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O poder moderador e o terraplanismo hermenêutico

Se na evolução histórica do direito constitucional brasileiro é mais do que evidente a inexistência atual de um poder moderador (cometido a quem quer que seja), em termos de direito comparado a mera conjectura de um tal atributo às Forças Armadas, em países democráticos, seria no mínimo algo constrangedor.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Atualizado às 14:25

A Constituição da República confere às Forças Armadas o papel de poder moderador? A resposta, direta e reta, é: não!   

E se for feito um esforço hermenêutico, salto triplo twist carpado? A resposta segue a mesma: não! 

Sem qualquer margem a dúvidas, disso bem o sabem os constitucionalistas e, de resto, a comunidade jurídica isenta. 

Uai? Mas há um ou outro texto defendendo... 

Não são textos jurídicos propriamente ditos. Não são científicos, intelectualmente honestos, com inspiração e suporte nas ferramentas das ciências e hermenêutica jurídicas. Trata-se de textos juridiformes, fruto de uma advocacia inconfessa, consultoria informal, que se prestam aos interesses concretos próprios ou de terceiros, ainda que eventualmente firmados por quem tenha alguma capacitação e estofo. 

Entre nós, o poder moderador que um dia existiu vinha previsto na Constituição Imperial de 1824. Era titularizado pelo Imperador, no contexto do Brasil monárquico, com escopo eminentemente político, sem qualquer compromisso democrático. 

Seu art. 10 dizia: "Os Poderes Políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial". Havia um capítulo específico, destinado a destrinchá-lo (cap. I do título 5º); todas as atribuições ali contidas eram essencialmente de natureza política. 

Qualquer pessoa alfabetizada pode detectar abissal diferença daquela estrutura imperial, estabelecida há 200 anos, com a que vem expressa na Constituição Republicana de 1988: "Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".  Vamos contar os poderes? Um, dois... três! Em seu título IV os três poderes são esmiuçados nos capítulos respectivos. Não há "poder moderador", embora haja estruturas estatais - muito bem definidas - que mesmo sem representarem um "poder", mantêm aspectos de autonomia (MP, Tribunal de Contas...).   

Seria sério supor ou interpretar que uma constituição analítica como a nossa traria em seu bojo um "quarto poder", construído por desejosas inferências? 

Esses poucos textos advocatícios que reconhecem um "poder da república" dentro do art. 142 da Constituição da República fazem lembrar os textos "científicos" que "comprovam" que a terra é plana.  

Diz o art. 142, CF/88: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes [três!], da lei e da ordem". 

O art. 142 mencionado revela que as Forças Armadas devem agir em garantia dos poderes constitucionais e em defesa da lei e da ordem. E são apenas três os "poderes constitucionais", conforme expresso no texto constitucional! Administrativamente, estão elas hierarquizadas sob o chefe do Executivo; funcionalmente, submetidas aos três poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - na missão de defesa da lei e da ordem.  

Se na evolução histórica do direito constitucional brasileiro é mais do que evidente a inexistência atual de um poder moderador (cometido a quem quer que seja), em termos de direito comparado a mera conjectura de um tal atributo às Forças Armadas, em países democráticos, seria no mínimo algo constrangedor.  

Enfim, para higidez de nosso regime democrático não há qualquer no sentido em arvorar as Forças Armadas a uma função claramente distorcida, apartada de seu papel constitucional. Em sua relevante missão de defesa da pátria e de garantia da lei e da ordem (em obediência estrita àquilo que ordenado pelos três poderes, em seus respectivos âmbitos), há evidente e essencial refração "política", muito ao contrário do que se entende conceitualmente como inerente ao poder moderador.   

Arquitetar textos constitucionais imaginários para conferir, onde não existe, "status" de poder - que pressupõe estruturas "independentes" e "harmônica entre si" -, e ao mesmo tempo desconsiderar textos constitucionais expressos (por exemplo, aquele que estabelece o STF como "guardião precípuo da Constituição", seu intérprete final), não é exercício de interpretação jurídica. É exposição de vontades, de preferências, de pretensões ou de sonhos. O voluntarismo quimérico não é amigo da ciência, da racionalidade ou das letras; prefere e procura o místico que melhor lhe atenda.  

Uma pessoa leiga (ou até de áreas inespecíficas da ciência) defender o terraplanismo em pleno século XXI é desalentador, mas vá lá.  Para um astrônomo, complica. E muito. É inconcebível. Uma pessoa leiga (ou até juridicamente letrada) embarcar no ilusionismo do triplo carpado hermenêutico do poder moderador é triste. Para um constitucionalista, então... 

Essa estória de poder moderador tem focinho, corpo, patas, chifres e e rabo de desculpa esfarrapada para acobertar golpismos e atos antidemocráticos. Tem cheiro de naftalina com pitadas de enxofre. Contem outra. 

Paulo Calmon Nogueira da Gama

VIP Paulo Calmon Nogueira da Gama

Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Desembargador

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