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O vanguardismo do princípio da insignificância

Reflexões sobre o princípio que resguarda a dignidade da pessoa humana da Constituição Cidadã, além de colocar em xeque a utilização desse princípio no direito penal da contemporaneidade.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Atualizado às 14:23

O princípio da insignificância foi descrito inicialmente no direito romano e tinha como axiologia os dizeres "minimus non curat pretor"- o pretor não cuidava, de modo geral, de causas ou delitos de bagatela. Entretanto, para muitos historiadores, esse princípio protetor iniciou-se, após a Primeira Guerra Mundial na Europa, pois houve um crescimento exponencial de crimes contra o patrimônio devido à situação econômica deficitária da população. Nessa toada, independentemente da origem da insignificância dos crimes, faz-se necessário esclarecer que os ideais positivistas do direito penal, que se pautavam na legalidade estrita dos crimes, foram sendo substituídos por teleologias garantistas que protegiam os hipossuficientes e preconizavam a dignidade da pessoa humana. Segundo o filósofo Montesquieu, "Quando um povo é virtuoso, bastam poucas penas".

Ademais, diante do exposto sobre a origem do princípio da insignificância, ao se trazer para a contemporaneidade, observa-se que crises humanitárias sempre existiram e existirão futuramente. Por conseguinte, grande parte da população, quando submetida a subnutrição, falta de moradia e de condições mínimas existencialmente fica à mercê de políticas públicas que, por muitas vezes, são insuficientes. Ou seja, para muitos pais ou mães da família, comprar um alimento não é opção e, infelizmente, iniciam furtos de valores irrisórios. Nesse prisma, para os positivistas supracitados, o direito penal deve punir com estrita legalidade preestabelecida, sem exceções, todavia, para os garantistas, deveria haver descriminalização de certas condutas. Nesse impasse de valores, foi fundamentado pelo STF que a utilização do princípio da insignificância deve-se pautar em condutas de baixa reprovabilidade de comportamento, mínima ofensividade, nenhuma periculosidade social e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Outrossim, as prerrogativas de se utilizar tal princípio promovem muitos benefícios: para a população individualmente, para o desafogamento do Judiciário e para o sistema carcerário. Nesse ângulo, para exemplificar a carência de se utilizar o princípio descrito, pode - se citar os incontáveis julgamentos desnecessários que chegam ao STJ e STF sobre furtos de arroz, macarrão, produtos de higiene pessoal, entre outros, com encarceramento injusto e desproporcional. Nessa linha de pensamento, é cediço que a utilização principiológica não tem a finalidade de descriminalizar crimes específicos como contrabando, contra a administração pública, ambientais, de falsificação, tráfico de drogas e violentos, destarte, a utilização do princípio da insignificância deve-se nortear pela razoabilidade, proporcionalidade e especificidade de cada caso concreto com análise pontual pelo magistrado.

Nesse contexto expositivo, apesar de toda a expansão jurisprudencial sobre o tema, muitos tribunais brasileiros de primeira instância não estão utilizando a insignificância para descriminalizar certas condutas-fato que coaduna com a necessidade de harmonização de julgados e precedentes, com o intuito de vincular e promover a segurança jurídica erga omnes. Segundo o defensor público Federal Daniel Macedo "o objetivo de se propor a súmula vinculante ao STF é evitar que diferentes juízos, país afora, continuem a negar sistematicamente, de forma genérica e sem analisar o caso concreto o enquadramento neste princípio" Ou seja, não basta que somente os tribunais superiores se utilizem desta ferramenta teleológica humanística, pois o poder Judiciário é uno e deve ser harmônico em seus julgados.

Para finalizar, é cediço que o magistrado tem competência para conhecer e aplicar o princípio da insignificância, mas o policial que está na linha de frente prendendo as pessoas, não tem essa capacidade. Explicando melhor, é dever da polícia aplicar a tipicidade formal sem exceções, pois a segurança pública é dever primordial explícito na CF/88. Entretanto, grande controvérsia dos tribunais superiores se posta quanto ao poder do delegado de polícia afastar a tipicidade material de um caso específico e de notória insignificância. Para o STJ, o delegado somente é o guardião da tipicidade formal, sendo que não pode afastar a tipicidade material, mesmo em casos específicos. Ou seja, se um caso de furto de uma caneta esferográfica, por exemplo, chegar na delegacia, o delegado deve prender o indivíduo ou soltar utilizando-se da exclusão da tipicidade material? Destarte, poder-se-ia impedir muitas ações penais e arrefecer muitos atos processuais penais, se for aceita a discricionariedade de ação na delegacia de polícia, diante de casos pontuais. Todavia, esse tema ainda não está pacificado na doutrina e nem na jurisprudência atual.

Desse modo, é importante esclarecer que toda a argumentação acima descortina a problemática da pobreza extrema e da urgência da implantação de políticas públicas pelos Estados. Nessa perspectiva, se essas sujeições não estivessem ocorrendo expressivamente, a olhos nus, não haveria necessidade de se discutir sobre a descriminalização de furtos de bens de valores irrisórios. Ou seja, esse artigo tenta esclarecer sobre um assunto complexo humanitário que ainda não pactua com um consenso doutrinário, podendo ser apontado como a ponta do iceberg da problemática da administração de um país.

Joseane de Menezes Condé

VIP Joseane de Menezes Condé

Discente de Direito em Piracicaba, estagiária do TRT 15 e é formada em Medicina Veterinária pela Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve para o Jornal Gazeta Piracicaba .

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