho de 2022

 

Osvaldo Simonelli

VIP Osvaldo Simonelli

Advogado e Professor. Especialista em Direito Médico Mestre em Ciências da Saúde. Pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito Público. Idealizador do Programa de Formação em Direito Médico.

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