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Acidente, culpa em sentido estrito ou dolo eventual?

Antes que se responda à pergunta acima formulada, é de se esclarecer que mesmo quem atue com dolo eventual poderá eventualmente estar ao abrigo de causa excludente de antijuridicidade ou de culpabilidade.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Atualizado às 11:06

O pensamento mais conhecido acerca do dolo eventual aparece na chamada teoria hipotética do consentimento, desenvolvida por Hans Frank, segundo a qual este elemento subjetivo estará presente quando o autor do fato, embora preveja como certa (ou altamente provável) a ocorrência da lesão - que não busca -, ainda assim não deixa de agir, porque o bem jurídico protegido pela norma penal se lhe afigura de menor valor (ou de valor nenhum), quando comparado com o fim que pretende atingir. Diferentemente do que acontece com quem atua com culpa consciente, o resultado - que é previsível para o agente nos dois casos - é aceito como possibilidade para quem opera com dolo eventual e não é capaz de inibir-lhe a atividade de risco (quem age com culpa consciente, ao contrário, não anui com o dano, o qual, caso a ele se mostre certo, determinará que não realize o comportamento arriscado).  

Diante disso, a que conclusão se pode chegar quando se tem notícia de que, na cidade de Osório/RS, dia 16/09, uma viatura da Brigada Militar, em perseguição a suspeitos de práticas criminosas, em alta velocidade, invadiu via urbana localizada em região central, atropelou - como era mesmo provável que acontecesse - e lesionou uma motociclista, a ponto de que tenha tido ela uma perna amputada?

Antes que se responda à pergunta acima formulada, é de se esclarecer que mesmo quem atue com dolo eventual poderá eventualmente estar ao abrigo de causa excludente de antijuridicidade ou de culpabilidade. É o que aconteceria, por exemplo, se houvesse vítima de sequestro dentro do veículo perseguido ou se os policiais houvessem recebido informação falsa de que tal fato estivesse ocorrendo.

Pelo que se sabe até agora não foi este o caso.

Indago ainda: e se a guarnição, apesar de agir do modo inconsequente como agiu, houvesse atingido o resultado a que se propusera e logrado alcançar e prender os fugitivos (sem atropelar ninguém), qual teria sido a reação do comando ao saber que tal fato ocorrera depois de haverem para tanto os brigadianos colocado a população em risco de morte ou de lesões gravíssimas por conta de sua ação desarrazoada? Teriam sido os comandados pelo menos pedagogicamente advertidos de que os fins não justificam os meios, ou teriam sido eles elogiados, tidos como "cumpridores do dever" e estimulados a continuar assim procedendo?

Este não é um exercício de difícil realização: basta que se ouçam soldados envolvidos em diligências realizadas anteriormente e que se recolha as matérias produzidas pela imprensa em casos que tais. A propósito disso, confira-se aqui o modo como a mídia noticiou o tema, induzindo ser a vítima que se "envolve em acidente com viatura da polícia" , e desconsiderando que: (1) não foi a motociclista que deu causa ao suposto "acidente", portanto ela não "se envolveu", mas foi envolvida num situação sob todos os títulos lamentável, patrocinada por agendes públicos que deveriam protegê-la, e que lhe custou uma perna; (2) não houve caso fortuito ou força maior, portanto não se tratou de "acidente", como quer a matéria jornalística, mas do cometimento de um crime de lesões corporais gravíssimas, claramente ocasionadas com dolo eventual.

Penso não se tratar de tentativa de homicídio apenas porque o crime tentado pressupõe tenha existido o desejo de atingir o resultado danoso, que não é alcançado por "circunstâncias alheias à vontade do agente" (Art. 14, II, do CP), situação que não se coaduna com a presença do dolo eventual (pelas razões expostas no primeiro parágrafo deste escrito), o que permite se conclua devam os autores responder pelas lesões que criminosamente de fato produziram. 

Finalmente, desconfio que as respostas aos questionamentos acima propostos poderão ainda sofrer a influência do artigo 29 do CP: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade".

César Peres

César Peres

Advogado criminalista, especialista em direito penal e processual penal. Mestre em direito. Conselheiro seccional da OAB/RS. Ex-presidente da ACRIERGS e da ANACRIM-RS

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