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Competência para julgamento de crimes contra a honra praticados pela internet: necessidade de revisão da jurisprudência

Luísa Walter da Rosa e Manuela Moser

Percebe-se uma movimentação nas Cortes Superiores capaz de ensejar um avanço no debate sobre a competência nos crimes contra a honra praticados de forma online.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Atualizado em 6 de setembro de 2022 13:07

A ascensão dos meios digitais de comunicação trouxe novos contornos às relações sociais e, consequentemente, ao sistema de justiça. No que diz respeito ao Direito Penal, o meio virtual se tornou palco para a prática delituosa, e algumas alterações legislativas recentes refletem isso, como a lei 14.132/21, que criminaliza o stalking; a lei 12.737/12, que tipifica delitos informáticos; e a lei 14.155/21, que impõe penas mais gravosas para esses delitos.

Não apenas novos tipos penais são criados, como os antigos são repaginados. É cada vez mais comum a prática de crimes contra a honra - calúnia, difamação e injúria - por meio da internet, cujo alcance é profusamente expandido, o que torna o resultado dos delitos ainda mais gravoso, justamente pelo aumento do seu potencial lesivo.

Nesse contexto, propõe-se um debate acerca do momento da consumação dos crimes contra a honra praticados pela internet, critério utilizado para definir a competência para julgamento, a fim de revisitar posicionamentos adotados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a temática.

Ao analisar a questão da competência desses crimes, o STJ assentou o entendimento de que o local de publicação do conteúdo ofensivo é aquele da consumação dos delitos. A consumação, por sua vez, ocorreria "no momento da disponibilização do conteúdo ofensivo no espaço virtual, por força da imediata potencialidade de visualização por terceiros"1, o que influiria diretamente na determinação da competência, que se daria a partir do local de publicação das ofensas.

O referido posicionamento vem sendo aplicado de forma pacífica há mais de dez anos2, entretanto, acredita-se não ser mais apropriado quando confrontado com a ausência de fronteiras do mundo digital. Quem se torna vítima de uma ofensa na internet sofre as consequências disso no mundo virtual e presencial, neste último principalmente entre o seu meio social. A título de exemplo, se uma pessoa posta o conteúdo ofensivo na cidade de São Paulo/SP, em relação à uma vítima que reside em Curitiba/PR, não é em São Paulo que a reputação da vítima será efetivamente afetada, e sim em Curitiba, perante seus amigos, familiares e colegas de profissão. E é com base nisso que se propõe a alteração da jurisprudência.

De forma objetiva, nos crimes de calúnia e de difamação, a consumação se dá quando a imputação falsa chega ao conhecimento de terceiro que não a vítima; e, na injúria, quando a própria vítima toma conhecimento das manifestações desonrosas. Essa determinação é coerente com a teoria do resultado (adotada pelo art. 70 do CPP), que estabelece que a consumação do crime se dá, justamente, no local onde se concretizam os resultados da conduta delituosa, que corresponderá ao foro competente para julgar o feito.

O local de consumação do crime foi estabelecido como referência no Código de Processo Penal por dois motivos: primeiro, por ser onde estarão os vestígios do crime, o que se aplica aos crimes materiais; e segundo, porque é onde ocorre o streptus deliciti e o desequilíbrio social decorrentes da infração.3

Tratando-se de crimes contra a honra, de natureza formal, portanto, apenas o último critério é aplicável. Contudo, em crimes contra a honra praticados pela internet a definição do local de consumação torna-se complexa, uma vez que o amplo acesso à internet por meio de dispositivos móveis não só facilita a publicação das postagens, como também o acesso a elas, que é imediato e irrestrito.

Por isso, para delimitar o local de consumação desses crimes pela aplicação do critério do streptus deliciti e do desequilíbrio social é preciso observar o bem jurídico por eles tutelado.

A honra objetiva, protegida nos tipos calúnia e difamação, é a imagem do sujeito perante terceiros, "a imagem que a pessoa possui no seio social"4, que é o aspecto protegido pelo tipo penal. Embora, de maneira ampla, seja possível considerar como componentes do tal seio social qualquer pessoa que tenha acesso às informações postadas online, essa generalização não condiz com a realidade. Na verdade, a repercussão das ofensas à honra do indivíduo concentra-se no ambiente que o cerca, ou seja, entre sua família, amigos e colegas de trabalho, de modo que sua imagem deve ser preservada em especial nesse(s) local(is). É ali, portanto, que se consuma o delito, o que justifica também o local em que o mesmo deve ser julgado.

Em suma: nos crimes de calúnia e difamação praticados por meio virtual, embora amplo o alcance das informações compartilhadas, o bem jurídico protegido (honra objetiva) é lesado centralmente no meio social de convivência da vítima. Desse modo, a fim de zelar por sua proteção, esse local corresponde ao de consumação dos delitos e, portanto, à comarca competente para seu julgamento.

No crime de injúria fica ainda mais evidente a inadequação do critério que vem sendo adotado. Nesse caso, como o bem jurídico protegido é a honra subjetiva, a consumação se faz com a recepção da mensagem pela própria vítima. A competência para o julgamento do feito, assim, é do local onde a mensagem foi recebida, e não enviada. Aqui, o desequilíbrio social causado onde o ofendido tem ciência do ocorrido é somado ao fato de que não há que se falar na impossibilidade de delimitação dos indivíduos que tenham recebido a mensagem, pois a percepção de terceiros sobre ela pouco importa: a ofensa é percebida pela pessoa da vítima.

Há de se apontar também que a adoção do local onde foram praticados os crimes como parâmetro para estabelecimento de competência, como estabelecido pela jurisprudência vigente ao classificar o lugar de origem das postagens como o aquele da consumação, significa adoção da teoria da atividade, em afronte ao estabelecido pela lei processual penal5.

Outro aspecto precisa ser observado nos crimes contra a honra: deve-se garantir especial proteção à pessoa da vítima. É com esse objetivo, inclusive, que o art. 73 do CPP6 oferece ao querelante, em ações penais privadas, a opção pelo foro de residência do querelado para propor a ação penal. Veja-se: trata-se de uma possibilidade, cuja adoção fica a critério da vítima, com o objetivo de que esta não reste ainda mais lesada.7 O que se tem propagado na jurisprudência, porém, é justamente o contrário: impõe-se o lugar de domicílio do querelado (que pela legislação, seria um direito de escolha da vítima) como competente em nítido prejuízo ao querelante.

Cumpre destacar ainda a dificuldade de se determinar a localização em que as postagens criminosas foram efetuadas, justamente pela facilidade de acesso à internet, o que pode ser feito a partir de qualquer lugar. Quando impossível a determinação do local exato, o art. 72 do CPP determina a adoção o local de domicílio do ofensor, o que vem sendo aplicado pela jurisprudência8.

Tal determinação, entretanto, não é a melhor solução no contexto dos delitos praticados por meio virtual. A previsão do art. 72, estabelecendo a competência subsidiária no local em que reside o réu, visa evitar eventual desequilíbrio na ação penal, quando se imagina um cenário de uma ação penal pública, na qual o acusado se encontra em nítida vulnerabilidade frente à força estatal, que o acusa e julga. Nas ações penais privadas o cenário é diverso: não existe polo mais frágil, as partes se enfrentam de igual para igual.

De acordo com a jurisprudência atual, a vítima, se impossibilitada de ajuizar a ação no local onde sofreu os danos dos crimes praticados contra a sua honra, é novamente penalizada, tendo que ajuizar a ação ou no local onde feita a postagem ou no domicílio daquele que a vitimou, ambas situações deveras onerosas, que acabam por desequilibrar a relação processual, justamente em prejuízo à vítima.

É possível dizer, sem exageros, que crimes contra a honra ocorrem diariamente no ambiente virtual, por agressores que se valem justamente da proteção e distanciamento oferecidos pela internet para vitimar terceiros. Não é razoável que o agredido, já em situação de vulnerabilidade, tenha que identificar o local de onde seu ofensor teria supostamente compartilhado as informações ou se importe em facilitar a defesa do acusado oferecendo a queixa crime no local de seu domicílio, quando ele não teve qualquer consideração pela vítima.

A título argumentativo, vale comentar que a fixação da competência no lugar onde se publicou a mensagem na internet segue a mesma lógica adotada pelos Tribunais ao fixar a competência de crimes praticados por jornal9. Nesses casos, a competência é fixada onde o jornal foi impresso10, uma vez que se entende que ali seria o local onde as pessoas primeiro tomariam conhecimento do conteúdo.

Parece inadmissível replicar referida conclusão em crimes praticados pela internet, afinal, a possibilidade de acesso ao conteúdo publicado é imediata a partir de qualquer localização, pouco importando a distância entre aquele que publica e aquele que lê.

Recentemente, o STJ julgou um caso de crime contra a honra praticado por meio de mensagens privadas enviadas pela internet, decidindo que a consumação ocorre no momento de recebimento das mensagens eletrônicas11. Embora a situação seja bastante específica e não se aplique em geral aos crimes contra a honra cometidos de maneira pública, o precedente demonstra um avanço na jurisprudência e abre espaço para o debate, que se considera necessário para garantir que o sistema de justiça se aproxime das evoluções sociais, evitando que os precedentes judiciais representem violações de direitos por serem anacrônicos.

O Supremo Tribunal Federal (STF) também começa a se debruçar sobre o tema, no Recurso Extraordinário 601.220, ainda pendente de julgamento, que trata da competência jurisdicional para processar e julgar ação de reparação de danos causados por crítica vinculada pela internet. Nesse caso, em parecer da Procuradoria-Geral da República, sugeriu-se a possibilidade de que a cidade de domicílio da vítima fosse considerada como competente para o julgamento do feito.

Para o Procurador-Geral, a competência visa "equilibrar a proteção daquele que pode ter sido injustamente atingido por uso abusivo da liberdade de expressão", reconhecendo que os prejuízos são sentidos principalmente no domicílio do autor12.

Se esse entendimento é passível de aplicação na esfera cível, ainda mais adequado que seja considerado na esfera penal, que deveria resguardar a vítima de atos mais gravosos, com efeitos mais severos.

Percebe-se, desse modo, uma movimentação nas Cortes Superiores capaz de ensejar um avanço no debate sobre a competência nos crimes contra a honra praticados de forma online. É necessário, entretanto, diante da crescente desses delitos, que novos posicionamentos sejam adotados com agilidade, a fim de evitar que vítimas continuem a ser duplamente lesadas: pelas ofensas a sua honra e pelo desequilíbrio de interpretações ultrapassadas conferidas a questões procedimentais das ações penais.

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1 STJ: CC 173.458/SC, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Seção, DJe 27/11/20.

2 STJ: CC: 97201 RJ 2008/0150084-3, Relator: Ministro CELSO LIMONGI - DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP. Data de Julgamento: 13/4/11, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 10/2/12.

3 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 9ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 282.

4 NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial. Vol. 2. São Paulo: Grupo GEN, 2021, p. 189.

5 Ressalva-se aqui que o presente artigo discute a competência para julgamento de crimes na justiça comum, e não nos Juizados Especiais Criminais pois, embora os crimes contra a honra praticados na forma do caput tenham pena não superior a dois anos, a prática pela rede mundial de computadores faz incidir a agravante incluída pela lei 13.964/19 no art. 141, § 2º do CP, de modo que a pena é triplicada. Ademais, não é incomum que mais de uma modalidade seja praticada em concurso material ou formal.

6 CPP: Art. 73.  Nos casos de exclusiva ação privada, o querelante poderá preferir o foro de domicílio ou da residência do réu, ainda quando conhecido o lugar da infração. 

7 PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 26 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: JusPodivm, 2022, p. 250.

8 STJ: HC 591.218/SC, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 9/2/21, DJe de 12/2/2021.

9 STJ: AgRg no REsp 1379227 DF 2013/0137499-9, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 8/5/18, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/5/18.

10 Interessante também considerar que, na era da conectividade, a maioria dos jornais optou em substituir integralmente a veiculação impressa pela digital.

11 STJ: CC n. 184.269/PB, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 9/2/22, DJe de 15/2/22. No mesmo sentido: STJ - CC 172653/SC, Relator Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO. Data de publicação: 29/6/20.

12 Ministério Público Federal - Procuradoria Geral da República. Parecer ARESV/PGR 432716/21, no RE 601.220/SP. Procurador-Geral da República Augusto Aras, data: 29/11/21.

Luísa Walter da Rosa

Luísa Walter da Rosa

Sócia do Collaço Gallotti Petry Advogados. Mestranda em Direito do Estado, com enfoque em Processo Penal na UFPR. Pós-graduada em Direito Penal Econômico pela PUC Minas e em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Presidente da Comissão de Investigação Defensiva e Justiça Penal Negociada da OAB/SC.

Manuela Moser

Manuela Moser

Advogada associada no Collaço Gallotti Petry Advogados. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Membro da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB/SC.

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