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A emergente conexão entre proteção e defesa civil e a seguridade social brasileira

Projetos como esta visão de atuação articulada, voltada a uma recuperação efetiva das vítimas (indivíduos e famílias), com previsão de acompanhamento monitorado, continuidade e financiamento previamente planejado são muito importantes para uma implementação palpável do conceito de resiliência.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Atualizado às 14:18

Os sistemas únicos implementados pós Constituição Federal de 1988 no Brasil são exemplos de sucesso internacional na oferta de seguranças e garantias de direitos afiançados para toda a população do País. O Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) superaram a prática contributiva ao alcançarem aqueles que mais necessitam de proteção social, independentemente da condição social. Ambos são parte da denominada Seguridade Social brasileira, que além dos sistemas protetivos supracitados, ainda trás em seu bojo a Previdência .

O SUS foi planejado para afiançar, em caráter universal, cada um dos brasileiros no que tange à saúde, na sua integralidade, desde as ações primárias e de ordem preventivas, passando pelas especialidades, até as intervenções de mais alta complexidade. Nos mesmos moldes, o SUAS oferta serviços socioassistenciais, procurando garantir as seguranças de acolhida, de renda, de convívio social e comunitário, desenvolvimento da autonomia e sobrevivência a riscos circunstanciais ou mais alongados, como os impactos consequentes de desastres socioambientais.

Ambas as políticas operam numa perspectiva preventiva, protetiva e proativa - assim como preconiza a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC) - mais efetivas para todos: população, meio ambiente, Estado, entidades privadas com atuação relevante nas áreas e organizações da sociedade civil.

Contudo, a segurança diante de riscos potencialmente catastróficos não está amplamente contemplada na operação dos sistemas protetivos brasileiros como prerrogativa. Do contrário, indivíduos ou famílias não vivenciariam a reprodução da vida em áreas de risco de desastres, inclusive, com a presença do Estado, na figura de equipamentos públicos, postos de saúde, centros de referência de assistência social, escolas, núcleos de proteção e defesa civil etc,. partilhando de ocupações inseguras e desordenadas. 

Essa realidade precisa ser urgentemente aprimorada por motivos óbvios e também pela afronta de uma série de orientações legais que conectam ações de proteção e defesa civil, assistência social e saúde. Das mais evidentes, iniciamos por esta última.

Entre as competências da União, previstas na lei 8.742/93 (Orgânica de Assistência Social - LOAS) está a de "atender, em conjunto com os estados, o Distrito Federal e os municípios, as ações socioassistenciais de caráter de emergência". Esse dever legal decorre de um dos objetivos da assistência social previstos na lei 12.435/11, que é "a proteção social, visando à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos, especialmente" em relação a grupos vulneráveis como crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência e de baixa renda (artigo 2º, I, a, b, c, d, e). Também em 2011 a LOAS foi alterada para prever no artigo 6º-A, I e II, que a defesa de direitos está ligada à proteção com o intuito de prevenir situações de vulnerabilidade e risco social, seja por meio do fortalecimento ou da reconstrução dos vínculos sociais, bem como à proteção em situação de calamidades públicas e de emergências. Nesse sentido, a vigilância socioassistencial é um dos instrumentos das proteções da assistência social que identifica e previne as situações de risco e vulnerabilidade social e seus agravos no território (artigo, 6A, § único). Ainda, de acordo com a Resolução 109/09-CNAS, que aprovou a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (serviço de proteção social básica, de média e alta complexidade), a proteção social especial é dividida entre média e alta complexidade, que se diferenciam pelo risco e vulnerabilidades sociais associados. No contexto dos serviços de alta complexidade está a tutela de uma série de direitos, como a proteção em situação de calamidades públicas e de emergências.

Um pouco posterior, mas em tempo, a conexão expressa entre os sistemas de assistência social e de proteção e defesa civil aparece no âmbito do Direito dos Desastres. O decreto 10.593/20 traz algumas previsões importantes neste sentido.

  1. O Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil integrará, de maneira transversal uma série de políticas públicas, inclusive a de assistência social e aquelas vierem a ser incorporadas ao Sinpdec, com vistas à proteção da população (artigo 25).
  2. O Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil será elaborado no prazo de trinta meses, contado da data de publicação deste Decreto, o que ainda não aconteceu;
  3. Os planos estaduais, distrital e municipais de proteção e defesa civil deverão ser elaborados em articulação com o disposto no Plano Nacional (artigos 27 e 28 do mesmo Decreto, respectivamente).

A esse respeito cabe destacar que embora o Plano Nacional ainda não tenha sido publicado, o Decreto regulamenta a lei 12.608/12 e traz uma diretriz relacionada à assistência social válida para todo o sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil. É dizer que, no momento da sua estruturação ou reestruturação, os sistemas estaduais e municipais de proteção e defesa civil deverão integrar a assistência social em sua perspectiva de atuação. Idealmente, essa é uma medida que pode ser adotada por lei municipal o estadual. Mais do que isso, essa é uma previsão de atuação interdependente que abre uma possibilidade de espelhamento e aprendizado mútuo para dois sistemas que, apesar de independentes (pois cada um possui estrutura estabelecida por lei), possuem muito em comum, seja em termos estruturais, público alvo e, sobretudo, à essência de proteção da vida humana, presente em ambos e força motriz da Seguridade Social brasileira.

Essa proximidade também lança luzes sobre as deficiências e eficiências de um e de outro sistema. Por exemplo, o SUS e o SUAS possuem estruturas de financiamento próprias e lastreadas em tributos de fontes variadas e partilhadas entre os três níveis da federação, sobretudo, pelo PIS/COFINS; algo ainda bastante deficitário no âmbito da Defesa Civil, que sequer possui fundo regulamentado. Conforme demonstrado em diagnóstico municipal sobre as capacidades e necessidades das defesas civis brasileiras (2022), a atuação da defesa civil gira em torno de respostas emergenciais a situações de calamidades deflagradas, incutindo improviso e pouca musculatura para ações preventivas e de mitigação ao risco de desastres. Essa realidade também pode ser observada pelo custo da resposta e recuperação ao desastre no Brasil, altamente impactadas por contingenciamento e emergencialmente supridas por créditos suplementares e extraordinários.. Enquanto órgão articulador de todas as fases do risco de desastre, à Defesa Civil municipal, portanto, ao Município cabe, igualmente, o sustento de uma política protetiva e eficaz de direito e de fato. Não por outra razão, um dos princípios do vindouro Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil é o "investimento na redução de riscos de desastres e fortalecimento da cultura de resiliência" (artigo 26, III do Decreto de 2020). Ainda pouco ventilada em seus objetivos e premissas, a proteção e defesa civil também objetiva a salvaguarda de vidas. Mas para galgar esse posto, a previsão legal precisa ser fortalecida por fontes de financiamento regulamentadas e suficientes.

Ou seja, para além do que já vem sendo desenvolvido institucionalmente, trazer para a Defesa Civil a experiência da Seguridade, a fim de sustentar seus arranjos frágeis, aos moldes do SUS e do SUAS, pode representar um avanço importante em termos de aprimoramento e garantia de uma atenção integrada, financiada, e que assegure ações, fluxos e atribuições em métricas nacionais padronizadas e coloquem à prova suas diretrizes, objetivos e metas incluídas e determinadas nas fases do ciclo orçamentário comum, isto é: Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA).

A conexão entre defesa civil, assistência social e saúde pode ser vislumbrada por diversas razões. As duas principais são: lidam com uma população invariavelmente comum, pobre, periférica e vulnerável; e têm por objeto "proteção" a salvaguarda da vida. Desastres afetam a população como um todo, mas os riscos e as consequências não se distribuem de forma uniforme entre os diferentes grupos sociais, posto que fragilizam, de forma mais contundente, o público usuário da Assistência Social, já exposto a contextos anteriores de vulnerabilidade e riscos sociais e ambientais. Apesar disso, a atenção maior a um público bem específico é uma lacuna que precisa ser trabalhada tanto na defesa civil, quando na assistência social e saúde.

A Portaria Interministerial 2/12, inova positivamente e supre parte deste limbo ao instituir o Protocolo Nacional Conjunto para a Proteção Integral a Crianças e Adolescentes, Pessoas Idosas e Pessoas com Deficiência em Situação de Riscos e Desastres, quando aponta prioritariamente este público. O documento sugere atenção especial a indivíduos que devido à sua situação de dependência de cuidado, não podem por meios próprios, prover respostas a possíveis contextos de emergência. A esse público poderia se acrescentar, ainda, as pessoas que se deslocam em razão de desastres, as que vivem em situação de rua, bem como as comunidades e povos tradicionais e originários, costumeiramente invisibilizados.

Apesar de importante, a previsão da Portaria 2/12 possui as limitações pertinentes a espécie de ato normativo que é. Daí a importância de uma previsão legal expressa, acoplando de forma prática e orientativa, a atuação dos sistemas. Essa previsão legal ainda não existe no Brasil, mas alguns movimentos no Congresso Nacional já se aproximam da ideia. Aliás diversas proposições legislativas no País trazem uma ascendente proximidade entre defesa civil e Seguridade Social. Muitas delas tem como característica a consciência de que garantia de direitos se efetiva com financiamento sustentado em fontes de receitas provisionadas, a despeito da Desvinculação dos Recursos da União (DRU) diante dos recursos da Seguridade Social.

Exemplo interessante nesse sentido é o PL 562/20, que propõe a criação do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos em Situação de Emergência Social. Aguardando movimentação na Comissão de Finanças e Tributação desde 2021, pretende inserir dispositivos na Lei Orgânica da Assistência Social para incluir mais um programa socioassistencial. De acordo com o projeto, "constituem situações de emergência social: I - desastres; II - calamidade pública ou situação de emergência, independentemente de sua natureza; III - movimentos migratórios decorrentes de questões ambientais, econômicas, sanitárias, sociais, culturais, religiosas ou políticas, incluindo conflitos armados; IV - surtos, epidemias e pandemias cujas consequências na vida dos indivíduos e famílias possam fragilizar ou violar o exercício de direitos de cidadania"; entre outros. A proposição não apenas traz a atuação em circunstância de desastre para o SUAS, mas considera que a prestação do apoio, orientação e acompanhamento das famílias e indivíduos, os serviços socioassistenciais devem ser articulados com as diversas políticas públicas e demais órgãos do sistema de garantia de direitos. Como meio de implementação e efetividade dessa agenda, a proposição legislativa estabelece que "a União deve assegurar recursos adicionais ao Sistema Único de Assistência Social para o enfrentamento das situações de emergência social, o que deve ser pautado já no momento da elaboração da lei de diretrizes orçamentárias que servir de base à elaboração do projeto de lei orçamentária para o exercício seguinte ao de sua promulgação".

Projetos como esta visão de atuação articulada, voltada a uma recuperação efetiva das vítimas (indivíduos e famílias), com previsão de acompanhamento monitorado, continuidade e financiamento previamente planejado são muito importantes para uma implementação palpável do conceito de resiliência e, ao mesmo tempo fortalecem o potencial de efetividade do que se pode chamar de um sistema de proteção e defesa civil ampliado, sobretudo no que concerne à garantia de direitos e combate à sua violação. Apesar de representar apenas uma proposição, o exemplo mencionado lança luzes sobre uma tendência legalmente orientada no Brasil: a conexão entre Proteção e Defesa Civil e os Sistemas únicos protetivos.

Alice Dianezi Gambardella

Alice Dianezi Gambardella

Socióloga, mestre e doutora em Serviço Social, Políticas Sociais e Movimentos Sociais. Professora colaboradora do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Fernanda Dalla Libera Damacena

Fernanda Dalla Libera Damacena

Advogada, doutora e mestre em Direito Público. Consultora, pesquisadora e professora. Atuação em temas correlatos ao direito ambiental, direitos dos desastres, mudanças climáticas e a intersecção desses ramos como políticas públicas e iniciativa privada.

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