A possibilidade de desistência do recurso interposto pelo Ministério Público no âmbito criminal
Mais que parte em um processo criminal, o Ministério Público é, acima de tudo, o fiscal da ordem jurídica. Como assegurar a legalidade em um processo em que um Promotor é impedido de não sustentar uma condenação manifestamente descabida?
segunda-feira, 19 de setembro de 2022
Atualizado às 14:17
O Código de Processo Penal no contexto em que foi editado, notadamente em uma época em que predominava-se a influência de ideais totalitários no processo legislativo penal - fruto de inspirações estrangeiras daquele momento histórico, acabou por ser moldado com algumas diretrizes normativas, que na atualidade, comparando-se com o novo modelo de processo penal contemporâneo, causa estranheza aos olhos daqueles que lidam diariamente no campo criminal.
Um desses pesadelos normativos, encontra-se previsto no art. 576 do Código de Processo Penal, que preconiza acerca da impossibilidade de desistência do recurso interposto pelo Ministério Público.
Em termos pragmáticos, significa dizer que, uma vez interposto qualquer recurso pelo Parquet, a partir de então, é impossível que haja qualquer pedido de desistência da insurreição ministerial. Ocorre que, tanto no plano teórico, como prático, esta vedação revela-se deveras tormentosa.
Imagine-se a hipótese em que um Promotor de Justiça oficiante em determinada Comarca interponha recurso de apelação contra uma sentença absolutória, pugnando-se pela abertura de vistas para a apresentação de razões recursais, e que, nesse interregno, aconteça uma troca de membros atuantes no processo.
O próximo Promotor de Justiça é tecnicamente obrigado a apresentar as razões recursais mesmo estando convicto que seria realmente caso de absolvição, mantendo-se a sentença de primeiro grau? A resposta é positiva, por mais absurdo que pareça ser.
O art. 127,§1°, da Constituição Federal, estabelece que os membros do Ministério Público possuem independência funcional, assegurando-se que cada um construa a sua própria convicção acerca de determina situação concreta posta a sua análise, de tal modo que não há nenhuma vinculação com o posicionamento do membro que atuou anteriormente no processo.
A única imposição é que se obedeça a Constituição, as leis e a sua própria consciência.
Nesta esteira de pensamento, Renato Brasileiro de Lima ensina-nos:
Por isso, considerando que, por força do princípio da independência funcional, o órgão do Ministério Público é livre para oficiar fundamentadamente de acordo com sua consciência, com a Constituição e com a lei, não estando subordinado a manifestações ministeriais anteriores, é plenamente possível que este segundo Promotor de Justiça apresente razões recursais em sentido diverso da petição de interposição. Logo, na hipótese de sentença absolutória contra a qual tenha sido interposto recurso de apelação objetivando a condenação do acusado, o Promotor de Justiça responsável pela apresentação das razões recursais poderá se manifestar fundamentadamente no sentido de manutenção do decreto absolutório, o que não pode ser considerado como hipótese de desistência tácita. (Manual de Processo Penal (livro eletrônico). São Paulo: editora revista dos tribunais, 2016, p.35)
O art. 576 é tão ilógico que há a possibilidade processual de que um membro sustente a condenação ao oferecer denúncia em desfavor de um acusado, e que neste mesmo processo, o colega que eventualmente o suceder, acaso entenda de maneira contrária, possa muito bem sustentar a desclassificação ou até mesmo a absolvição do denunciado, em sede de memoriais.
Outra situação que pode vir a ocorrer é de um Promotor, na fase de alegações finais, sustentar a absolvição de um indivíduo e, após a sentença, havendo troca de membros, ser pleiteada a condenação do réu por um outro Promotor que vier a suceder o anterior.
Questiona-se por que essa sistemática da independência funcional não pode permanecer em sede recursal? É um verdadeiro paradoxo. Além de não possuir lógica em si, a norma é manifestamente contrária à Constituição Federal, por primeiro ferir o sobredito princípio da independência funcional, como também por retirar do Ministério Público o seu papel de custos legis.
Mais que parte em um processo criminal, o Ministério Público é, acima de tudo, o fiscal da ordem jurídica. Como assegurar a legalidade em um processo em que um Promotor é impedido de não sustentar uma condenação manifestamente descabida?
O processo penal contemporâneo é guiado pelo princípio da oportunidade, de tal sorte que é possível ver sua materialização quando se observa os institutos despenalizadores, tais como a transação penal, suspensão condicional do processo, e o acordo de não persecução penal, à guisa de exemplo.
Não há mais lugar na atual concepção de Estado Democrático de Direito, para um modelo de processo penal autoritário, burocrático e por isso ineficiente. O princípio da obrigatoriedade tal como previsto no art. 42 do Código de Processo Penal, de nenhuma maneira coloca algum empecilho na possibilidade de desistência de recurso interposto pelo Parquet.
Pelo contrário, não há desistência da ação penal. Há, em verdade, desistência do recurso eventualmente ajuizado por um membro que, na visão de seu sucessor, não possui cabimento, e por isso não deve ser obrigado a sustentar uma tese que desacredita. É ferir de morte o princípio da voluntariedade recursal.
Em vista disso, é necessário que se busque uma interpretação apta a convergir a impossibilidade de desistência do recurso ministerial, com o consagrado princípio da independência funcional. E partindo-se desse pressuposto, é que haverá a necessária harmonia hermenêutica entre o processo penal brasileiro e a Magna Carta.
Forçoso ressaltar que a partir da vigência da Constituição Federal de 1988, não se tem mais um processo penal inquisitivo, em que há um juiz protagonista que possui a gestão da prova em seu domínio, tendo em mãos o poder de conduzir o processo para o rumo que entender ser o adequado. Inadmissível.
Agora, tem-se um processo penal de partes, figurando de um lado o Ministério Público no polo ativo e, do outro, o acusado, sujeito passivo da persecução penal, estando o magistrado em uma posição equidistante, consagrando-se o desejável sistema acusatório.
A Carta Magna em seu art. 129, inciso I, dispõe que o exercício da ação penal pública é privativo do Ministério Público. Cabe destacar que o termo "será promovida", não possui sentido de obrigatoriedade da ação pública, mas sim que somente o seu titular poderá promovê-la.
Tecnicamente, não há um juízo de inconstitucionalidade da norma em questão e sim, um juízo de recepção/não recepção, tendo em vista que o dispositivo em comento pertence ao texto original do Código de Processo Penal, e por isso anterior a atual Constituição da República.
Não sendo recepcionada, a norma é revogada. Mas para isso é necessário que se realize um controle de constitucionalidade abstrato, pela via correta, a fim de que o Supremo possa analisar a sua compatibilidade com o texto maior.
Mas a triste realidade, é que são parcos os julgados que buscaram enfrentar o tema no Brasil, de modo que já são 34 anos da nova ordem constitucional e até hoje um dispositivo de estranheza indubitável aos auspícios constitucionais, ainda não foi extirpado da legislação brasileira.


