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O controle judicial do ato de indeferimento do gozo de licença-prêmio para servidor público

Uma solução jurídica razoável, a partir de breve análise da jurisprudência recente do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Atualizado em 18 de outubro de 2022 08:31

O princípio da legalidade, quando aplicado à Administração Pública, determina que cabe ao agente público fazer apenas aquilo que a lei permite. Realizada de forma absoluta, tal interpretação engessaria mortalmente a Administração, uma vez que é impossível ao legislador prever todas as nuances e possibilidades do mundo real. 

A lei, portanto, trata de, ela mesma, criar espaços interpretativos vazios ou menos rígidos, que devem ser preenchidos pelo agente público quando da aplicação da norma. Essa possibilidade de acrescer significado ao texto legal dota a Administração de um poder, ou de uma competência: a discricionariedade.

Di Pietro1 ensina que a discricionariedade se faz presente quando:

A lei deixa à Administração a possibilidade de, no caso concreto, escolher entre duas ou mais alternativas, todas válidas perante o direito. E essa escolha se faz segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, equidade, razoabilidade, interesse público, sintetizados no que se convencionou chamar de mérito do ato administrativo.

Contrapõe-se à competência discricionária a vinculada, em que todos os elementos do ato administrativo estão previamente determinados pela lei, não havendo margem de liberdade ao administrador.

Nesse sentido, alguns entes públicos, nos estatutos que regem o regime jurídico dos seus servidores públicos, preveem o direito à denominada licença-prêmio. Trata-se de um período de afastamento com remuneração, após determinado tempo de atividade, como uma recompensa pela assiduidade do servidor. 

No caso do Município de Fortaleza, no Estado do Ceará, a lei 6.794/90 (Estatuto dos Servidores do Município de Fortaleza) institui o benefício em seu art. 75, reproduzido a seguir:

Art. 75.  Após cada quinquênio de efetivo exercício o servidor fará jus a 03 (três) meses de licença, a título de prêmio por assiduidade, sem prejuízo de sua remuneração.

Há atos discricionários e vinculados envolvendo o instituto da licença-prêmio. É vinculado, por exemplo, o ato de reconhecimento do direito. Ou seja, após cumpridos os requisitos legais, o servidor público terá reconhecido o direito à licença, o que não implica em seu gozo imediato.

É discricionária, por sua vez, a definição do início do gozo da licença, bem como a decisão acerca da concessão pelo gozo integral ou de forma parcelada. Desse modo, não poderia o magistrado substituir o administrador público quanto à determinação do período de gozo de licenças de servidores públicos, porquanto aquele não é dotado de competência para tanto.

Sendo assim, questiona-se se seria possível o controle judicial dos atos de indeferimento ou retardamento do gozo de licença-prêmio, dada a sua natureza discricionária.

Quanto a isso, dois pontos devem ser observados quando o gozo da licença é indeferido pela autoridade:

1) embora a data de início e a forma de gozo (parcelada ou integral) seja discricionária, o próprio direito ao gozo não o é; e

2) a discricionariedade administrativa não está isenta de observar a razoabilidade.

Para a correta solução da questão, os juristas precisaram construir uma solução que não prejudicasse o direito subjetivo do servidor à licença, nem a competência do administrador em determinar o período de fruição desse direito.

Desse modo, a tese aplicada pelos tribunais pátrios, inclusive pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará - TJCE, garante ou a conversão da licença não usufruída em pecúnia, se o servidor estiver aposentado; ou a determinação de que a Administração elabore um cronograma de fruição das licenças a que faz jus o servidor, como se observa na ementa a seguir:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. REMESSA NECESSÁRIA. AÇÃO ORDINÁRIA. SERVIDORA PÚBLICA MUNICIPAL. REQUERIMENTO DE CONCESSÃO DE LICENÇA-PRÊMIO. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. DIREITO PREVISTO LEGALMENTE. APRESENTAÇÃO DE CRONOGRAMA DE FRUIÇÃO PELO MUNICÍPIO. CONFIRMAÇÃO DA SENTENÇA. 1. A autora é servidora pública nomeada e empossada em 9 de agosto de 2007, exercente do cargo de Professor de Ensino Infantil, alegando nunca haver usufruído licença prêmio, razão pela qual ajuizou a ação ordinária em exame. [.] 3. O Juiz prolator da sentença não olvidou que a escolha dos períodos de gozo da licença-prêmio se insere na esfera discricionária administrativa, o que, contudo, não autoriza à Administração a procrastinação da concessão por tempo indeterminado, provocando um acúmulo das licenças a serem usufruídas e a consequente inviabilidade de tal direito, evidenciando-se que o art. 92 da lei 393/98 estabelece o prazo de 90 dias seguintes à apuração do direito, para definição da data de início do usufruto da licença.

No mesmo sentido, especificamente quanto ao Município de Fortaleza, colaciona-se trecho do relatório e voto vencedor em julgado da 3ª Turma Recursal do Estado do Ceará:

Neste diapasão, tendo em vista a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Ceará em casos semelhantes e não cabendo ao Judiciário impor ao ente público a data para que o servidor usufrua do benefício, é imprescindível que o Município de Fortaleza elabore cronograma, de acordo com a discricionariedade administrativa, no qual conste os servidores que preencheram os requisitos para o gozo da licença-prêmio, bem como as respectivas datas para fruição [.].

Portanto, embora discricionário, o ato de indeferimento do gozo de licença-prêmio por servidor público pode ser objeto de controle judicial, desde que se verifique negativa não razoável ou prorrogação indefinida do exercício do direito. A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará caminha no sentido de determinar a conversão em pecúnia, em caso de servidor aposentado, ou a elaboração de um cronograma de fruição da licença. Tal solução permite o gozo do direito, sem retirar do gestor público a prerrogativa de planejamento interno quanto aos períodos em que não poderá contar com o trabalho do servidor.

Por fim, a título informativo, ressalta-se que a possibilidade de contagem em dobro da licença-prêmio não gozada para fins de aposentadoria foi abolida em relação aos períodos não adquiridos até o advento da emenda constitucional 20/98, que extinguiu a contagem de tempo fictício para aposentadoria. Ademais, o direito à mencionada licença no Município de Fortaleza foi extinto para os servidores que ingressaram no serviço público após a vigência da Lei Complementar  298/21, conforme seu art. 51, §2.

___________

1 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa. REDAE - Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, fevereiro/março/abril, 2007.

CEARÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Recurso Inominado Cível. 0146942-97.2016.8.06.0001. Relatora: Mônica Lima Chaves. 3ª Turma Recursal. Fortaleza, 21 de junho de 2020. Disponível em . Acesso em:14 de agosto de 2022.

CEARÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Remessa Necessária. Apelação Cível. 006684-65.2016.8.06.0121. Relatora: Tereze Neumann Duarte Chaves. 2ª Câmara de Direito Público. Fortaleza, 7 de agosto de 2019. Disponível em https://esaj.tjce.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do. Acesso em: 14 de agosto de 2022.

ROSA, Íris Vânia Santos. Poder discricionário. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Tributário. Paulo de Barros Carvalho, Maria Leonor Leite Vieira, Robson Maia Lins (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: . Acesso em: 13 de agosto de 2022. 

Brenna Paula de Almeida

Brenna Paula de Almeida

Advogada, cursando pós-graduação em Direito Administrativo e Gestão Pública pela Fundação Escola Superior do Ministério Público

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