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Penhora de milhas aéreas

Uma análise da possibilidade de constrição de milhas aéreas em confronto com o princípio da efetividade.

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Atualizado às 13:15

O art. 6º no CPC/15 positivou a efetividade como um dos princípios que regem o processo brasileiro. Assim, para além de dizer o direito, o Estado-juiz deve efetivá-lo, com a entrega do bem da vida objeto da lide ao jurisdicionado. 

No entanto, a atividade satisfativa normalmente passa por diversos percalços e incontáveis vezes não é possível encontrar bens no patrimônio dos executados para saldar seus débitos. 

Para facilitar a atividade satisfativa, o art. 139, inciso IV, do CPC indica que incumbe ao juiz "determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária". 

Ainda, o art. 835, inciso XIII, do CPC refere genericamente a possibilidade de penhora sobre "outros direitos" não listados no dispositivo. 

Em razão disto e com fundamento nas diversas alterações no sistema processual implementadas pelo novo CPC, alguns magistrados têm prolatado decisões inovadoras para viabilizar o adimplemento de obrigações em fase de execução. 

Uma dessas inovações é a penhora de pontos de programa de fidelidade, especialmente de milhagens em companhias aéreas, que recentemente tem sido deferida em julgados dos tribunais pátrios. 

Neste sentido, o TJ do DF recentemente decidiu que os pontos de programas de fidelidade possuem natureza patrimonial e, por isso, podem ser constritos. Veja-se: 

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA DE PONTOS EM PROGRAMA DE FIDELIDADE. MILHAS AÉREAS. NATUREZA CREDITÍCIA. POSSIBILIDADE. 

1. A concessão de expedição de ofício à operadoras de cartão de crédito, com a finalidade de penhora de pontos de programa de fidelidade, visa compelir o devedor ao pagamento do débito exequendo. 

2. O programa de fidelidade oferecido por companhias aéreas e por operadoras de cartões de crédito constituem moeda para troca por passagens aéreas, aquisição de produtos ou serviços e podem ser vendidos livremente. 

3. Os pontos de fidelidade de operadoras de cartão de crédito possuem natureza patrimonial e podem ser penhorados como outros direitos, conforme previsão do artigo 835, XIII, do Código de Processo Civil. 

4. Recurso conhecido e provido. 

(Acórdão 1321641, 07380984620208070000, Relator: MARIA DE LOURDES ABREU, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 24/2/2021, publicado no PJe: 10/3/2021. Pág.: Sem Página Cadastrada.) 

Também, decidiu o TRT da 10ª Região que: 

AGRAVO DE PETIÇÃO. DILIGÊNCIA PARA INVESTIGAÇÃO DO PATRIMÔNIO DO DEVEDOR. EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO PARA AVERIGUAÇÃO SOBRE A EXISTÊNCIA DE MILHAS/PONTOS DE PROGRAMAS DE FIDELIDADE EM NOME DOS EXECUTADOS PARA EFEITO DE PENHORA. EFETIVAÇÃO. DEVIDA. A satisfação da execução é, ao fim e ao cabo, o objetivo do processo, pois nada adianta ao jurisdicionado ter seu direito reconhecido se não pode ver cumprido o que foi determinado pela Justiça na sentença de conhecimento. Nesse contexto, a investigação patrimonial não está adstrita às ferramentas eletrônicas disponibilizadas ao Judiciário, uma vez que todas as formas permitidas em direito são válidas para a realização do objeto do processo. Embora ainda não haja legislação específica relativa à venda de milhas em nosso ordenamento jurídico, a emissão de passagens aéreas com milhas pertencentes ao cliente fidelizado em favor de terceiros é possível e encontra inclusive previsão nos próprios programas de fidelização, que também prevê a possibilidade de troca milhagens/pontos por vários outros produtos e serviços. É fato também ser cada vez mais frequente o surgimento de agências especializadas em intermediar a compra de milhas para fruição por terceiros, bem como é cada vez mais comum que casais em processo de divórcio passam a ter o direito de dividir, além daqueles mais tradicionais, outros tipos de bens acumulados durante a vida em comum, como é o caso de milhas aéreas, circunstâncias que evidenciam o valor econômico de tal produto. Assim, os "pontos previstos nos saldos de programas de fidelidade de cartões de crédito ou de empresas de aviação (milhagens) dos executados, integram os seus patrimônios pessoais e, portanto, podem responder pelas suas dívidas, conforme preceituam os artigos 855 e seguintes do CPC, que tratam sobre a possibilidade da penhora recair sobre eventuais créditos pertencentes aos devedores" (TRT-2 01119001020045020020 SP, Relator: VALDIR FLORINDO, 6ª Turma - Cadeira 3, Data de Publicação: 01/10/2020), cenário em que, diante da dificuldade enfrentada pela parte para ver satisfeito o seu crédito, bem como a possibilidade, ainda que exígua, de êxito, revela-se viável a diligência requerida pelo exequente. Agravo de petição conhecido e provido. (Processo nº 0000025-43.2014.5.10.0802, Relator Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron, 2ª Turma, Data do Julgamento: 18/05/2022) 

Embora seja inegável o valor patrimonial das milhas, também é fato que a penhora de tais direitos não é tão simples, especialmente do ponto de vista operacional. 

Primeiro, porque os regulamentos dos programas normalmente contêm cláusulas indicando que as milhas são de uso pessoal e intransferível, não podendo ser transferidas a qualquer título. 

Daí se questionar da possibilidade de penhora dos bens, já que gravados com cláusula de inalienabilidade nos ajustes com as companhias administradoras dos programas de fidelidade. 

Para responder o questionamento, necessário perquirir a natureza jurídica dos contratos de fidelidade e programas de milhagem para constatar se a cláusula de inalienabilidade estipulada contratualmente é válida nesses casos. 

Isso porque a cláusula de inalienabilidade só pode ser estipulada em atos de mera liberalidade, consoante dispõe o art. 1.911 do CC/02. Ou seja, para reputá-la válida, é necessário que se entenda que as milhas são liberalidades concedida pelas empresas aéreas aos seus clientes. 

Não parece ser o caso, contudo, de tais programas de milhagens, já que os pontos gerados possuem verdadeira conotação financeira. Tanto é que as próprias companhias operadoras fazem compra de pontos de seus clientes e permitem troca por produtos e serviços. 

Neste sentido, leciona Leonardo Raphael Carvalho de Matos: 

Milhagem não é brinde: é ticket pago antecipadamente, de forma indireta, com direito a uso posterior. As companhias aéreas já embolsaram o pagamento de seu preço, embutido na venda de passagens regulares. 

Tais créditos que, em princípio são de propriedade da companhia aérea, possuem vínculo obrigatório com o contrato principal, que obriga o consumidor (se quiser pontuar) em viajar somente através daquela companhia, em adquirir produtos ou serviços somente com os parceiros da mesma companhia ou com um cartão de crédito emitido por ela (2015, p. 213). 

Não se tratando de bem conferido de forma graciosa aos consumidores, inviável a oposição de cláusula de inalienabilidade para impossibilitar a penhora de tais ativos. 

A segunda restrição que pode ser oposta à constrição de tais bens é a dificuldade para sua operacionalização propriamente dita.  

Surgem, então, os seguintes questionamentos: como deve ser feito o procedimento para bloqueio e transferência dos bens, quais critérios devem ser aferidos na sua avaliação, como se materializaria sua alienação judicial? 

É possível a expedição ofício às companhias administradoras dos programas de milhagem para que bloqueiem os pontos das contas dos clientes executados e aguardem a alienação judicial para, então, transferir os pontos para a conta do arrematante. Ou, ainda, a expedição de ofício para que as próprias companhias convertam em moeda corrente o valor das milhas. São diversas possibilidades. 

Entretanto, caso a penhora de milhas se torne uma praxe no sistema judiciário brasileiro, seria muito plausível a criação de um convênio com as entidades do setor para pesquisa, bloqueio e transferência dos pontos, como já ocorre com tantos outros bens objeto de penhora no poder Judiciário.  

Justamente pelas restrições operacionais e obscuridades quanto à natureza jurídica e econômica dos pontos de programas de fidelidade, muitos juízos têm indeferido as penhoras de tais ativos. Senão vejamos: 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS E SUA ANÁLISE SOB O PRISMA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PROPORCIONALIDADE E DE SEUS MECANISMOS DE CONTROLE, NOMEADAMENTE QUANTO À RELAÇÃO DE PERTINÊNCIA QUE DEVE EXISTIR ENTRE A MEDIDA E A FINALIDADE A SER ALCANÇADA. MEDIDAS ATÍPICAS QUE, NO CASO EM CONCRETO, NÃO SE REVELAM ÚTEIS À SATISFAÇÃO DO CRÉDITO, COMO SÃO AS PESQUISAS PATRIMONIAIS JUNTO A EMPRESAS INTERMEDIADORAS DE SERVIÇO. PENHORA DE MILHAS AÉREAS QUE NÃO PODE SER REALIZADA EM RAZÃO DE NÃO SE TRATAR DE BEM QUE POSSUA VALOR QUE POSSA SER QUANTIFICÁVEL POR CRITÉRIO OBJETIVO, O QUE TORNA INADEQUADA ESSA MEDIDA ATÍPICA. 1. A utilização de medidas executivas atípicas para a busca patrimonial encontra-se limitada pela pertinência da medida em relação à possibilidade de satisfação do crédito exequendo, havendo por se considerar como subsidiárias as medidas atípicas. Análise sob o enfoque do princípio da proporcionalidade e de suas formas de controle. 2. Penhora de milhas aéreas que não se admite em razão da ausência de um critério seguro que permita quantificar o valor desse tipo de bem. 3. Agravo desprovido. Honorários de advogado não fixados. (TJSP; Agravo de Instrumento 2069138-54.2022.8.26.0000; Relator (a):Valentino Aparecido de Andrade; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível -33ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/07/2022; Data de Registro: 05/07/2022) 

EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO PARA A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS DO MERCADO DE FIDELIZAÇÃO - ABEMF - PENHORA DE MILHAS AÉREAS E PONTOS EM CARTÃO DE FIDELIDADE - DESCABIMENTO - Nos programas de fidelidade, nada obstante o interesse econômico despertado pelos produtos e serviços a serem resgatados, sobretudo no caso de milhagem aérea, não existe lei a compelir os executados a converterem em produtos os pontos que eventualmente acumularam, situação em que podem até deixar expirar os pontos somados. Outrossim, ainda que os pontos adquiridos sejam judicialmente alienados, tampouco existe mecanismo seguro e pacificamente aceito para promover a conversão das vantagens em moeda corrente. Assim, a expedição do ofício requerido não resultaria na efetividade da execução. Agravo de petição a que se se nega provimento. (TRT da 2ª Região; Processo: 0050200-85.2000.5.02.0242; Data: 19-05-2021; Órgão Julgador: 1ª Turma - Cadeira 2 - 1ª Turma; Relator(a): MARIA JOSE BIGHETTI ORDONO). 

Dito isto, é certo que a penhora de pontos em programas de milhas parece uma solução inteligente e contemporânea para o problema da inefetividade de execuções judiciais por ausência de bens do devedor penhoráveis. 

Contudo, o sistema Judiciário terá que se estruturar para transpor as barreiras que impedem a operacionalização da penhora de milhas aéreas. Não basta apenas a prolação de decisões judiciais, sendo imperiosa a fixação de critérios regulamentares para possibilitar que os serventuários da Justiça e as empresas administradoras dos programas cumpram tais determinações.

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BRASIL. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm Acesso em: 28/06/2022. 

_______. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm Acesso em: 23/11/2020. 

_______. Agravo de Instrumento 2069138-54.2022.8.26.0000; Relator (a):?Valentino Aparecido de Andrade; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível -?33ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/07/2022; Data de Registro: 05/07/2022. 

_______. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Acórdão 1321641, 07380984620208070000, Relator: MARIA DE LOURDES ABREU, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 24/2/2021, publicado no PJe: 10/3/2021. Pág.: Sem Página Cadastrada. 

_______. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Processo: 0050200-85.2000.5.02.0242; Data: 19-05-2021; Órgão Julgador: 1ª Turma - Cadeira 2 - 1ª Turma; Relator(a): MARIA JOSE BIGHETTI ORDONO. 

_______. Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. Processo nº 0000025-43.2014.5.10.0802, Relator Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron, 2ª Turma, Data do Julgamento: 18/05/2022. 

MATOS, Leonardo Raphael Carvalho de. Programa de milhas e contratos de fidelidade: natureza jurídica e impactos no Direito do Consumidor. In: Revista de Direito, Globalização e Responsabilidade nas Relações de Consumo. Minas Gerais: 2015. 

Quésia Falcão de Dutra

Quésia Falcão de Dutra

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Pós-graduada em Prevenção e Combate à Corrupção pelo CERS / Estácio de Sá. Analista Judiciária no TRT da 2ª Região.

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